Capítulo 18 - Quilombo da Jabuticaba
O grupo de ex-escravos seguia Espectro pela mata enquanto o sol estava se pondo. As pessoas conversavam animadas e ansiosas com o começo de sua nova vida como quilombola. Depois de caminhar por pouco tempo, saíram da mata e começaram a ver vários campos e plantações. Após mais um pouco de caminhada puderam ver casas de barro com telhados de palha.
Enquanto caminhavam Tassi notou que além de Espectro havia outros guerreiros observando eles de longe. O que na sua visão era bom, afinal cautela e precaução nunca é demais.
Quanto mais caminhavam, mais casas poderiam ser vistas, cada vez mais juntas até que chegaram no centro do mocambo. Havia algumas pessoas fora das casas conversando ao redor do fogo, pessoas dançando capoeira, e crianças correndo. Ao ver o grupo de chegado, alguns quilombolas sorriam e acenavam, já outros mostravam indiferença e alguns até pareciam demonstrar certo receio.
“Parece ser um quilombo bem pequeno. Apesar de que talvez isso seja apenas um mocambo né, se não me engano, o maior quilombo que existiu o Quilombo de Palmares já chegou a ter 20 mil pessoas morando nele, o que era uma quantia de pessoas considerável considerando a época, só que não era tipo uma cidade só, eram várias cidades pequenas chamadas de mocambos que possuíam de duas mil a três mil pessoas. Tomara que aqui seja da mesma forma, afinal não tem como defender um lugar com tão pouca gente.”
Enquanto estava perdido em pensamentos, o grupo chegou a uma casa de barro bem grande se comparada às demais, então Espectro começou a falar.
— Infelizmente não temos casas o suficiente para todos vocês, mas não se preocupem, vocês podem dormir no nosso centro de festivais, não está sendo usado no momento. Por hoje é só, imagino que todos estejam bem cansados então vocês podem dormir bem, amanhã alguém irá explicar sobre a nova vida de vocês, não sou o líder desse mocambo então vocês não irão se deparar muito comigo, apenas desejo boa sorte para todos vocês.
Vendo Espectro ir embora muitas pessoas começaram a entrar na casa para descansar, antes de entrar Tassi notou que os guardas de Espectro ficaram para trás, pareciam estar vigiando o novo grupo que chegou na cidade, o que era esperado, afinal poderia muito bem haver espiões no meio das pessoas.
Já Carlos estava cansado mas o que mais sentia no momento era fome, conseguiram pegar bastante comida da casa do engenho então poderia finalmente dizer adeus a apenas comer feijão e farofa. Tia Vera também estava enjoada de preparar a mesma coisa então logo preparou uma boa refeição para todo mundo, uma feijoada de verdade, bem temperada, com arroz, carne de porco, salada, e até trouxe um bolo que fez na casa do senhor do engenho, mas para que o bolo desse para todo todo mundo, teve que entregar uma pedaço com a espessura de uma folha de papel para cada. Pedro também trouxe algo da casa do senhor do engenho, cachaça, pegou todas as garrafas que o senhor do engenho tinha e já estava bebendo.
Todo mundo comeu muito até encher bem a barriga e dormiu facilmente apesar de estarem dormindo no chão, estavam esperançosos para o dia seguinte.
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Após Espectro deixar os novos integrantes do quilombo foi falar com Aqua, que era a chefe do Mocambo da Montanha, que era o mocambo onde os recém chegados iriam morar.
— Boa noite Senhora Aqua.
— Chegou várias pessoas vindo da mata, acho que eram por volta de 40, escaparam de um engenho. Como o seu mocambo estava mais perto e tinha um lugar para eles ficarem por um tempo, deixei eles aqui, claro deixei guardas de olho neles.
— 40 pessoas, é bastante gente, são todos do mesmo lugar?
— Não perguntei muito para eles, pois todos pareciam bem exaustos, mas é realmente bem raro vir tanta gente de uma vez, escapar em pequenos grupos é mais fácil do que em um grupo grande, ainda mais porque tinha alguns idosos e crianças no grupo deles. Para isso acontecer só se conseguiriam matar todos seus perseguidores, ou se nem tiveram perseguidores para começo de conversa. To bem curioso em como escaparam do engenho, aposto que a líder foi uma mulher, ao ver ela me lembrei um pouco da senhora quando mais nova.
— Agora até eu to curiosa para conhecê-la, mas saiba que você nem me viu no meu auge.
— Verdade, quando te conheci você tinha uns 40 anos não é mesmo, de qualquer forma é uma pena que infelizmente tenho outras questões pra resolver com Ganga Zala, por isso vou deixar para a senhora investigar, depois me fala o que descobriu.
— Claro, sempre gosto de receber mais pessoas, as coisas estavam muito monótonas por aqui mesmo.
No dia seguinte Aqua acordou cedo junto com o nascer do sol, com a idade acabou aprendendo a acordar cedo. Preparou algo para comer e saiu de casa, nesse horário havia poucas pessoas nas ruas, apenas alguns agricultores que haviam acordado cedo para começar a trabalhar no campo. Após andar um pouco chegou no lugar em que os recém chegados estavam, os guardas ao lhe verem a cumprimentaram. Infelizmente era necessário manter uma certa segurança em relação às pessoas que recém chegaram nos quilombos. Agora que o governador da capitania de Pernambuco expulsou os holandeses daqui, logo ficaria totalmente focado em destruir os quilombos da região, mas no momento ainda estão se recuperando da guerra contra holandes. Por conta disto apenas mandou espiões para cá, houve até uma tentativa de assassinato ao Ganga. Prometem dinheiro, terras e liberdade para qualquer escravo que consiga matar o Ganga Zala, ou apenas mandar mais informações sobre o quilombo, Aqua não entendia como escravos poderiam matar seus próprios irmãos em troca de promessas vazias. Ao entrar na casa de festividades notou que a maioria já estava bem acordado e já havia comido. Devem ter dormido cedo no dia anterior devido ao cansaço.
— Bom dia pessoal, sou a Aqua chefe do Mocambo do Tatu. Vou explicar a nova vida de vocês, é bem simples, todo mundo que trabalhar e for honesto terá um lugar no Quilombo da Jabuticaba. Todos vocês irão receber um pedaço de terra, onde poderão fazer a sua casa e cultivar comida, só terão que nós dar o excesso de comida que vocês produzirem e os homens mais jovens terão que virar guerreiros para defender o quilombo e em caso de ataques, todos devem ajudar defesa do quilombo, até mesmo as mulheres.
— Mas não tenho nem uma enxada para cultivar terras, como vou poder trabalhar na roça?
Aqua, não viu quem disse isso, mas não se preocupou com isso, esse tipo de questão era normal para recém chegados.
— Não se preocupe, vocês receberão as ferramentas necessárias, também há um poço perto da onde vocês irão ficar, então vocês poderão pegar água de lá, e claro a comida também será providenciada para vocês até o terreno de vocês começarem a colher. Irão dormir aqui até terminarem de fazerem as suas casas. Vocês mesmo irão fazer suas próprias casas, tem um rio aqui perto onde vocês podem pegar o barro necessário. Claro se vocês não souberem como trabalhar o campo, ou precisarem de ajuda podem me chamar.
— Infelizmente ainda não podemos confiar totalmente em vocês, por isso vocês não poderão interagir com o pessoal do quilombo e muito menos sair das terras que serão dadas a vocês, e os jovens ainda não irão servir como guerreiros, não até mostrarem que são de confiança, saibam, que o quilombo não irá tolerar pessoas desonestas e preguiçosas, e se você for uma delas, irá voltar a ser escravo e trabalhará num canavial fazendo cachaça para as pessoas honestas poderem beber em dias de festas, e crimes mais sérios só vão lhe trazer a morte. Os guardas ficarão de olho em vocês por pelo menos um mês, e depois vocês poderão sair da área dada a vocês, mas as punições sempre serão aplicadas caso não sigam as regras.
Ao ouvir isso Carlos se surpreendeu um pouco: “Realmente tem escravos no quilombo… Espero que esses escravos apenas sejam criminosos e não pessoas honestas.”
— Vocês serão aceitos mais rapidamente se tiverem alguma habilidade especial, como ser apto a usar alguma gema mágica, ou tiverem conhecimentos de carpintaria, ferraria ou mesmo conhecimentos militares.
“Não é um teste infalível, mas é melhor do que aceitar todos incondicionalmente, sem contar que não dá para desperdiçar guardas vigiando eles para sempre, mas é um bom acordo e este grupo especialmente são sortudos vão receber um terreno bem fértil perto da montanha então não terão problemas para cultivar nada.”
Vendo eles Aqua se lembrou de quando criou o quilombo, sendo uma princesa no Congo teve muito a contribuir com a construção do Quilombo da Jabuticaba, desde de experiência militar como também de administração. Quando chegou o quilombo mal tinha duas mil pessoas, agora tem dez vezes mais pessoas, não foi um caminho fácil e teve muita luta, até mesmo achar um bom lugar para chamar de lar foi difícil. Tinha que ser um lugar com terreno fértil bem escondido na mata e nas montanhas, e nesse quesito deram sorte, e até tem uma mina de gemas mágicas perto, infelizmente não tem nenhum nenhum artesão mágico dentre eles para fazer bom uso das gemas, mas mesmo sem ser talhadas algumas gemas podem ser úteis.
Depois de falar sobre como funcionaria a entrada deles no quilombo, quis ouvir a história de como eles escaparam, para escapar tanta gente de uma vez é necessário ter uma fuga bem organizada com bons guerreiros. E bons guerreiros era algo que o quilombo sempre precisava, ainda mais se eles souberem usar gemas mágicas, no momento nenhum deles poderá virar um guerreiro do quilombo, mas é questão de tempo até serem aceitos.
— Então a vida de vocês será assim, mas agora quero saber de vocês, como vocês escaparam do engenho? Tem algum líder aqui para me falar tudo?
“Aquela mulher com um F marcado na testa deve ser a mulher que Espectro falou, mas devo falar que parece até mais durona que a pessoa que eu era. Certamente deve ser a líder.”
Para a surpresa de Aqua, quem veio a frente dela não foi a mulher, mas sim um homem que nem parecia ser o mais forte entre eles, e sua história a surpreendeu.. Aquele homem chamado Carlos com pouca ajuda ou organização conseguiu matar quase todos os capatazes, tudo graças a seus artefatos do diabo, a história era difícil de acreditar. Por isso até perguntou para a mulher com um F na testa se essa história era mesmo verdade, mas ela confirmou que era tudo verdade, não só ela como outras pessoas confirmaram essa história, se isso for verdade, seria um problema, pois ela não poderia deixar desconhecidos com armas poderosas dentro do quilombo.
— Infelizmente não poderemos deixar você andar livremente por aqui com elas, por isso um guarda vai ficar de olho de você a todo momento, mas isso será temporário até confiarmos em você.
— Nesse caso, posso entregar as armas para vocês de forma temporária, até vocês confiarem em mim. Aliás gostaria de demonstrar o poder dessas armas de fogo, acho que seriam úteis para a defesa do quilombo e com os materiais necessários e mão de obra, posso até fazer mais armas de fogo.
“O que? Vai deixar a gente ficar com elas por enquanto? Mas que pessoa generosa. Isso é bom, se essas armas de fogo forem mesmo tão poderosas assim então Espectro vai ficar feliz, afinal tem os guerreiros necessários, mas o que lhe faltas são armas mágicas, apesar de que disse que a arma de fogo não é uma arma mágica, mas então porque será que tem fogo no nome? Eu pensei que usaria a gema de fogo.”
— Obrigado pela cooperação, nesse caso irei pegar as armas e falar com Espectro sobre o que fazer, depois falo com você.
Depois disso, Aqua entregou as armas para um guerreiro que estava ali perto e então levou o grupo para o terreno deles.
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O local que lhes foi dado, tinha a mata da onça ao redor, e uma montanha ao lado. O local tinha mato que ia até o joelho, só de ver o terreno daria para saber que eles tinham muito trabalho para fazer, mas isso não desencorajou ninguém pois agora aquela terra seria deles e por isso sem perder tempo várias pessoas já começaram a trabalhar. Só Carlos que estava abatido.
“Então é aqui que vamos morar por enquanto, não sei cuidar de roça nenhuma, aliás prefiro até a vida na cidade. Só gosto de visitar o sítio, quando era mais novo ia visitar o sítio dos meus avós, amava nadar no rio, catar fruta do pé e brincar com os animais, mas já trabalhar de sol a sol ai seria outra história, tomara que a senhora Aqua pense com carinho na minha proposta. Quanto mais rápido me aceitarem, mais rápido poderei pôr em prática o conhecimento dos livros que peguei do velho do engenho.”
Enquanto estava perdido em pensamentos, Tassi se aproximou dele.
— Você é bem diferente, não sei se teria entregado aquelas armas tão facilmente, teria esperado mais um pouco.
— Não é como se eu tivesse muita escolha também, se esse Brasil for como o Brasil do meu mundo, ainda teremos mais uns séculos de escravidão, e até lá a escravidão ter acabado, todos os quilombos já terão sido destruídos. Por isso vou ajudar qualquer um que lute contra um sistema assim, pelo futuro e pelo presente.
— Entendo, também planejo lutar, vou entrar no exército deles para defender o quilombo, antigamente lutava para que meu reino aprisionasse mais pessoas para serem enviadas como escravos para cá, mas agora quero lutar para libertar pessoas, apenas acho que você deveria ter sido mais cauteloso com as armas.
— Sabe você tem uma mira muito boa para ter acertado aquela pedrada na cabeça do Jairo, acho que se conseguir fazer as armas, vou dar a primeira delas a você.
— Espera, você consegue mesmo fazer mais armas que nem aquelas!?
— Como aquelas? Isso é impossível, mas posso fazer armas mais rudimentares como mosquetes de pederneira, mas mesmo assim seriam bem melhores que qualquer arco. E ainda assim será difícil fazer essas armas rudimentares, mas o meu mundo já produzia nessa época.
— Mesmo se elas forem rudimentares ainda serão muito úteis, até fiquei impressionada que você saiba fazer essas armas, te julguei mal mesmo.
— Saber, não sei, mas tenho os livros do velho do engenho, um dos livros dele fala como as primeiras armas de fogo e pólvora foram feitas, só não sei quanto tempo vai levar para fazer elas, mas é possível.
— Entendo, você é mais competente do que parece, aliás a chefe do Mocambo não parecia acreditar na sua história, nem a culpo, você não tem cara de quem começa rebeliões, aliás toda hora a chefe ficava olhando para mim, mas basta você demonstrar o poder das armas de fogo que opinião deles para você muda rapidinho e vão te deixar produzir as armas de fogo rapidinho.
“Por acaso tenho tanta cara de um fracote assim?”
— Esse é o plano, é uma pena que a munição que temos não é infinita, mas vale a pena gastar um pouco para conseguir o apoio deles.
— Sim, é uma pena que não conseguiremos mais com o comerciante, aliás queria saber como conseguiu tantos artefatos do diabo, apesar de que aqui no Brasil tem muitos artefatos do diabo. Você pode não saber, mas os artefatos do diabo são extremamente raros, eu mesma nunca vi um antes de chegar no Brasil, acho que mesmo na Europa são raríssimos, só no novo mundo que eles são comuns.
— É sério isso? E porque eles são mais comuns aqui?
— Vai saber.
Curiosidade: Alguns linguistas afirmar que o Quilombo de Palmares tinha um dialeto próprio, que tinha português como base com muitas influência do banto e de mais linguas africanas e indigenas, há até mesmo relatos históricos de portugueses levando interpretes para falar com os quilombolas. Apesar do Quilombo da Jabuticaba ser inspirado no Quilombo de Palmares, não irei usar um dialeto para a região, tanto para ficar mais fácil para escrever quanto para ler.
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