Capítulo 12 - Ela também é vítima
Carlos acabou passando a tarde toda deitado de lado em sua cama na senzala. Ficou deitado por conta das chibatas que levou nas costas, mesmo tendo passado a pomada mágica, a dor ainda continuava e era melhor descansar para curar mais rápido.
Enquanto ficava deitado, acabou adormecendo e acordou apenas na hora da janta.
“Não acredito que vou passar meu domingo dormindo, já está acabando. Não fiz nada, apenas fui na igreja e levei chibatas por não falar com o senhor do engenho.”
Carlos pegou a comida e foi se sentar próximo da Tia Vera que estava sentada no chão comendo feijão e farofa. Assim que o viu, não pode deixar de demonstrar um olhar de preocupação.
— Menino, fiquei sabendo do que aconteceu. Sinto muito por isso, acho que podia ter te avisado que nós que trabalhamos na casa grande temos que trabalhar todo dia.
— Não se preocupe com isso tia, você não tem culpa. O velho que deveria ter me avisado que teria que trabalhar até no domingo.
— Mesmo assim me sinto culpada. Para compensar, acho que posso te dar um presentinho.
“Será mais caju? Apesar de ser bom, eu gostaria de algo diferente.”
— Sabe aquela receita com o tal do cacau em pó que você me passou? Então hoje eu fiz essa receita e o bolo ficou maravilhoso. A senhora do engenho amou e o filho dela também, ela até me disse: “Nega, maluca você usou todo cacau em pó mas eu nem posso te criticar porque esse bolo ficou maravilhoso, acho que nunca comi um bolo tão gostoso na vida! Até o Juquinha que é muito chato com comida amou!”, aliás me perguntou o nome do bolo, mas você me passou a receita toda menos o nome, e na hora não queria falar seu nome porque o patrão estava bem irritado com você, então fiquei meio nervosa na hora e apenas repeti o que a patroa me disse: “nega maluca”.
Carlos não pode deixar de dar risada ao ouvir isso.
— Não ria não menino, na hora a senhora também riu um monte do nome.
— Pois esse bolo vai se chamar nega maluca a partir de agora. E aposto que a senhora Alice amou o nome “Afinal esse bolo se chama mesmo nega maluca, mas que coincidência hein. Aliás será que o bolo se chama nega maluca1 por causa de algo assim também?”
— Só não te bato menino, porque preciso que me passe mais dessas receitas boas. Aliás, o seu presente é um pedaço do bolo que a senhora deixou pra mim.
— Não precisa, pode comer, afinal foi você que fez.
— Nada disso menino, já comi junto com a senhora. Além disso, ela acha que inventei a receita, então para te compensar, o mínimo que posso fazer é te dar um pedaço.
— Tudo bem, se a tia insiste então aceito, mas essa receita também não fui eu que inventei, ela é da minha terra também.
— Então me passa mais receitas da sua terra depois. Agora já tenho que dormir porque amanhã acordo cedo para fazer café na casa grande.
Tia Vera se levantou e foi dormir e Carlos foi logo depois.
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No dia seguinte Carlos acordou mal humorado.
“Não acredito que já tenho que ir trabalhar na roça de novo. Minhas costas ainda doem, e minha perna tinha acabado de curar. Não aguento mais essa vida, tô fedendo pra caramba, papel higiênico, comida, folga! Também preciso de um banho, e pior ainda ontem fiquei sabendo que tarde todo mundo foi tomar banho no rio, mas como estava dormindo ninguém me chamou!”
Apesar de reclamar internamente, foi trabalhar no canavial. A manhã parecia durar uma eternidade por conta do sol escaldante em suas costas cheias de feridas. Quando chegou de tarde, veio até uma animação pois escaparia do calor escaldante e poderia ficar na casa grande, no “ar condicionado” fornecido por Pedro.
Saiu do canavial em meio a olhares de ódio e raiva dos demais escravos.
“Agora eu entendo porque os demais escravos não gostam de quem trabalha na casa-grande, é tudo inveja! Mas não deveriam ter inveja de mim, do Pedro e da Tia Vera. Deveriam ter ódio da pessoa que deixa a gente nessa situação. Ficar na casa-grande é até confortável, mas a gente está lá para trabalhar. Mesmo eu tenho que me segurar para não cair no soco com aquele velho imundo. Tomara que o comerciante volte com armas para mim, essa é a única esperança para poder escapar daqui.”
Entrando na casa grande e na cozinha pode ver a esposa do senhor do engenho a Alice e a Tia Vera conversando. Passou sem dar muita atenção a elas e foi para a escada. Mas antes de subir pelo canto do olho, Carlos notou algo estranho. Os olhos de Alice estavam vermelhos e havia um roxo nos braços brancos e magros dela.
“ O que será que aconteceu? Pelo que a Tia Vera falou, a esposa do velho do engenho parecia estar feliz, mas aquele vermelho nos olhos parecia choro. De qualquer forma não me importa, ela também é uma pessoa horrível por ser dona de escravos, e tenho outras coisas para fazer agora.”
Rapidamente subiu as escadas e foi para o escritório., Ao entrar no escritório notou que Jorge estava mau humorado como sempre e Pedro estava ao lado dele providenciando um ar frio para o quarto. Também pode sentir um leve cheiro de cachaça vindo do quarto.
— Finalmente você veio! Achei que você não iria vir hoje também!
“Como sempre está mau humorado, de que adianta ser dono de tantas pessoas e ter tanto dinheiro se você nem consegue ser feliz?”
— Desculpe o atraso senhor, na próxima vez chegarei mais cedo.
Ultimamente estava sendo obrigado a ler todos os livros e explicar todos os conceitos para o senhor do engenho. Mas é claro que fingia que não sabia muitos dos conceitos, ainda mais qualquer coisa que envolvia armas ou algo do tipo. Afinal não era bom dar muitas informações. Dessa forma, passou a tarde até chegar a noite.
“Consegui sobreviver mais um dia sem ser torturado. Mas aquele bafo de cachaça que tinha hoje estava insuportável. Espera aí, a mulher dele estava com o braço roxo e parecia que havia chorado, mais o cheiro de cachaça vindo dele. Não acredito que aquele verme bateu na esposa!”
À noite, foi confirmar sua hipótese com a Tia Vera.
— Tia Vera, a senhora sabe porque a mulher do senhor do engenho estava cheia de marcas roxas hoje?
— Menino, você notou isso? Esperava que você não tivesse notado, você é bem atencioso com detalhes mesmo. Esperava que você não tivesse notado, mas tudo bem, te falo o que houve.
Vera suspirou fundo.
— O patrão não é ruim só com a gente, também é muito ruim com a senhora Alice, mesmo que não tenha feito nada. Domingo à noite ele estava bufando por conta do que aconteceu na igreja e com a fala Tassi, também havia se irritado com você.
— Quando fica irritado desse jeito acaba bebendo para se acalmar. Começou a beber cachaça, mas nem sei porque faz isso para se acalmar sendo que nunca se acalma, muito pelo contrário, fica pior ainda. A senhora Alice me contou o que houve.
— A senhora Alice me contou que o Seu Jorge começou a ficar jogando as coisas da cozinha e a quebrar tudo. Já conhecendo esse hábito dele se trancou em seu quarto com seu filho. Infelizmente o Juquinha, o filho dela, estava com muito medo por conta do barulho e começou a chorar muito alto, a senhora Alice tentou consolá-lo, mas não adiantou.
— Seu Jorge ouviu os choros e subiu as escadas resmungando alguma coisa. Arrombou a porta do quarto e mandou a criança calar a boca: “Faça essa criança calar a boca! Você não serve para nada mesmo, era para você me dar um herdeiro que fosse apto das gemas que uso. Mas você só me dá esses trastes.” Jorge então pegou sua cinta e foi para perto da criança e disse: “Se comporta como homem porra, homem que é homem não chora! Mas se quer tanto chorar, vou te dar motivos para chorar!”
— Seu Jorge tirou o Juquinha dos braços de Alice que tentou resistir mas não conseguiu segurá-lo. Em seguida ele começou a bater na criança, mas batia com muita força, em uma hora a fivela do cinto acertou Juquinha na cabeça o que o derrubou e a cabeça dele começou a sangrar.
— Nessa hora a senhora tentou impedir falando para parar e agarrando o braço dele, seu Jorge apenas a empurrou com o braço e a derrubou no chão e começou a bater nela gritando: “Eu sou o homem dessa casa e é assim que você me trata, vou te ensinar a me respeitar!”, largou a cinta e começou a bater nela com socos e chutes.
— Depois de bater nela um monte ele se cansou e foi dormir. Assim que dormiu a senhora pegou o Juquinha e foi correndo levar ele ao padre.
— Sabe, todos os filhos dela saíram ou foram estudar na metrópole, ou foram para a cidade trabalhar e nunca mais voltaram para esta casa. Já as filhas dela casaram o mais cedo possível. Tudo para fugir do pai. Claro que eles sempre chamam a mãe deles para ir com eles. Mas o senhor nunca deixa a senhora Alice ir. Não enquanto ela não der um filho que possa usar as gemas da defesa e defesa divina que nem ele. Esse é o décimo segundo filho dela, se até agora não deu um filho que podia usar gemas mágicas, quer dizer que Deus não quer que isso aconteça, mas o senhor Jorge não entende isso.
“Meu Deus que história trágica. Acho que me enganei sobre Alice, ela é tão vítima daquele velho imundo quanto nós somos.”
— Toda vez que o patrão bebe é a mesma coisa, fica muito agressivo e se irrita com qualquer coisa. Teve uma vez que eu estava na casa-grande quando bebeu, tentei ficar quietinha, porque se é isso que faz com a própria esposa quando bêbado imagina o que faria com uma escrava como eu. Infelizmente esqueci de pôr o pote de sal na mesa na hora do jantar, e por um erro bobo desses pegou uma cadeira e acertou minhas costas, elas doem até hoje por conta disso, infelizmente as pomadas do padre não fazem milagres.
“Realmente todo mundo é vítima desse degraçado aqui, tenho que dar um jeito de salvar todo mundo.”
— Sabe, dói meu coração ver a senhora Alice sofrendo tanto. Você já viu a patroa, por vezes ela tem um olhar tão vazio, não olha pra ninguém, mas não é porque seja uma pessoa ruim, apenas não tem mais razão de viver. Está viva por conta do Juquinha. Muito escravo daqui acha que a patroa vive bem, que daria a vida para ter a vida dela, mas convivo com eles há 30 anos e sei bem que a patroa não tem uma vida boa,, ela não trabalha tanto quanto a gente, mas por dentro por vezes parece morta…
— Me pergunto, o que vai acontecer com ela quando esse último filho dela for embora também. Tem um olhar tão vazio ultimamente, acho que talvez, possa acabar fazendo algo que a mande para o sofrimento eterno.
— Menino, desculpa estar falando demais. Imagino que o Pedro deve ter te falado que ninguém por aqui vem muito falar comigo. Sabe tento ser alegre e ver o lado bom da vida, mas tem dias que não suporto, e só de ter mais alguém para conversar já ajuda muito.
Nesse momento Carlos não sabia o que falar. Ele apenas pegou e abraçou a Tia Vera, o que a fez chorar.
Depois desse desabafo, a Tia Vera foi dormir e Carlos foi se deitar, mas sem muito sono.
“A Tia Vera suporta muita coisa. Deve se sentir muito culpada por só ficar observando a situação, pois parece se importar muito com a esposa do velho. Foi de partir o coração ver uma pessoa tão doce e alegre desabar daquele jeito. Não posso nem falar que não aguento mais essa vida sendo que não sofri um porcento do que as pessoas daqui sofreram, tomara que o comerciante venha logo com as armas.”
Enquanto pensava essas coisas, aos poucos foi pegando no sono.
- Segundo a lenda uma escrava que nem falava português direito, e por isso era considerada como “Nega Maluca”, estava fazendo um bolo quando derrubou tudo o chocolate em pó na massa que estava batendo mas mesmo assim continuou fazendo o bolo, os patrões amaram o bolo que ficou conhecido como “Bolo da Nega Maluca” e depois apenas “Nega Maluca”. ↩︎
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