Índice de Capítulo

    Quixotina ia na frente, a chama trêmula de sua tocha projetando sombras dançantes nas paredes úmidas da caverna. Carlos vinha atrás, os olhos escrutinando cada centímetro da rocha à procura dos cobiçados veios de salitre, enquanto Tassi fechava o grupo, tentando ignorar a opressividade do ambiente. Sob seus pés, uma camada esbranquiçada e fétida de guano cobria o solo. Em alguns pontos, a espessura era tanta que os pés escorregavam, como se pisassem numa lama grotesca e seca, composta de séculos de fezes de morcegos.

    O cheiro era insuportável, uma mistura pungente de amônia e decomposição que ardia nas narinas e deixava um gosto metálico na boca. Nem mesmo Carlos, inicialmente animado, estava aguentando. Respirava pela boca, ofegante, mas o sabor do ar viciado era quase tão ruim quanto o fedor.

    — Isso é guano — explicou ele, a voz abafada pelo pano que pressionava contra o nariz. — É um fertilizante excelente… e o melhor indicador de que podemos encontrar salitre nas paredes. Vamos verificar.

    Quixotina não precisou ser convidada duas vezes. Movendo-se com urgência, levou a tocha até as paredes da caverna, ansiosa para encontrar o tal salitre e abandonar aquele lugar. A luz revelou então uma cintilação pálida: uma crosta de cristais brancos e acinzentados cobria a rocha como uma geada suja.

    — É isso! Salitre! — exclamou Carlos, com um suspiro de alívio que ecoou na caverna. — Vamos coletar o máximo que pudermos e sair daqui!

    Nenhuma das mulheres disse nada, mas seus ombros descaíram visivelmente, e um suspiro coletivo de alívio encheu o ar pesado. Todos colocaram suas cestas de palha no chão pegajoso e, com facas em punho, começaram a raspar os preciosos cristais das paredes. O som áspero do metal contra a rocha e o tilintar dos fragmentos caindo nas cestas preencheram o silêncio.

    “Na próxima vez, temos que trazer ferramentas adequadas,” pensou Carlos, observando o trabalho moroso. “Raspar com essas facas é impossível. E algo para o cheiro… sabia que ia feder, mas isso é inacreditável. Já estou ficando com dor de cabeça. Um pano molhado será o máximo que conseguirei improvisar.”

    Depois de um tempo que pareceu uma eternidade, os cestos estavam finalmente cheios de salitre. Era o suficiente para os primeiros protótipos de pólvora, mas pouco mais que isso. Quando o grupo se virou para partir, a luz da tocha de Quixotina iluminou por um breve instante um recanto mais profundo da caverna, até então nas sombras. Algo enorme e cristalino refletiu a luz, fazendo Carlos estacar.

    “Uma gema?” pensou ele, com um surto de esperança que rapidamente se desvaneceu. “Mesmo que seja, de que me serve sem um artesão para talhá-la? A missão de hoje já está cumprida.”

    Tassi também viu algo, mas não era um cristal. Pelo canto do olho, uma silhueta escura pareceu se mover nas profundezas. Seu coração gelou, mas ela abafou rapidamente o medo. “Se tem algo ali, que a brutamonta da cavaleira lide com isso,” pensou, o desejo de escapar daquele lugar superando qualquer outra coisa.

    Assim que emergiram para o exterior, os três pararam em uníssono, erguendo os rostos para o sol como flores sequiosas. O ar puro encheu seus pulmões, lavando o fedor da caverna, e a luz do dia acariciou sua pele pálida.

    — Ainda bem que tudo correu bem e não acordamos os morcegos — disse Quixotina, limpando a testa suada. — Não sei o que faria se eles se enfurecessem.

    — O quê? Morcegos? Não vi nenhum — retrucou Tassi, confusa.

    — Você tem sorte — respondeu Carlos. — Se tivesse olhado para o teto, teria visto centenas, talvez milhares, pendurados. E pelo volume de guano no chão, tem muitos mais. Só de pensar em pegar raiva daquilo… me dá arrepios.

    Tassi, por sua vez, sentiu-se um pouco boba por ter sido a única a não os ver, mas se consolou rapidamente. “Melhor assim. Se os tivesse visto, talvez tivesse entrado em pânico.”

    “Na próxima vez que vier aqui, olho só para o chão e para as paredes,” prometeu a si mesma.

    Quixotina, que também tinha visto a colônia, sentiu um calafrio ao se recordar, mas uma fala de Carlos chamou sua atenção. 

    — Mas como assim, ‘pegar raiva’? — perguntou Quixotina, intrigada. — Meu tio, que é um homem muito instruído, me disse que essa é a doença do lobisomem. Morcegos também transmitem? A pessoa vira um vampiro, então?

    — O quê? Não! — exclamou Carlos, quase rindo. — Você não vira lobisomem nem vampiro. Apenas… morre. A menos que tenha sido vacinado… o que aqui, presumo, não é o caso. Então, raiva significa morte certa.

    — Você diz coisas muito estranhas. — Dissa Quixotina com um olhar cético.

    — Olha quem fala, ‘Senhorita Dom Quixote de La Mancha’! — revidou Carlos. — Mas, já que falamos nisso, eu vim de outro mundo, sabia?

    Quixotina ficou em silêncio, sem saber como responder. O grupo iniciou a descida pela montanha, envolvido por uma quietude pesada, quebrada apenas pelos sons da floresta.

    — Sabe, eu acredito que ele veio de outro mundo — comentou Tassi, dirigindo-se a Quixotina. — E acho que, com o tempo, você também acreditará.

    Quixotina nem ouviu. Seus olhos estavam fixos no céu, onde o sol já começava a se por.

    “Quanto tempo ficamos naquela caverna? A escuridão e o mau cheiro fizeram parecer uma eternidade. Estamos atrasados.”

    — Está muito tarde — alertou, a voz carregada de preocupação. — Temos que andar depressa. Não quero descobrir o que está fazendo as pessoas desaparecerem nesta mata. Claro que, como cavaleira, quero evitar mais desaparecimentos, mas de nada adianta enfrentar um perigo sem estar preparada. Deve haver algum tipo de monstro por perto. Temos que apertar o passo, ou corremos o risco de ficar perdidos aqui no escuro.

    Ninguém a contestou. A apreensão era palpável. O pequeno grupo acelerou, mergulhando na vegetação com renovada urgência.

    Na metade do caminho, Carlos estava no seu limite. As pernas tremiam de cansaço e o suor escorria em fios pelo seu rosto. A cesta de salitre, agora cheia, pesava como uma âncora.

    “Droga, devia ter começado a fazer exercício,” pensou, exasperado. “É tarde demais para remorsos. Melhor engolir o orgulho.”

    — Quixotina — chamou ele, a voz um fio. — Pode, por favor, levar minha cesta? Estou exausto. Mal consigo acompanhar vocês.

    Quixotina parou e se virou. Só então reparou no estado lastimável de Carlos — e também no rosto corado e ofegante de Tassi. “Droga! Devia ter me apercebido mais cedo!”

    — Sinto muito — disse ela, genuinamente. — Devia ter visto que você estava com dificuldades. Também posso levar a sua, Tassi.

    Tassi, apesar de todo seu orgulho, sabia reconhecer a necessidade em momentos de crise.

    — Obrigada — aceitou, com um aceno de cabeça.

    Mas quando Quixotina se inclinou para pegar a segunda cesta, seus olhos detectaram um movimento entre as folhagens mais densas. Viu uma sombra escura, um vulto que se fundia com os verdes-escuros da floresta, e um par de olhos laranjas, grandes e ameaçadores, que a encaravam das profundezas.

    — Fiquem calmos — sussurrou ela, a voz tensa. — Mas tem alguma coisa nos seguindo. Não sei o que é, mas pelo tamanho, não deve ser amigável. Vocês vão ter que usar toda sua força para me acompanharem, ou morremos aqui.

    Carlos, que não acreditava em monstros mas confiava na intuição de quem conhecia aquele mundo, concordou em silêncio. Tassi, sempre alerta, ficou imediatamente em posição de prontidão. O grupo começou a correr. Quixotina mantinha um ritmo que eles pudessem acompanhar, abrindo caminho com golpes precisos de sua espada, enquanto seus olhos não paravam de vasculhar a floresta atrás de si. A criatura parecia se aproximar, mas o quilombo já não estava longe. Lá, haveria guardas e espaço para manobrar.

    Na correria desenfreada, o pé de Tassi pisou numa pedra solta. Ela perdeu o equilíbrio com um grito abafado e caiu por um pequeno barranco abaixo. Carlos esticou o braço e conseguiu agarrar sua mão, mas não teve força para segurá-la. Foi arrastado junto, mas, num ato de instinto, girou no ar, envolvendo Tassi com os braços e colocando seu próprio corpo embaixo, para amortecer a queda. Aterrissaram com um baque surdo num banco de lama úmida, mas ilesos.

    Quixotina parou a seco e esticou o braço para agarrá-los, mas mesmo com o poder da gema da força, não conseguiu alcançá-los a tempo. Sem hesitar, jogou as preciosas cestas de salitre no chão, empunhou a espada com as duas mãos e pulou na frente dos dois caídos, colocando-se como um escudo humano entre eles e a ameaça que se aproximava a uma grande velocidade.

    Carlos não acreditava no que seus olhos viam. Diante deles se erguia uma cobra de dimensões monstruosas. Sua cabeça era do tamanho de um carro, o corpo, embora menos espesso, se estendia por um comprimento interminável, se perdendo na vegetação. Mas o mais perturbador eram seus olhos — duas esferas laranjas e incandescentes — e, logo acima deles, incrustada na testa do monstro, uma gema do mesmo tom, mas com um brilho ainda mais intenso e vibrante.

    — É um boitatá! — gritou Quixotina, a voz ecoando na clareira. — Vocês dois, fiquem atrás de mim!

    “Boitatá? A cobra de fogo do folclore?” pensou Carlos, atordoado. “Não questiono. Nada disso é normal. Como é que algo desse tamanho se move em silêncio absoluto? E espero que aquela gema na testa não signifique o que eu penso…”

    Enquanto isso, Tassi procurava desesperadamente por seu revólver. Encontrou-o a alguns metros, caído entre as folhas secas. Quando se atirou para recuperá-lo, o boitatá reagiu com uma velocidade assustadora, abrindo suas mandíbulas colossais para engoli-la.

    Quixotina não esperou. Com um grito de guerra, pulou para a frente, ficando a centímetros da boca do monstro, e desferiu um golpe vertical que cortou parte do lábio superior da criatura. O boitatá, percebendo que esta não seria uma presa fácil, recuou ligeiramente. Então, a gema em sua testa brilhou com intensidade, e chamas percorreram seu corpo inteiro, transformando-o numa serpente incandescente. O calor que emanava era escaldante, mas, estranhamente, a vegetação ao redor não queimava. Quixotina recuou alguns passos, protegendo o rosto com o braço.

    Quixotina, aproveitando um breve momento de abertura, investiu contra a fera. Com um movimento rápido e preciso, ela tentou acertar um golpe de cima para baixo na besta. A lâmina pareceu cortar o ar sem atingir o alvo, mas não era bem isso o que acontecia. No exato instante em que o golpe se completava, a ponta da espada liberou uma linha branca e finíssima, tão sutil quanto um fio de cabelo, que só se tornava visível quando observada de lado ou em diagonal, deixando um rastro luminoso no ar.

    O ataque foi direto em direção ao monstro que, apesar do tamanho descomunal, não era lento. Com um movimento ágil, a criatura conseguiu desviar a parte vital de seu corpo. Porém, felizmente para o grupo, o corpo serpentino era longo demais para escapar completamente. A linha de luz atingiu uma seção lateral do boitatá, onde seu corpo se ondulava, acertando as escamas duras como pedra. O efeito foi imediato: várias escamas se desprenderam com um estalido seco, expondo a carne vulnerável por baixo.

    — Não acredito! — exclamou Tassi, de olhos arregalados. — Você também usa a gema da luz? E tem uma Espada da Luz? Reparei na gema branca na sua espada, mas não quis acreditar!

    — Sim — respondeu Quixotina, ofegante, os olhos fixos no monstro. — Mas parece não estar adiantando muita coisa. A fera continua praticamente intacta. Não sei se conseguiremos sair todos vivos daqui. Quando virem uma abertura, fujam!

    — Não! — gritou Carlos, com uma coragem que não sabia ter. — Vocês duas estão nessa situação por minha causa! Não vou abandonar ninguém!

    Tassi, embora em silêncio, compartilhava da mesma decisão. Sentia-se culpada pela queda que os tinha entregado ao perigo. Enquanto isso, seus olhos procuravam freneticamente uma oportunidade, até que o viram: seu revólver, estava a poucos metros. Aproveitando que Quixotina mantinha o monstro ocupado com uma série de cortes verticais e horizontais no ar — cada movimento de sua espada liberando finos fios de luz branca que atingiam as escamas do boitatá, fazendo algumas saltarem —, Tassi correu e se atirou ao chão, agarrando a arma que fervia por conta do monstro.

    O boitatá, no entanto, era astuto. Ao ver a presa tão exposta, investiu contra ela, a boca aberta como um abismo. Tassi tentou pular para o lado, mas a criatura era rápida demais. No momento crítico, um feixe de luz preciso atingiu o olho esquerdo do monstro, que rugiu de dor e fúria, desviando sua atenção para Quixotina. Foi a deixa que Tassi precisava, rapidamente colocou as balas. Ergueu o revólver e disparou.

    Os estampidos ecoaram pela floresta. As balas, embora pequenas perante o tamanho colossal da fera, trespassaram suas escamas e se alojaram na carne por baixo. O boitatá estremeceu, suas chamas se apagaram subitamente e, com um último olhar furioso, se virou e deslizou com rapidez surpreendente para as profundezas escuras da mata.

    Tassi, com as mãos tremendo, começou a recarregar febrilmente o tambor do revólver, os olhos ainda fixos no local onde o monstro desaparecera. Foi então que ouviu um baque surdo atrás de si. Virou-se e seu coração parou: Quixotina estava caída no chão, imóvel.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota