Índice de Capítulo

    O sol escaldante batia nas costas de Carlos enquanto ele caminhava pela estrada de terra, vestindo suas roupas originais que finalmente recuperara: tênis, calça jeans e uma camiseta. O tecido familiar, embora sujo e desgastado, era um alívio após tanto tempo usando trapos.

    “Como é bom calçar sapatos de verdade outra vez”, pensou, sentindo a maciez das meias contra a pele. “E ter minhas próprias roupas de volta… Mas essa estrada está em péssimas condições, cheia de buracos e pedras. Nem sei onde estamos direito, nem quanto tempo ainda vamos ter que andar. Quem me dera ter um GPS… até tenho o celular, mas é só um peso inútil agora. Bem que podia aparecer um carregador solar por aqui.”

    À sua frente, Tassi liderava o grupo de ex-escravos com passos firmes. Todos carregavam trouxas com comida, roupas e outros itens saqueados do engenho. O ar pesado do calor trazia o cheiro de poeira e suor, misturado ao aroma doce de algumas frutas que colhiam pelo caminho. As armas ficavam com Carlos e Tassi, enquanto os demais artefatos estavam distribuídos entre Pedro e outras pessoas de confiança.

    Impaciente, Carlos acelerou o passo até alcançar Tassi.

    — Tassi, você tem alguma ideia de quanto tempo ainda vamos andar até chegar ao Quilombo da Jabuticaba?

    Ela ergueu os ombros, sem diminuir o ritmo.

    — Não sei ao certo. O povo comenta que fica dentro da Mata da Onça.

    Carlos arregalou os olhos.

    — Espera aí… então você não sabe exatamente onde fica?

    Tassi balançou a cabeça, esquivando-se de um galho baixo.

    — Claro que não! Os senhores de engenho fazem questão de manter isso em segredo. Só sei que é dentro da Mata da Onça, e que não deve ser muito longe daqui.

    O nome preocupou Carlos. “Tomara que ‘Mata da Onça’ seja só um nome e não tenha onças de verdade por lá.”

    Caminharam em silêncio por alguns minutos, apenas o som de passos e o canto dos pássaros preenchendo o ar. Foi Tassi quem quebrou o silêncio.

    — Preciso me desculpar com você. Não acreditei na sua história de ser de outro mundo.

    Carlos aceitou com um aceno.

    — Sem problemas, era natural duvidarem. Mas o que fez você mudar de ideia?

    Pedro, que caminhava um pouco atrás, aproximou-se ao ouvir parte da conversa. A curiosidade era visível em seu rosto — afinal, ele testemunhara o conhecimento único de Carlos sobre os “artefatos do diabo”. Não era só ele; outras pessoas também se aproximaram, formando um semicírculo ao redor dos dois enquanto caminhavam. Carlos sentiu um calor subir ao rosto com tantos olhares fixos nele, mas decidiu que não havia motivo para esconder a verdade.

    Tassi, ignorando a plateia que se formava, respondeu:

    — Aquelas armas claramente não são daqui, e você também não — especialmente com essas roupas estranhas. É difícil acreditar, mas não tenho explicação melhor. Poderia falar mais sobre elas? E sobre os outros artefatos? Sei que você já me explicou antes, mas na época entrei por um ouvido e saiu pelo outro.

    Carlos assentiu, entendendo.

    — Tudo bem. Para ser sincero, foi a primeira vez que usei uma arma de fogo. No meu mundo, todo mundo tem pelo menos uma noção de como funcionam. E pelo que vi dos tais “artefatos do diabo”, todos são objetos do meu mundo, assim como eu. Só não sei como vim parar aqui. — Ele fez uma pausa, olhando para as faces curiosas ao redor. — E esses artefatos não têm nada a ver com magia ou demônios. São apenas produtos da ciência e do trabalho humano.

    Um silêncio ponderativo seguiu suas palavras, até que Tassi questionou:

    — Se você é mesmo de outro mundo, como conhece a colônia do Brasil, o reino de Portugal? E fala a nossa língua? Basta ir para outro reino para encontrar idiomas diferentes!

    Carlos olhou para os olhos verdes de Tassi antes de responder:

    — Também estranhei isso. A história não é tão diferente da do meu mundo. Sou do Brasil, mas de um Brasil do futuro. A questão do idioma também me surpreendeu.

    “Brasil no futuro? Isso é ainda mais difícil de acreditar”, era o pensamento visível em todos os rostos. Apesar da desconfiança, o importante era que ele sabia usar as armas poderosas. Apenas Tassi parecia genuinamente convencida.

    — Entendo… E essas armas, qualquer um pode usar? Ou precisa ter alguma gema mágica?

    Carlos balançou a cabeça.

    — Como disse, no meu mundo não existe magia. Qualquer pessoa pode usar uma arma de fogo, basta ter a munição certa.

    A revelação deixou Tassi boquiaberta. Uma arma tão poderosa que não exigia aptidão mágica? Isso mudaria completamente as guerras.

    — No seu mundo… essas armas são comuns?

    — Depende do lugar — Carlos explicou. — Em alguns lugares, civis podem tê-las facilmente; em outros, é quase impossível. Mas para os militares… todos os exércitos do meu mundo têm armas como essas, e outras muito mais poderosas.

    Tassi mal conseguia imaginar batalhas onde todos tivessem armas tão mortíferas. A partir daquele momento, uma enxurrada de perguntas surgiu — não apenas dela, mas de Pedro e outros —, e assim continuaram caminhando até o céu começar a se pintar de laranja.

    Quando a escuridão tornou a trilha perigosa, o grupo acampou próximo a um riacho. O som da água corrente era um alívio para os ouvidos poeirentos. Acenderam fogueiras cujo aroma de madeira queimada se misturava ao cheiro do caldo que cozinhavam. Enquanto alguns vigiavam em turnos, outros se banhavam no rio, lavando a sujeira da jornada. A comida — retirada das reservas do engenho — era mais farta do que qualquer um lembrava ter comido antes.

    Após a refeição, um cansaço satisfeito pousou sobre todos. Apesar da longa caminhada, ninguém se sentia exausto como nos dias de trabalho forçado. Pela primeira vez, podiam conversar livremente, comer até se satisfazer e descansar sem medo do chicote. A liberdade, ainda que incerta, já trazia seu conforto.

    No dia seguinte, retomaram a marcha cedo, parando apenas para um rápido almoço. Não demorou para que a densa Mata da Onça se erguesse à frente, sua vegetação escura e imponente. Como ninguém sabia a localização exata do quilombo, começaram a adentrar a mata, com os homens mais fortes abrindo caminho com facões. Tassi liderava, enquanto Carlos ficava para trás, suas pernas urbanas doloridas pela caminhada intensa.

    Depois de cerca de uma hora de progresso lento pela mata fechada, Tassi gritou:

    — Parem! Olhem aqui!

    Todos congelaram. Ela apontou para o chão.

    — Tem muitas folhas de bananeira aqui, mas não há bananeiras por perto. Isso é armadilha!

    Ao remover as folhas com cuidado, revelou um buraco profundo com estacas afiadas no fundo. Um murmúrio de preocupação correu pelo grupo, mas Tassi sorriu.

    — Isso é bom! Significa que estamos perto do quilombo. Devem sofrer muitos ataques, por isso colocam armadilhas. Cuidado com onde pisam!

    Carlos sentiu um alívio ao vê-la no comando. “Ainda bem que a Tassi está liderando. Nessa situação, eu não passo de um peso morto.”

    O ritmo diminuiu consideravelmente enquanto todos pisavam com extrema cautela. A ansiedade crescia com a aproximação do anoitecer — andar na mata escura era perigoso, mas mais perigoso ainda seria pisar em outra armadilha.

    De repente, Tassi ergueu a mão novamente.

    — Parem! Estamos sendo observados — sussurrou, antes de gritar para as árvores: — Se alguém do quilombo estiver nos ouvindo, somos fugitivos de um engenho! Pedimos abrigo! Trabalharemos e lutaremos pelo quilombo!

    Carlos, apesar de confiar no plano, pôs a mão sobre sua arma, preparado para qualquer reação hostil.

    Enquanto a tensão tomava conta do grupo, um homem apareceu como que materializado da sombra. Era alto, musculoso, com uma cicatriz que lhe cortava o rosto. Estava sem camisa, usando apenas um colar com uma gema cinza.

    — Peço desculpas pelo susto — disse sua voz grave, calmante. — Geralmente não recebemos tantos visitantes de uma vez. A última vez que um grupo assim veio… foi para atacar. Mas o Quilombo da Jabuticaba dá as boas-vindas a todos que forem honestos e trabalhadores.

    Ele sorriu, mostrando dentes brancos.

    — Podem me chamar de Espectro. Sou o líder do Mocambo da Noite. Como está escurecendo, é melhor me seguirem. A mata à noite… bem, nunca se sabe que tipos de perigos rondam. Podemos conversar mais no quilombo.

    Ao ouvir o nome, exclamações de alívio e admiração surgiram no grupo: “É o Espectro!”, “O pesadelo dos senhores de escravos!”, “Dizem que ele aparece e desaparece como um fantasma!”. O ânimo se renovou instantaneamente, e todos começaram a segui-lo sem hesitar.

    Carlos aproximou-se de Tassi, curioso.

    — Ele é famoso assim?

    Tassi baixou a voz.

    — Muito. Aparece à noite, destrói engenhos, liberta escravos e some antes do amanhecer. Como um fantasma. Há lendas dizendo que é imortal e se teleporta — ela fez uma pausa dramática. — Claro que é exagero. O que você viu é o poder de uma gema de assassino, que permite ao usuário ficar invisível.

    — Nossa, que vantagem! Como se luta contra alguém assim?

    — É difícil, mas não impossível — Tassi explicou, animada. — Com uma gema da visão, você pode ver através do disfarce. E veteranos de batalha desenvolvem um sexto sentido para perceber aproximações. Ainda assim, é complicado. Felizmente, adeptos dessa gema são raros.

    Ela notou que Espectro lançara um olhar em sua direção, mas continuou:

    — Mas mais importante que o poder da gema é a pessoa que a usa. Espectro é lendário não só por libertar escravos, mas por comandar a defesa do quilombo contra portugueses, holandeses e capitães do mato. Tudo isso antes dos quarenta anos. Entende agora por que é tão respeitado?

    Carlos ficou pensativo. “Faz sentido… é como o Zumbi dos Palmares na minha história. Só espero que este quilombo não tenha o mesmo fim trágico.”

    Enquanto caminhavam sob as árvores centenárias, seus pensamentos se aprofundaram. “Quanto tempo durou Palmares mesmo? Cem anos, mais ou menos? Não importa… não posso deixar a história se repetir. Não voltarei à escravidão. Usarei todo o conhecimento que tenho para proteger este lugar.”

    Enquanto Carlos se perdia em seus pensamentos, Espectro observava Tassi discretamente. “Essa mulher… percebeu nossa vigilância sem usar nenhuma gema da visão. Melhor ficar de olho nela. O governante ainda é novo, e não sei que método vai tomar, se fosse eu mandaria espiões para conhecer o inimigo. Talvez eu esteja errado, mas… ela certamente liderou essa fuga. Não vejo outro lutador qualificado aqui.”

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