Índice de Capítulo

    No engenho de Seu Jorge, os dias se arrastavam num ciclo monótono de sofrimento. O ar pesado e doce do caldo de cana se misturava ao cheiro de suor e terra úmida. O estalido seco dos chicotes ecoava com uma frequência dolorosamente familiar, intercalado com os gritos abafados dos escravizados. Enquanto isso, na casa-grande, o cheiro adocicado e enjoativo da cachaça parecia perpetuar a atmosfera de violência.

    Carlos mantinha sua rotina: o trabalho exaustivo no canavial sob o sol inclemente e as tardes na sala abafada do senhor, explicando os misteriosos “artefatos do diabo”. Mas por trás da fachada de submissão, sua mente fervilhava. Cada dia que passava aumentava sua ansiedade pela volta do comerciante Francisco. A promessa de armas era um fio de esperança que o mantinha são, uma chance real de liberdade. E ele não era o único que aguardava aquele dia com expectativa.

    Jorge também contava os dias. A despeito do ceticismo que nutria sobre as intenções de Carlos, uma curiosidade mórbida o consumia. Como seriam usados aqueles artefatos? Ele os imaginava como armas exóticas, mas sentia-se invencível com suas gemas de Defesa e Defesa Divina reluzindo em seu colar. Nada, pensava, poderia penetrar suas barreiras mágicas. Pedro, sempre solícito, sussurrara sobre as conversas furtivas entre Carlos e Tassi, alimentando sua desconfiança, mas também sua confiança.

    “Não importa o que esse negro traiçoeiro planeje” 

    resmungou Jorge para si mesmo, enquanto observava Carlos no canavial “ele já me passou todo o conhecimento que tinha. Acha que não percebi que vem me enrolando nas explicações? E ainda por cima é lento no serviço. Se tentar qualquer coisa, esmagarei-o como um inseto. Não tenho nada a perder.”

    Tassi, por sua vez, observava tudo com um olhar calculista, uma pequena chama de esperança ardendo em seu peito. Pedro, dividido entre a lealdade forçada e o amor pelo filho, não sabia o que esperar, sentindo o peso do conflito que se aproximava como uma tempestade no horizonte.

    Finalmente, o dia tão aguardado chegou. O ar parecia diferente, carregado de uma tensão elétrica. Carlos trabalhava no canavial, mas sua mente estava longe dali, seu corpo suado e dolorido era apenas uma casca vazia. Sentimentos conflitantes — coragem, medo, esperança e desespero — lutavam dentro dele.

    “Tomara que tudo dê certo”, pensou, suas mãos trêmulas agarrando o cabo da enxada. “Se o Francisco não trouxe as armas, vou ter que continuar nesse inferno só Deus sabe por quanto tempo. Não só eu… a Tia Vera, a Tassi, o pequeno Juquinha… Preciso conseguir. Mas, meu Deus, nunca matei ninguém. Nunca nem briguei de verdade. A última vez foi uma discussão besta no ensino fundamental…”

    No final da tarde, enquanto Carlos mecanicamente explicava as funcionalidades de um isqueiro para Jorge, Jairo irrompeu na sala com a notícia. O comerciante havia chegado. Carlos sentiu um calafrio percorrer sua espinha e teve que conter cada fibra do seu corpo para não sair correndo.

    — É melhor levarmos aquele artefato de invocação também — Carlos disse, apontando para a arma decorativa na estante de Jorge, sua voz surpreendentemente estável.

    — Hum! Claro — grunhiu Jorge, seus olhos estreitados. — Mas o Pedro ficará com ela. E ouviu bem, menino? Se tentar qualquer coisa contra mim, você nunca mais verá o sol nascer!

    — Claro, meu senhor. Jamais faria nada contra o senhor — Carlos baixou a cabeça, escondendo o ódio que fervia em seus olhos.

    “Acha que nasci ontem, seu preto desgraçado”, pensou Jorge, desdenhosamente. “Apenas me mostre por que se interessa tanto por esse artefato. Se for uma arma, quero ver como funciona. Nada atravessa meus escudos mágicos.”

    Enquanto os três desciam em direção ao comerciante, Tassi executava seu próprio plano. Deixara o corpo fraco e suado, fingindo ter esgotado sua magia no canavial.

    “Ainda bem que sempre uso apenas uma fração do meu poder aqui”, pensou, sentindo o suor frio escorrer por suas têmporas. “Nunca desconfiaram que minha reserva real é muito maior. Hoje, usei o dobro. Para eles, estou esgotada. E o cansaço que sinto é real o suficiente para convencê-los. Graças a Deus suo com facilidade… nunca imaginei que isso seria uma vantagem.”

    Enquanto se aproximavam do lago onde Francisco esperava, Carlos repassava mentalmente cada etapa de seu plano.

    “Vou com calma. Inspeciono as balas, as armas. Carrego o máximo de cartuchos que puder. Miro primeiro no Jairo e descarrego tudo. Depois, no Jorge. Os outros capatazes… lido com eles se reagirem. Tassi disse que a defesa dele não é impenetrável. Mesmo que as balas não o atravessem, podem esgotar a magia das gemas. Se não der certo… ele me mata. Já ensinei quase tudo sobre a coleção dele, mas escondi informações cruciais. Morrer seria melhor do que viver assim, mas não é o que planejo.

    “Pena nunca sequer toquei numa arma de verdade… tem uma primeira vez para tudo. É só manter a calma e controlar o coice.”

    Francisco estava sentado em uma pedra à beira do lago, seu burro amarrado à carroça próxima. O ar carregava o cheiro de água parada e folhas molhadas. Tia Vera e Dona Alice já vasculhavam os itens da carroça. Para surpresa de todos, Alice, normalmente cabisbaixa e apática, sorria abertamente enquanto segurava um pacote de cacau em pó, sussurrando animadamente com Tia Vera sobre o bolo “Nega Maluca”.

    — Boa tarde, Seu Jorge! — cumprimentou Francisco, levantando-se rapidamente. — Como prometido, trouxe tudo o que o senhor pediu. Entretanto, meu fornecedor insistiu que só liberaria os itens se visse pessoalmente o tal método de invocação do seu escravo.

    — Excelente notícia! Você nunca decepciona — respondeu Jorge, com um sorriso largo. 

    — E isso não será problema. Quanto mais pessoas souberem invocar esses artefatos, mais eu poderei colecionar. Agora, vamos ver se o meu escravo também não vai me decepcionar. Vá, Carlos. Escolha o que precisa para a sua “invocação”.

    O coração de Carlos batia tão forte que ele temia que todos pudessem ouvir. Dirigiu-se à carroça e, ao ver o conteúdo, quase perdeu o fôlego. Havia não uma ou duas armas, mas várias, e não um punhado de balas, mas sacos inteiros, cheios de munição reluzente.

    “Meu Deus… esperava no máximo dez balas e talvez uma arma, com muita sorte. Mas isso aqui… é um arsenal. Quem é o fornecedor desse Francisco? Só pode ter vindo diretamente dos Estados Unidos. Mas isso não importa. O que importa é que conseguiu.”

    — Preciso… preciso apenas dos itens para analisá-los — disse Carlos, tentando disfarçar a euforia na voz. — Mas me parecem muito promissores.

    Sem perder tempo, ele pegou as armas e os sacos de munição e os colocou no chão. Com a arma de Jorge, eram quatro no total: três pistolas semiautomáticas e um revólver. Carlos não era um especialista, mas sabia o básico: cada arma tinha um calibre específico. Felizmente, os números estavam gravados nos canos.

    — Vou começar o processo. É um pouco lento, peço paciência — alertou, ajoelhando-se.

    — Apresse-se! — rosnou Jorge, impaciente.

    Carlos ignorou a grosseria e focou na tarefa, sentindo o suor frio nas mãos. Começou a separar as balas, organizando-as por calibre. Enquanto isso, mantinha um fluxo constante de explicações nonsense, fingindo descrever um ritual complexo.

    — Basicamente, cada artefato maior precisa dos seus mini-artefatos correspondentes. Estou fazendo a sincronização.

    A separação da munição levou quase uma hora. Em seguida, veio a parte mais tensa: carregar os carregadores. Seus dedos, úmidos de nervosismo, tremiam levemente enquanto pressionava cada bala, uma a uma, sob o olhar atento e desconfiado de Jorge, Jairo e Pedro. Nesse ínterim, Tia Vera e Alice, alheias à tensão, recolheram-se à casa-grande. Tassi observava tudo, escondida entre as sombras das árvores.

    “Vou usar esta pistola primeiro. Tem capacidade para quinze tiros, Carlos planejou, olhando discretamente para as armas no chão. Não tenho bolsos nesses trapos… vou ter que deixar as outras aqui. Melhor não tentar ser herói e usar duas ao mesmo tempo. Sou um amador.”

    Respirou fundo, enchendo os pulmões com o ar pesado do final de tarde.

    — O processo está finalizado. Vou demonstrar como funciona.

    Jorge viu Carlos se levantar lentamente, a pistola firmemente empunhada. Um sorriso de desdém cruzou seu rosto.

    “Realmente, é uma arma. Mas que arma ridícula, sem nenhum brilho mágico. Acha que pode rivalizar com o poder das gemas? A Tassi deve ter contado sobre minha defesa… que tolo. Estou curioso para ver o que essa coisa faz. Deve disparar flechinhas, ou algo igualmente patético. Vou levantar minhas defesas e assistir ao espetáculo. E depois… bem, este escravo terá cumprido seu propósito.”

    — Jairo, fique atrás de mim! — ordenou.

    Assim que o capataz obedeceu, Jorge ativou as gemas em seu colar. Instantaneamente, duas barreiras translúcidas materializaram-se no ar à sua frente — uma de um branco leitoso e outra de um cinza escuro —, protegendo-o da cabeça aos pés.

    — Achou que eu era burro?! — ele gritou, triunfante. — Se tivesse falado a verdade, talvez eu te deixasse viver!

    Sua fala foi interrompida por um estrondo ensurdecedor.

    BANG!

    Algo invisível e violentíssimo atingiu a barreira branca com força brutal. Jorge sentiu o impacto ecoar através da magia, um tremor que percorreu seus ossos. O choque foi tão grande que ele mal pôde processar o que acontecera antes que…

    BANG! BANG! BANG! BANG!

    Uma saraivada de tiros sucessivos atingiu suas defesas. Carlos, lutando contra o coice surpreendentemente forte da pistola, mantinha o dedo no gatilho, mirando firmemente. A cada disparo, um novo ponto de luz brilhante surgia na barreira mágica.

    A pistola emitiu um clique seco.

    “Quinze! Acabou o carregador! Maldição! A defesa dele ainda está de pé! Vou morrer!”

    Sem hesitar, ele jogou a arma vazia no chão e agarrou a segunda pistola. BANG! BANG! BANG! Desta vez, um som diferente — um crack agudo e cristalino — cortou o ar. A barreira branca estilhaçou-se em mil fragmentos de luz que se dissiparam instantaneamente.

    Jorge mal teve tempo de expressar seu choque. BANG! BANG! BANG! BANG! BANG! Os tiros seguintes perfuraram a barreira cinza, mais fraca, e encontraram seu alvo de carne e osso. A maioria dos projéteis atingiu seu peito, arrancando gritos abafados. O último, tragicamente preciso, acertou sua têmpora. Seus olhos, ainda abertos de incredulidade, vidraram-se. Seu corpo desabou pesadamente no chão, um fio de sangue escuro escorrendo pela pedra.

    Jairo, que se jogara no chão no primeiro tiro, assistira horrorizado à queda de seu senhor. Um ódio cego, não pela morte de Jorge, mas pela perda de seu sustento, tomou conta dele.

    — Seu preto desgraçado! Você vai pagar por isso!

    Ele se levantou e correu em direção a Carlos, brandindo seu chicote. Estalou-o no ar com um CRACK! que soou como um trovão, liberando uma rajada de vento mágico que atingiu Carlos como um murro, arremessando-o para trás.

    Atordoado, com os ouvidos zunindo, Carlos viu Jairo avançando para outro ataque. Sem tempo para se levantar, apontou a pistola e puxou o gatilho. BANG! O tiro, mais por sorte do que por habilidade, acertou a canela do capataz.

    — AAGH! Seu verme! — Jairo gritou, caindo de joelhos.

    Carlos tentou esvaziar o carregador, mas a arma apenas clicou, vazia. Jairo, mesmo ferido, arrastou-se para frente e estalou o chicote mais uma vez. O chicote embutido com magia de vento e podridão cortou o ar e atingiu o braço de Carlos com um estalo úmido.

    — AHHH!

    Uma dor excruciante, aguda e quente, explodiu em seu braço. Ele sentiu a carne se abrir e soltou a pistola, gritando. Um cheiro fétido, de carne apodrecendo, começou a emanar do ferimento. Vendo a abertura, outros capatazes começaram a se aproximar, corajosos agora que Carlos estava vulnerável.

    “Merda! Estou perdendo!”

    Ele rolou para trás, evitando por pouco outra chicotada. Todas as armas estavam agora no alcance de Jairo. A esperança começou a se esvair.

    Foi então que uma pedra, arremessada com força e precisão de entre as árvores, acertou a lateral da cabeça de Jairo com um baque surdo. O capataz cambaleou, atordoado.

    Sem questionar o milagre, Carlos, impulsionado pela adrenalina que agora suprimia a dor, arrastou-se para frente e agarrou o revólver. Jairo já se recuperava, seus olhos injetados de ódio fixos em Carlos, o chicote se erguendo para um golpe final.

    Foi quando Pedro, que observava tudo em silêncio, decidiu seu lado. Com um movimento rápido, ele chutou a perna ferida de Jairo.

    — AAGH! — O grito de dor do capataz foi estridente.

    Foi a abertura que Carlos precisava. Ele se aproximou, ergueu o revólver e, sem um pingo de remorso, puxou o gatilho. BANG! BANG! BANG! Os tiros encontraram sua marca, silenciando para sempre o capataz mais cruel do engenho.

    Os outros capatazes, que agora cercavam Carlos, hesitaram. Eles haviam visto o poder daquelas “varinhas que cospem fogo e morte”. Alguns recuaram, o medo superando a lealdade. Outros, mais corajosos ou mais estúpidos, avançaram.

    Carlos, com o revólver agora vazio, correu em direção à última arma. Foi quando Tassi saiu de seu esconderijo, pegou uma das pistolas do chão e a lançou para ele.

    — Carlos!

    Ele agarrou a arma no ar. O simples ato de tê-la em mãos foi suficiente. A coragem dos capatazes restantes se quebrou. Viraram as costas e fugiram em desespero.

    Mas Carlos não podia arriscar. Não sabia se eles voltariam com reforços ou se algum tinha poderes mágicos ocultos. Com a frieza da necessidade, ele mirou e disparou nos que fugiam. A maioria dos tiros errou, mas os que acertaram foram suficientes para derrubá-los. Quando a última arma ficou sem munição, um silêncio pesado caiu sobre o local, quebrado apenas pelos gemidos dos feridos.

    Foi então que Tassi agiu novamente, e desta vez não estava sozinha. Como um formigueiro perturbado, os outros escravizados surgiram de suas tocas, seus olhos há muito tempo mortos agora incendiados por uma chama há muito perdida. Eles não precisaram de armas. Usaram pedras, paus, ferramentas e seus próprios punhos. A vingança, reprimida por anos, foi rápida e brutal.

    A luta havia acabado.

    A adrenalina que sustentava Carlos começou a esvair-se, e a dor em seu braço voltou com uma intensidade avassaladora, latejante e quente. O fedor de podridão era nauseante. Mas havia uma última coisa a fazer.

    Cambaleando, ele se aproximou do corpo inerte de Jorge. Com a mão sã, revirou os bolsos do senhor, encontrando um pesado saco de moedas. O som metálico era a sinfonia de sua liberdade.

    Dirigiu-se então a Francisco, que estava encolhido atrás de uma roda da carroça, o rosto pálido de terror.

    — Foi um prazer fazer negócios com o senhor — disse Carlos, colocando o saco de moedas nas mãos trêmulas do comerciante. Sua voz era rouca, mas firme. — Vou para o Quilombo da Jabuticaba. Se um dia aparecer por lá, saiba que terei o maior prazer em comprar… qualquer “artefato do diabo” que o senhor tenha para vender.

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