Índice de Capítulo

    Carlos estava aproveitando seu único dia de descanso na semana para conversar com Tassi e obter mais informações sobre este mundo. O ar dentro da senzala era pesado, carregado do cheiro de corpos suados e da fumaça residual do fogão de lenha. A luz fraca que entrava pelas frestas da madeira iluminava finos flocos de poeira dançando no ar.

    — Me diga, ser adepto de usar gemas mágicas é algo raro? — perguntou ele, quebrando o silêncio.

    Tassi suspirou profundamente, e Carlos pôde quase ouvir seus pensamentos: “Primeiro ele me conta aquele plano imbecil, e agora faz uma pergunta óbvia dessas?”

    — Pelo que fiquei sabendo, você entende muito desses ‘artefatos do diabo’ — ela respondeu, seu tom carregado de ironia. 

    — Pensei que fosse uma pessoa de muitos conhecimentos. Deveria saber algo simples assim.

    — Digamos que vim de muito, muito longe. De um lugar tão distante que nem sequer existem gemas mágicas.

    — De novo essa história? Não precisa mentir para mim. Que tal isso: eu conto a minha história, e você me conta a sua?

    “Tenho que mentir porque, se dissesse a verdade, você nunca acreditaria!”

    — Vou pensar sobre a sua proposta, mas primeiro, fale-me sobre as gemas mágicas.

    — Tudo bem — ela cedeu, ajustando-se no chão terra áspero. — Ser adepto não é algo raro; na verdade, é bastante comum.

    — Quão comum? Digamos que, de cada 100 pessoas que nascem, quantas podem usar gemas mágicas? E, dessas 100 adeptas, quantas podem usar mais de um tipo de gema? Existe alguém que possa usar mais de dois tipos?

    — Depende — respondeu Tassi, cruzando os braços. — Estamos considerando as gemas mágicas inúteis ou não?

    — Como assim? Existem gemas mágicas inúteis?

    Ela rolou os olhos, uma expressão de exasperação em seu rosto.

    — Você realmente não sabe de nada, sabe?

    “Claro que não sei! Sou de outro mundo! Você era muito mais legal quando não podia falar!”

    — Sim, na verdade, a maioria delas é assim — ela explicou, sua voz perdendo um pouco da aspereza. 

    — Apesar de as chamarmos de ‘inúteis’, a verdade é que, para muitas, simplesmente não descobrimos como utilizá-las. Toda gema útil que temos hoje um dia já foi considerada inútil. E, claro, também há aquelas cujo uso já conhecemos, mas que não são realmente muito práticas. Por exemplo, a gema do fogo é muito útil para atacar, enquanto a gema do metal só consegue fazer o metal rotacionar e controlar metais quentes, o que não tem muita serventia, a não ser para alguns carpinteiros e ferreiros.

    “Ué, isso me parece bem útil. Além disso, não daria para criar algo como uma motosserra e sair atacando os inimigos?”

    — Tem certeza de que não dá para usar como arma? Imagino que uma serra afiada girando rapidamente poderia ser bem letal.

    — Ha ha ha — ela riu, um som seco e sem humor. — Você realmente não é daqui. O problema da gema do metal é que você precisa tocar numa área muito próxima a ela para ativar seu poder. Diferente da maioria das gemas, onde se pode tocar em qualquer lugar do artefato mágico para ativá-lo, e com algumas, como a gema do fogo, é possível até adiar a ativação para acontecer depois de um tempo. Por isso, a gema do fogo é considerada a mais versátil e, melhor ainda, entre as gemas úteis, é a mais comum de se encontrar um adepto.

    — Mas, claro — ela acrescentou, — talvez um dia seja possível fazer o mesmo com a gema do metal. Nós simplesmente ainda não descobrimos como.

    — Ué, não dá para aplicar o mesmo princípio usado nas gemas de fogo nas gemas de metal?

    Tassi balançou a cabeça, seus cachos balançando suavemente. — Infelizmente, não. Cada gema tem métodos diferentes de ativação e uso. Por causa disso, quando alguém descobre como usar uma gema mágica, guarda o segredo a sete chaves. Por exemplo, a família real espanhola descobriu como usar as gemas do vento para acelerar seus navios em alto-mar, o que faz da marinha espanhola a mais rápida do mundo.

    “Então não é algo universal. Que complicado.”

    — Respondendo à sua pergunta inicial — Tassi retomou, — cerca de 10 a 20 em cada 100 pessoas podem usar alguma gema mágica. Talvez até mais, já que não fazemos testes para descobrir adeptos de gemas inúteis. Quanto às gemas úteis… são cerca de 2 em cada 100. Não, uma seria muito pouco… 3 em cada 100? Acho que isso já seria demais.

    — Entendi. Então, em média, 2,5 em cada 100 pessoas podem usar gemas mágicas úteis.

    — Como assim? — ela franziu a testa, confusa. — Não se pode ter metade de uma pessoa! Vai cortá-la ao meio?

    — Ha ha ha, não é isso! — Carlos riu. — É como você disse: 2 é pouco e 3 é muito. Então, na média, às vezes você acha uma pessoa, às vezes duas… logo, 2,5.

    — Acho que entendi… — disse Tassi, ainda parecendo um pouco cética. — E quanto à sua pergunta sobre quantas pessoas podem usar mais de uma gema… eu diria que metade das pessoas que podem usar gemas mágicas podem usar mais de uma. E metade dessas pode usar três gemas ou mais.

    Ela fez uma pausa, respirou fundo e continuou: — Então, de 100 adeptos, 50 podem usar duas gemas ou mais. Dessas 50, cerca de 25 podem usar três gemas ou mais, e assim por diante.

    Quando Tassi terminou de falar, ela esfregou as têmporas, como se estivesse saindo fumaça de sua cabeça de tanto calcular.

    “Entendo. Ela sabe bastante. Então existem pessoas realmente poderosas que podem usar várias gemas. Lembro-me dos capitães do mato: um lançava flechas de fogo e outro controlava videiras. Agora imagine alguém que pudesse usar ambos. Espera… será que se uma pessoa tivesse os dois poderes, poderia criar videiras flamejantes? Só de pensar nisso me dá calafrios.”

    — É possível combinar os poderes?

    — Claro — Tassi confirmou, — mas é difícil. O artesão mágico precisa entender profundamente ambas as gemas. Você me viu usando o cajado para fazer as plantas crescerem, não foi? Pois bem, aquele artefato combina a gema da terra e a gema da grama para fazer a cana-de-açúcar crescer e permanecer boa para o processamento.

    — Mas quando fomos atacados pelos capitães do mato, eles também faziam as plantas crescerem, e parecia que cada um usava apenas uma gema.

    — Bem notado — ela elogiou. — A gema da grama sozinha pode fazer plantas crescerem, mas elas não duram muito e seus frutos não têm sabor e não saciam a fome; é como beber água do mar para matar a sede. Se usasse apenas a gema da grama na cana, seria impossível produzir açúcar. É aí que entra a gema da terra: com seu poder, é possível controlar o solo e torná-lo mais fértil. Mas saiba que, com aquele cajado, só consigo acelerar o crescimento e dar nutrientes. Não posso fazer mais do que isso.

    — Nossa, que ‘apelação’! Imagina alguém que pudesse usar cinco gemas mágicas e combiná-las.

    — Não sei o que é ‘apelação’ — Tassi respondeu, — mas não é tão simples. Para cada gema que a pessoa usa, ela precisa de um artefato mágico. Alguém pode ser adepto de 5 gemas, mas não é fácil carregar 5 armas. Claro, existem artefatos, como meu cajado, que combinam gemas, mas isso é raro, pois fundir poderes é complexo. E a qualidade das gemas que uma pessoa pode usar é mais importante que a quantidade.

    — Por exemplo — ela continuou, seus olhos perdendo o foco como se revivesse uma memória, — já enfrentei oponentes que usavam até 5 gemas e foram mais fáceis de lidar do que outro que usava apenas 3: as gemas da terra, do fogo e da força. Essas são formidáveis.

    — Ele usava uma pulseira na perna com a gema da terra, que lhe permitia erguer muralhas para defesa, criar buracos para atacar e até lançar nuvens de poeira para cegar seus inimigos. Também nos atacava com flechas de fogo que lançava através da poeira. E, como se não bastasse, era mais rápido e forte devido à gema da força que carregava num colar. Um oponente com apenas essa gema já é formidável; combinada com as outras, ele se tornou um monstro. E, para completar, possuía uma reserva de mana colossal.

    “Pelo visto, ela já lutava muito antes de virar escrava. Isso explica sua resistência diante do senhor do engenho.”

    — Isso sim que é ‘apelação’! E como você o derrotou?

    — Não foi fácil — ela admitiu, seu tom se tornando sombrio. — Eu erguia muralhas de terra para me defender e abria buracos sob seus pés, mas como ele também usava a gema da terra, entendia minhas táticas. Só consegui contê-lo com as videiras que controlava com meu cajado da grama, mas sua força lhe permitia arrancá-las facilmente.

    “Nossa, parece ‘Avatar’, que incrível. Como eu gostaria de ter um poder assim. A Tassi realmente é impressionante. Mas, pelo que ela está contando, isso não aconteceu aqui no Brasil.”

    — Era apenas um homem, e éramos cinco guerreiras… e mesmo assim estávamos perdendo. Duas de nós morreram. Uma caiu em um buraco que ele criou, e ele o soterrou na mesma hora, esmagando-a. A outra estava encurralada na poeira, tentando desviar das flechas de fogo, quando ele surgiu através da poeira e a cortou ao meio com sua espada, tal era o poder da gema da força. Foi uma luta brutal, mas no final o capturamos, só porque estávamos em maior número e conseguimos esgotar sua mana completamente.

    “Nossa, acho que estou sonhando acordado. Isto não é um desenho. Pessoas morrem de verdade nessas lutas. Mas me pergunto o que ela fazia antes de vir para cá.”

    — O que você era, exatamente, antes de se tornar escrava?

    — Imaginei que você perguntaria isso — Tassi disse, um sorriso amargo tocando seus lábios. — Posso até responder, mas, em troca, você terá que me contar de onde veio.

    — Tudo bem — Carlos concordou, sentindo que a negociação era justa. — Você ganhou.

    Com um sorriso triste, ela começou: — Bom, eu fazia parte de um exército de mulheres do Reino do Daomé. Éramos conhecidas como as Guerreiras Mino, e éramos consideradas tão fortes quanto qualquer homem.

    — Mas não me orgulho do meu passado, porque só fazíamos o que o rei ordenava. Lutávamos contra reinos vizinhos, capturávamos os derrotados e, às vezes, sequestrávamos civis. Vendíamos todos como escravos para os europeus. O rei usava o dinheiro para comprar armas mágicas europeias, que são as melhores. Com essas novas armas, podíamos atacar mais reinos, conseguir mais escravos, vender e comprar mais armas… e assim o ciclo vicioso continuava.

    — Na época, eu justificava nossas atrocidades pensando que, se nosso reino não fizesse isso, outros reinos o fariam, ficariam mais poderosos e nós acabaríamos escravizados. Agora não acredito mais nisso. Enquanto nos vendíamos e matávamos uns aos outros, os europeus ficavam mais ricos, mais fortes e mais habilidosos na fabricação de armas. E nós? Mais fracos, com menos gente e mais pobres. Um dia, os reinos europeus perceberão que não precisam de um intermediário; podem usar sua riqueza e poder para escravizar um reino inteiro diretamente.

    “Foi exatamente o que aconteceu no meu mundo… Sendo sincero, é fácil julgar esses reinos pelas suas ações, mas se eu fosse um rei naquela situação, como agiria diferente? Se me recusasse a participar, como conseguiria armas para me defender?”

    Carlos permaneceu em silêncio, observando o arrependimento e uma tristeza profunda nos olhos dela.

    — No fim, não percebi que nossas lutas eram fúteis. Em vez de usufruir de minha liberdade, passei a vida destruindo a liberdade alheia. Até que chegou minha vez de perdê-la. Fomos emboscados enquanto retornávamos com um grupo de cativos. Eles eram mais numerosos e nos venceram. Então, fui eu quem foi vendida como escrava. Passei meses num porto, esperando minha vez de ser enviada para a ‘terra sem volta’. Por sorte, durante a emboscada, fui neutralizada rapidamente. Foi até bom, pois não fui identificada como uma escrava com aptidão mágica — essas sempre valem mais. Fui vendida como escrava comum, e não ia corrigi-los para que lucrassem mais à minha custa. Infelizmente, cheguei aqui e fui forçada a fazer o teste de aptidão pelo senhor.

    — É irônico — ela sussurrou, o olhar fixo no chão de terra. — Passei a vida capturando pessoas e as escravizando, só para me tornar uma escrava também. Pelo que tanto lutei? Por que minhas companheiras perderam a vida? O destino pode ser muito cruel.

    — Mas ainda tive sorte comparada a outros, porque sabia o que me esperava. Como vendíamos escravos para os portugueses, aprendemos um pouco do idioma e ouvimos falar do que faziam conosco. Então, eu sabia. Aliás, um dos portugueses com quem eu costumava negociar me reconheceu quando me viu no leilão.

    — E o que ele fez? — Carlos perguntou, quase sem fôlego.

    — Nada. Apenas desviou o olhar.

    — Enfim — ela disse, erguendo a cabeça com uma determinação renovada. 

    — Deixe-me me apresentar corretamente. Meu nome é Tassi Hangbé. Este é o nome que minha mãe me deu. Não que me orgulhe dela, já que me vendeu para ser uma guerreira ou uma concubina do rei. Quando cheguei aqui, o senhor do engenho me ‘batizou’ como Catarina de Oliveira. Posso ter sido feita escrava, mas não perderei minha identidade. Então, me chame de Tassi, assim como todos aqui me chamam.

    — Jorge já me tirou muitas coisas, mas meu nome, não. No começo, ele açoitava qualquer um que me chamasse de Tassi. Mas eu tenho algo que ele deseja: meu poder para fazer a cana crescer e o solo ficar fértil. Infelizmente para ele, sou difícil de controlar, então ele queria alguém mais… maleável. Por isso, fui forçada a parir uma criança que tivesse meus dons.

    Ela fez uma pausa, e Carlos pôde ver a dor crua em seus olhos. O ar ao seu redor pareceu ficar mais frio.

    — Tive que me deitar com muitos homens, mas não queria trazer uma criança para este inferno. E eu conheço… métodos, aprendidos com minhas companheiras de armas, para evitar que a gravidez prosseguisse.

    “Nossa, que pesado. Que coisa horrível…”

    — No final, o senhor descobriu. Mas não conseguia me fazer ter um filho, não importava o quanto me torturasse. Então, fiz um acordo: meu nome, em troca de uma criança.[

    — Eu realmente não queria — sua voz quase sumiu em um sussurro. — Mas até eu tenho um limite para a tortura que posso suportar. Tive que ceder. Pelo menos, consegui manter meu nome.

    “Nem sei o que faria no lugar dela. Lembro de ter lido que escravos as vezes comiam terra para cometer suicídio… agora entendo perfeitamente o porquê… Espere, ela disse algo muito importante. Então a aptidão para gemas é hereditária? E quem é o filho dela? Só consigo pensar em uma criança…”

    — Enfim — Tassi disse, sacudindo a cabeça como para afastar os fantasmas. — Esta é a minha história. E gostaria muito de ouvir a sua agora, e como você conseguiu escapar antes. Mas… — seu olhar se fixou atrás de Carlos, e sua expressão endureceu. — Infelizmente, o ‘dedo-duro’ está vindo para cá.

    Ela apontou com o queixo discretamente em direção a Pedro, que se aproximava deles com passos decididos

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota