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    Carlos acordou cedinho — na verdade, todos os dias tinha acordado com o sol, afinal não havia muita coisa para fazer à noite.

    “Aposto que um dos motivos das pessoas terem tantos filhos antigamente era a falta do que fazer à noite. Afinal, não tem TV, nem internet… estou dormindo cedo toda noite. Até pensei em conversar com alguma mulher daqui, mas o único problema é que não tem mulher nenhuma. De todos os escravos do engenho, só a Tassi e mais outra mulher casada tem a minha idade, o há mais umas quatro mulheres mais velha como a Tia Vera; o resto era só homem. E a Tassi não faz muito meu tipo, e imagino que não faço o tipo dela também. Tomara que no quilombo tenha mais mulheres.”

    Carlos vendo as suas opções de comida.

    “Mas, deixando isso de lado, o que faço pro meu café da manhã hoje? Não tem café nem pão. Será que dá para considerar um café da manhã sem café como um café da manhã? Acho que não. Olhando o lado positivo, a habilidade da Tassi fez várias plantas já estarem prontas para a colheita, ou seja, comida eu tenho. Mas que habilidade útil… como será que funciona? Digo, para uma planta crescer precisa de água, luz e nutrientes, porém crescem na hora. As gemas que ela usa são a de terra e de grama — como essa combinação de pedras gera luz solar e nutrientes no solo para as plantas? Ainda mais que cada planta precisa de certos nutrientes e quantidade de luz solar diferente.”

    Enquanto pensava nisso, sua barriga começou a roncar.

    “É melhor comer algo primeiro. Já sei o que vou fazer: milho verde cozido.”

    Pegou uma panela velha de ferro que o pessoal do quilombo dera para cada um deles e fez um fogo na palha usando pederneiras — também fornecidas pelo quilombo —, em cima da qual havia lenha. O “fogão”, se é que poderia ser chamado assim, era apenas um murinho de barro formando um quadrado, com uma abertura na frente para colocar a palha e a lenha; em cima, uma grade de ferro sustentava a panela. Colocou a panela sobre a grade, pegou um dos vasos de argila, encheu a panela com água e pôs o milho dentro.

    “Isso sim é um fogão rústico. Quando assar uma carne nele, vai ser até mais autêntico que aquelas churrasqueiras a lenha. Mas não posso reclamar — chegaram cerca de quarenta pessoas e deram para cada um de nós uma grade e uma panela, o que deve ter consumido bastante ferro, além dos vasos que o oleiro do quilombo nos forneceu. Apesar de tudo, a vida daqui não parece ser tão ruim. Acho que entendo por que Tassi planejou vir para cá. É uma pena que, historicamente, nenhum quilombo grande durou muito; o que mais resistiu foi o Quilombo dos Palmares, que durou cerca de um século, se não me engano.”

    Enquanto cozinhava o milho, alguém bateu na porta de Carlos. A maioria das casas daqui não tinha porta, mas ele insistiu em colocar uma para evitar que alguém pegasse os livros e artefatos que guardava. Tinha acabado de pegar o primeiro milho quando foi abrir. Ao fazê-lo, viu um homem segurando uma lança — Carlos o reconheceu como um dos guardas que os vigiavam.

    — Carlos, o Espectro pediu que você demonstrasse como funcionam suas armas de fogo. À tarde, vou voltar para buscá-lo e acompanhar a demonstração.

    “Foi até mais rápido do que imaginei… Só demorou uma semana para me chamarem.”

    — Bom dia. Certo, estarei pronto.

    O guarda saiu e Carlos deixou a porta aberta, pois o fogão tornava a casinha abafada e quente. Voltou para pegar o milho quando outra pessoa apareceu na porta: era Tassi.

    — Pelo visto, o guarda veio falar com você também — disse ela, sua voz tão neutra quanto sempre.

    Carlos, confuso, perguntou:

    — Ele foi falar com você também?

    Tassi entrou na casa e sentou-se num banquinho de madeira, suas mãos pousadas sobre o colo.

    — Sim. Pediu para eu me juntar ao exército deles.

    — E você aceitou, né? Afinal, você disse que queria lutar para libertar escravos.

    Tassi ergueu os olhos cor de esmeralda e fixou-os nos dele, sem alterar a expressão.

    — Você se lembrou do que eu disse? Mas lamento… enganou-se. Eu disse que iria ajudá-lo a fazer armas caso Espectro deixasse.

    Carlos franziu a testa.

    — Ué, por quê?

    Um leve — muito leve — sorriso tocou os lábios de Tassi.

    — Porque você me prometeu que me daria uma daquelas armas. E também preciso retribuir um pouco tudo o que fez por mim. Embora… provavelmente seja o ferreiro quem fará todo o trabalho, mas talvez eu possa ajudar em algo.

    Carlos balançou a cabeça.

    — Na verdade, acho que nós vamos trabalhar tanto quanto o ferreiro.

    Agora era a vez de Tassi parecer confusa.

    — Como assim?

    Carlos sentou-se num banquinho de terra e explicou:

    — Temos que fazer pólvora para que as armas tenham utilidade. E nem sei se vamos conseguir os ingredientes necessários para fabricá-la aqui.

    Houve uma pitada de desapontamento na voz monocromática de Tassi.

    — Sério? Mas no outro dia você falou tão confiante que conseguiria fazê-las…

    Carlos olhou para ela, pensando: “Não lembro de ter dito que tinha certeza…”

    — É que não havia pensado direito. No meu mundo, na época de onde vim, seria fácil, porque todo mundo vendia os ingredientes para fazer pólvora. Mas aqui… acho que deve ser impossível comprá-los, ainda mais num quilombo. Então, vamos ter de procurar os ingredientes na natureza, e não sei se vamos achá-los por aqui.

    Tassi suspirou baixamente.

    — E do que precisamos para fazer essa tal pólvora?

    Carlos levantou três dedos.

    — Carvão — o que é fácil de achar. Enxofre — que não existe no Brasil em estado puro, mas dá para conseguir refinando outros materiais. E salitre — que pode ser encontrado em algumas minas ou… podemos fabricá-lo. Se tivermos que produzir ou refinar os ingredientes, vai demorar muito.

    Tassi balançou a cabeça negativamente.

    — Nunca ouvi falar de salitre ou enxofre. Devem ser coisas que feiticeiros usam. Se for esse o caso, nem com comerciantes vamos conseguir esses itens — não neste lugar. E eu aqui, achando que logo teria uma arma nas mãos… Mas, deixando isso de lado, o que o guarda veio pedir a você? Duvido que tenha sido para entrar no exército.

    Carlos suspirou.

    — Ele me chamou para demonstrar como as armas de fogo funcionam, hoje à tarde.

    Isso pareceu animar um pouco a guerreira.

    — Ah, bom. Quero ver de novo como se usam aquelas armas. Até porque, no futuro, terei uma.

    Carlos revirou os olhos, cético.

    — Olha, a arma que você vai usar — se é que vai poder usar — será bem pior que essas. Além disso, você pode usar gemas mágicas, que são muito mais impressionantes que qualquer arma do meu mundo.

    Tassi manteve a impassividade.

    — Elas só são impressionantes para você porque não está acostumado a vê-las. O mesmo vale para mim e as armas de fogo.

    Carlos começou a salgar o milho e a comer enquanto falava.

    — Dessa vez, você me ganhou no argumento.

    Tassi observava o milho com certa reserva.

    — Você ainda não comeu nada? Quer um milho?

    Ela fitou a espiga com visível desdém.

    — Eca, que nojo. Sério, você gosta dessa coisa? Quando cheguei ao Brasil, me deram isso para comer e eu odiei. A Tia Vera até fez uns bolos usando essa ‘coisa’ e me ofereceu, mas não quis chegar perto. Não sei por que todo mundo aqui gosta tanto.

    Carlos olhou para ela, incrédulo.

    — Como assim, você não gosta de milho? Peça desculpas ao milho agora! Ele é tão útil… Trigo, arroz, milho e batata são os grãos e legumes mais práticos que existem, e dá para fazer de tudo com eles. Odiar um deles é como negar a própria civilização — foi a partir deles que as civilizações nasceram.

    Tassi soltou uma risada leve, quase imperceptível.

    — Ha… você é bem engraçado. Mas não estou negando essa tal civilização. Só não gosto de milho.

    Carlos pensou consigo: “Espera aí… li em algum lugar que, quando os escravizados chegavam ao Brasil, entregavam milho cru para comerem. Se foi isso que aconteceu com ela, até entendo.”

    — Deixa adivinhar: quando você chegou aqui, apenas te entregaram o milho cru para comer, não foi?

    Ela cruzou os braços.

    — Hmm… pior que você tem razão. Mas, mesmo assim, duvido que vá gostar.

    Carlos pegou outra espiga cozida, salgou e estendeu a ela.

    — Experimente. Se não gostar, amanhã preparo de outro jeito.

    Tassi pegou o milho e olhou para ele como se fosse um artefato suspeito.

    — Tudo bem, já que você insiste. — Deu uma mordida cautelosa, e o sabor adocicado e salgado do milho verde, cozido no ponto, preencheu sua boca. “Nossa, o gosto é bem diferente mesmo. Quando me entregaram isso, nem sabia o que era — achei que era uma fruta. Só comi tudo porque estava morrendo de fome.”

    Ela abriu a boca para falar, mas viu o rosto presunçoso de Carlos e pensou: “Ah, ele está se achando demais. Esse milho até que é bom, mas nem é tudo isso… Aliás, parando para pensar, a Tia Vera falou que o bolo de fubá dela era muito bom. Acho que devia ter experimentado quando me ofereceu.”

    — É… mais ou menos. Mas dá para comer.

    Carlos sorriu, vitorioso.

    — Me engana que eu gosto. Tudo bem, vou te provar que o milho é bom. Outro dia, faço pipoca para você.

    Tassi terminou de comer a espiga e falou, num tom mais suave:

    — Claro. Agora, tem como me passar outro milho?

    O resto do dia passou normalmente, com Carlos trabalhando em sua roça e Tassi na dela. Depois do almoço, alguém bateu em sua porta.

    “Hoje estou popular. Mas, provavelmente, é a Tassi vindo esperar até o guarda nos chamar.”

    Para sua surpresa, não era Tassi quem estava à porta, e sim uma mulher morena, com cabelos castanhos longos amarrados em um rabo de cavalo. O que mais chamou a atenção, porém, foram seus olhos — de um prateado luminoso, quase cinza, que pareciam captar a luz do fim de tarde.

    — Boa tarde. Você é o Carlos, não é? Prazer, sou a Nia, a ferreira do Mocambo.

    “Que mulher bonita… Mas esses olhos prateados? Parece que todo mundo neste lugar tem olhos de cores estranhas. De qualquer forma, ela é a ferreira — isso é ótimo, porque vou precisar muito da ajuda dela para fazer as armas de pederneira.”

    — Sou eu, sim. Prazer em conhecê-la. No momento, não sou ‘nada’ no quilombo, mas, no futuro, espero ser ‘algo’. E, com certeza, vou precisar da sua ajuda.

    Ouvir isso deixou Nia visivelmente feliz, um sorriso largo estampando seu rosto.

    — Direto e reto, do jeito que gosto. Já imagino no que vai precisar de mim — vai ser para fazer umas armas diferentes, não é? Pois saiba que vou ajudá-lo, quer queira ou não. Desde que ouvi as histórias sobre essas armas que, num piscar de olhos, quebram a defesa divina de alguém, fiquei fascinada. Quero saber como funcionam, quero fabricá-las! Estou cansada de fazer só pontas de lança — quero criar algo novo. E dizem que suas armas são bem diferentes. Sem contar que estou farta de ouvir que ferreiros são inúteis e que só os artesãos mágicos prestam. Quero fazer uma arma que mostre o verdadeiro poder do ferro e da forja!

    Nia observou Carlos por um instante, seu olhar penetrante.

    — Mas, claro, sei que exageram nas histórias — falam que nem dava para ver o projétil, ou que a arma é capaz de quebrar barreiras de defesa e defesa divina ao mesmo tempo. Por isso vim aqui. Falei com a Aqua e vou poder ver você usando essas armas.

    Carlos a observou, refletindo sobre sua sorte. “Que sorte a minha… ter uma ajudante tão motivada assim.”

    — Muito obrigado. Vou precisar muito da sua ajuda, sim. E, quanto ao poder das armas de fogo… digamos que as histórias não são exagero. Você verá os resultados hoje à tarde. Infelizmente, as armas que poderemos fabricar não serão tão potentes, mas já posso adiantar como funcionam.

    Pegou um dos livros que guardava — “Guns and History” —, abriu na página do mosquete de pederneira Brown Bess e começou a explicar os mecanismos.

    Os olhos de Nia brilharam ao ver os desenhos e ouvir as explicações.

    — Parece uma arma incrível! E você também parece muito interessante. Mal o conheço e já gostei de você. Se essas armas forem tão boas quanto diz, ganhará ainda mais pontos comigo. Quem sabe não pode ser meu quinto marido!

    Carlos ficou pasmo. “Como assim ‘quinto marido’? Meu Deus, calma, mulher! Não está querendo demais?”

    — Ha ha ha… Acho que me esqueci que você veio de fora. Mas não sou gananciosa, viu? Basta olhar ao redor: quantos homens você vê? E quantas mulheres?

    “Realmente, só vieram homens do engenho. Espera aí… quer dizer que a maioria do quilombo também é composta por homens?”

    O brilho nos olhos de Nia se apagou, substituído por uma sombra de amargura.

    — Os donos de escravos preferem homens — podem fazer trabalhos pesados por mais tempo. Já as mulheres, na visão deles, trabalham menos, podem engravidar e precisam cuidar das crianças. Eles nos veem como animais… na verdade, nos tratam pior, pois a maioria dos escravizados aqui não dura nem dez anos — morrem de exaustão. O que, às vezes, é um destino melhor do que o de algumas mulheres, usadas como brinquedos por seus senhores. Por isso fico feliz em ajudar a fabricar qualquer arma que possa matar esses vermes.

    Carlos suspirou profundamente, pensando: “Não quero nem imaginar o que as mulheres passam. Só a história da Tassi já me entristece. Pela forma sombria com que Nia fala, imagino que ela ou sua mãe tenham sofrido muito — ela tem a pele morena e, considerando a época… certeza que não foi de forma consensual. Deve ser por isso que vejo tanto ódio no olhar dela.”

    Nia recuperou o brilho no olhar e continuou:

    — Por causa dessa preferência deles, infelizmente, me vejo obrigada a aceitar vários maridos. Não só eu — quase todas as mulheres aqui têm mais de um. Você nem imagina o quanto me dói ter que dividir meu coração… mas é um sacrifício que estou disposta a fazer. E você também vai ter que aprender a compartilhar, se quiser uma companheira. Caso contrário, vai acabar sozinho. A não ser que vire o rei — aí, sim, terá um harém à sua disposição.

    Carlos ficou sem reação, e, na mesma hora, um guarda apareceu na porta.

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