Capítulo 33 - Novo Chefe do Mocambo
Finalmente, depois de tanto tempo, o protótipo da arma de fogo estava pronto. O sol da tarde lançava longas sombras no caminho de terra batida enquanto Carlos e Tassi se dirigiam à oficina de Ferreira. O ar quente carregava o cheiro doce e mofado da mata úmida misturado com a fumaça distante das fogueiras do quilombo.
— Sabe, não espere muito dessa nova arma — alertou Carlos, quebrando o silêncio cadenciado de seus passos. — Ela foi inspirada no mosquete Brown Bess do meu mundo. A precisão além de cem metros é quase inexistente, e mesmo até cinquenta, só é realmente eficaz se várias pessoas atirarem juntas, formando uma linha de balas. A grande vantagem é que é mais fácil de fabricar e pode ser feita com ferro forjado. O ideal seria termos mais ferreiros produzindo.
Carlos olhou para Tassi e notou sua expressão pensativa, os olhos fixos no horizonte, os lábios levemente franzidos.
“Bom, ela não é do meu mundo e provavelmente não entende que, para uma guerra, quantidade muitas vezes é mais importante que qualidade.”
Mal o pensamento completou-se em sua mente, Tassi falou, como se tivesse lido sua preocupação:
— Então, basicamente, é mais fácil de fazer e usa materiais mais baratos, por isso podemos produzir mais armas para mais guerreiros, é isso?
Carlos não pôde conter um sorriso de surpresa e admiração.
— Isso mesmo! Não acredito que você entendeu o conceito tão rápido.
“Quando o assunto é armas e guerra, ela realmente pega as coisas num instante.”
Conversaram animadamente sobre os detalhes até chegarem à oficina. O som ritmado de martelos contra a bigorna já ecoava de longe, um som metálico e reconfortante. Quando iam entrar pela porta de madeira, Nia surgiu de repente, saindo apressada. Os três quase se chocaram, mas, num reflexo coordenado, deram um passo rápido para trás. Nia, surpresa, logo esboçou um sorriso amplo e radiante, seus olhos brilhando de animação.
— Estava indo entregar isso para vocês agora! A arma de vocês está pronta!
Ela ergueu a arma que carregava com cuidado. Era idêntica aos mosquetes dos filmes que Carlos lembrava, com o cano longo de metal escuro e a coronha de madeira trabalhada. Aos olhos de Nia, aquela criação tinha uma beleza rústica e poderosa.
— Finalmente! — exclamou Carlos, sua voz carregada de alívio e expectativa. — Vamos logo avisar a Aqua e preparar os testes de demonstração. Assim que o Espectro ver isso, vou pedir para que todos os ferreiros do quilombo comecem a produzir em massa. Ah, e tenho uma ideia para acelerar o processo. Em vez de você fazer cada arma sozinha, que tal se cada aprendiz focasse em fabricar apenas uma peça específica? Seria como uma linha de montagem.
Nia inclinou a cabeça, considerando.
— Hmm, talvez seja realmente mais rápido. Posso testar, mas para isso precisaria de mais aprendizes.
— Vou pedir à Aqua para te dar mais gente — garantiu Carlos.
Nia então estendeu a arma para ele e, com um tom mais suave, quase tímido, acrescentou:
— Obrigada. Tenho mais um pedido… queria ver como a minha arma é usada. Sei que é como um arco, mas melhor, afinal, usa aquela pólvora superpotente.
Tassi, que observava a interação, interveio com entusiasmo:
— A gente adoraria que você viesse! Até porque precisamos de uma adepta da Gema do Fogo para testar outra arma nova. Essa eu inventei ao ver como dava para usar a gema para acender a pólvora.
Carlos manteve a expressão neutra, mas pensou consigo mesmo:
“Você apenas foi mais rápida em dar a ideia, mas eu já estava pensando nisso. Vou deixar você ficar com o crédito, afinal, foi bem perspicaz da sua parte.”
— Oh, e qual seria essa nova arma? — perguntou Nia, curiosa.
— Você vai ver, foi pra ela que pedimos as carapaças de ferro redondas. Vamos testá-la junto com esse mosquete — respondeu Tassi. — Se tudo der certo, faremos a demonstração para todos amanhã.
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Na manhã seguinte, o grupo se reuniu na planície dos tocos, o local usual para testes. O ar fresco da manhã carregava o cheiro de terra molhada e grama cortada. No entanto, com as novas oficinas de pólvora funcionando nas proximidades, tiveram que se deslocar para um canto mais isolado, perto da floresta. Tassi havia preparado vários alvos: troncos de árvores esculpidos em formas humanas, com “cabelos” feitos de galhos e folhas secas.
Carlos observou os bonecos de madeira.
“Até que esses tocos realmente parecem pessoas. Alguns até têm ‘caras’ esculpidas. Aquele é o Jairo, o outro é o Jorge… as demais não reconheço. Tem até uma que parece uma mulher com rabo de cavalo… pera, não é a Nia, é?”
Deixando os tocos de lado, Carlos olhou ao redor. O grupo de espectadores era maior desta vez. Além de Aqua e Espectro, havia mais sete pessoas e vários guardas. Ele supôs que fossem outros chefes de mocambo, mas não pensou muito nisso. Respirou fundo e começou a explicação, tentando soar o mais natural possível.
— A utilização dessa arma é bem simples. Com alguns meses de treinamento, mesmo um fazendeiro pode derrotar um guerreiro bem treinado. Basicamente, você coloca a pólvora e a munição, mira e puxa o gatilho. Isso ativa a pederneira, feita com pirita, que gera uma faísca e acende a pólvora. A explosão lança a bala a uma velocidade suficiente para atravessar uma pessoa a até cem metros de distância, mas a precisão é bem baixa. A Tassi vai demonstrar o processo de carregamento.
Tassi pegou o mosquete, colocou-o na vertical com a coronha no chão e retirou um cartucho de pano que continha uma medida de pólvora e uma bala de chumbo. Ela mordeu a ponta do cartucho para rasgá-lo, derramou um pouco de pólvora na caçoleta para a ignição e fechou a tampa de metal, o frizzen. Em seguida, despejou o resto da pólvora no cano, colocou a bala — envolta em um pedaço de tecido oleoso — e, usando uma vareta, compactou tudo até o fundo.
Com movimentos decididos, ela ergueu a arma, apoiou a coronha no ombro, mirou em um alvo de madeira a oitenta metros de distância e puxou o gatilho. Um CRACK seco e ensurdecedor rompeu o silêncio da planície, seguido por uma nuvem espessa de fumaça de enxofre que ardia no nariz. A bala perfurou o alvo oco sem dificuldade, deixando um buraco limpo e redondo.
— Facilmente atravessaria carne e vísceras humanas — comentou Carlos.
Os espectadores, inicialmente silenciosos, ficaram animados e correram até o alvo para inspecionar o estrago. Apenas Aqua e Espectro permaneceram impassíveis, já tendo testemunhado armas muito mais potentes.
— No momento, estamos produzindo poucas armas — continuou Carlos, assim que todos voltaram. — Mas se colocarmos todos os ferreiros do quilombo para fabricá-las, usando o método de produção que sugeri, acho que podemos fazer cinco por mês. Com mais assistentes, esse número pode aumentar ainda mais.
Os outros chefes, que não conheciam o poder das armas de fogo, ficaram visivelmente impressionados. A recarga era lenta, mas era fácil imaginar uma linha de atiradores disparando voleias contra um inimigo que se aproximasse.
Carlos esperou todos voltarem a seus lugares então pegou uma pequena esfera de ferro fundido, do tamanho de uma laranja, com uma gema de fogo encravada em seu topo, e disse:
— A Tassi teve uma idéia de outra forma que poderíamos usar a pólvora, ajudei-a projetar essa arma pois me lembrou o nome de uma arma de meu mundo, uma granada. — Ao ouvir isso, Tassi se sentiu bem orgulhosa, mas não demonstrou.
— Porém esta é uma arma diferente da arma do meu mundo pois requer um adepto de gema de fogo para ativá-la mas seu uso é bem simples, por isso nomeamos essa arma como granada mágica. Nia vai demonstrar como usá-la, já que pode usar gemas de fogo.
Nia pegou a pesada granada de ferro. Ela usou seu poder mágico na gema — algo simples como isso não requeria muito poder mágico, poderia facilmente ficar o dia todo usando seu poder mágico nas granadas por conta disso, tornando uma arma de guerra ideal.
Após colocar seu poder mágico a gema se ativaria depois de 10 segundos. Carlos havia definido o tempo, Nia não sabia o que era exatamente um segundo, mas tinha noção de quanto tempo era. Após a ativação, não perdeu muito tempo e jogou a granada com toda sua força em direção a uns três alvos de madeira que estavam a vários metros de distância.
A granada de metal colidiu no chão com um baque metálico e sólido, chegando aos pés de um dos alvos. Os outros dois estavam mais afastados, mas não a mais de 5 metros. Depois de poucos segundos, ela explodiu com um estampido seco e violento, estilhaçando-se em uma centena de fragmentos de ferro letais.
A explosão foi curta e violenta, um rugido abafado que chutou terra e ar para os lados. Um clarão laranja breve ofuscou a visão de todos, seguido por uma onda de calor que atingiu seus rostos. A detonação ecoou pela planície, e pedaços de metal voaram como projéteis.
Quando a fumaça marrom começou a dissipar, carregando um cheiro acre de queimado, o estrago ficou visível. O alvo central havia simplesmente desaparecido, reduzido a estilhaços e lascas. Dos outros dois, um perdera os dois “braços” e o outro estava crivado de buracos profundos no “peito”. Um silêncio pesado pairou sobre todos, quebrado apenas pelo estalar da madeira queimando.
Aqua e Espectro mantiveram suas expressões calmas, apenas trocando um sorriso sutil entre si enquanto observavam Fernando e Melik, que não conseguiam disfarçar o choque e a admiração em seus rostos. No passado o pensamento unânime era: guerreiros comuns serviam como números, mas eram os adeptos de magia que realmente decidiam batalhas. O quilombo sempre estivera em desvantagem. O governador podia contratar mercenários mágicos e comprar gemas. Mas aquelas armas… elas igualavam o campo de jogo. Qualquer um poderia ser tão letal quanto um adepto. E um adepto, como Nia, poderia se tornar dez vezes mais perigoso com granadas como aquela.
Fernando, recuperando-se primeiro, virou-se para Ganga Zala, que estava discretamente entre os chefes.
— Ganga, vou mandar o ferreiro do meu quilombo vir para o mocambo da Aqua aprender a fazer essa arma.
Melik, saindo de seu estado de choque, falou rapidamente, seguido por uma onda de concordância dos outros chefes. Espectro imaginara que isso aconteceria. Fernando e Melik não eram incompetentes; ninguém no quilombo podia sê-lo, sob o constante risco de ataques. A competência era a moeda de valor aqui, não a linhagem — com a exceção óbvia do próprio Ganga Zala. Na visão de Espectro, Fernando e Melik eram dois dos mais competentes, justamente por sempre pesarem os prós e os contras de cada decisão, não importando de quem viesse.
O Rei Ganga Zala ergueu a mão, silenciando a todos. Sua voz era calma, mas carregava uma autoridade inquestionável.
— Podem seguir com esse plano. Mas seus ferreiros não ficarão no mocambo da Aqua. Eles virão aqui somente para aprender e depois retornarão aos seus próprios mocambos para replicar a produção.
Então, seus olhos se voltaram para Carlos. Ele não parecia um rei europeu típico; vestia roupas simples, sem joias ou insígnias. Era um homem de quarenta anos com uma presença comum, mas a forma como todos se calavam para ouvi-lo denunciava seu poder.
— Carlos — chamou Ganga Zala. — A partir de hoje, você será o chefe deste mocambo. Você assumirá o lugar da Aqua. Será sua responsabilidade planejar a melhor forma de desenvolver e aumentar a produção dessas armas. Todo ferreiro, artesão, morador e guarda deste mocambo lhe servirá e obedecerá. E você, por sua vez, me obedecerá e servirá ao povo do Quilombo da Jabuticaba, e a mim.
Carlos ficou atônito. Não havia notado Ganga Zala entre o grupo. A surpresa foi como um golpe no estômago. A fala de Ganga não era um pedido, era uma ordem. Não havia espaço para recusa. No entanto, uma centelha de ambição acendeu-se dentro dele. Precisava de poder para mudar este mundo, e ser chefe de um mocambo era um grande passo.
Sem hesitar, Carlos se ajoelhou na terra úmida, sentindo a grama sob seus joelhos. Lembrou-se de cenas de séries medievais que assistira.
— Com todo o prazer, Vossa Majestade. Lhe servirei até a morte.
Ganga Zala sorriu, um gesto breve e calculista.
— Por hoje é só. Continue com o bom trabalho no Mocambo do Tatu. Espero grandes coisas de você.
O rei e os outros chefes se viraram e partiram, deixando para trás um silêncio carregado. Carlos se levantou, poeira e pequenas folhas grudando em suas calças. Ao olhar em volta, deparou-se com os olhares arregalados e surpresos de Tassi, Quixotina e Nia. Aproveitando o momento de estupefação, ele se virou para Nia com um sorriso maroto.
— Talvez um dia eu vire rei, Nia. Então, poderia te fazer minha quinta esposa, se você quisesse.
A expressão de Nia mudou instantaneamente de surpresa para puro pânico, seus olhos se arregalando. Carlos ficou confuso.
“Será que foi uma hora errada para fazer uma piada?”
Mas logo ele entendeu o motivo. Uma voz gelada cortou o ar atrás dele.
— Sabe, isso poderia ser considerado traição. Afinal, você está querendo tomar o lugar de Ganga. Eu poderia cortar sua cabeça aqui e agora.
Carlos sentiu seu sangue gelar. Ele se virou lentamente, os músculos tensos, e encontrou Espectro olhando para ele com uma expressão severa. O horror o paralisou. Por um momento, ele achou que tinha cometido seu último erro.
Por sorte, a seriedade no rosto de Espectro se quebrou. Ele começou a rir, um som rouco e genuíno.
— Estava apenas brincando! Sei que você fez uma piada para irritar a Nia. Conheço ela há tempos, viemos juntos para este quilombo. Até imagino o que houve: ela te pediu para ser a quinta esposo dela, não foi?
Carlos, ainda com o coração batendo descompassado, engasgou e conseguiu emitir apenas uma palavra rouca:
— Sim.
Espectro riu mais ainda, dando uma palmada amigável nas costas de Carlos. Depois suspirou, e seu rosto ficou sério mais uma vez.
— Bom, só voltei porque quero que você me entregue uma cesta cheia dessas granadas até o fim do mês. Agora você vai ter bastante gente sob seu comando, então pode mandar mais pessoas para trabalhar na produção de pólvora. Também quero todas as armas que você produzir.
Carlos, ainda sentindo o suor frio na nuca, apenas assentiu.
— Claro.
Dessa vez, o riso que ecoou foi o de Nia, que não conseguiu conter a diversão ao ver o alívio patético estampado no rosto de Carlos. Tassi e Quixotina se juntaram a ela, rindo da expressão de quem parecia ter visto a morte de perto.
Depois de entregar seu recado, Espectro se virou e começou a caminhar em direção ao seu próprio mocambo. Na volta, passou pela oficina de pólvora, onde o pessoal já trabalhava freneticamente. Ele parou por um instante, olhou para trás e viu Carlos e seu grupo se afastando, as risadas deles ainda ecoando fracamente. Um sorriso quase imperceptível surgiu em seus lábios, e ele sussurrou para si mesmo, tão baixo que apenas o vento poderia ouvir:
— Se você continuar trabalhando bem assim, ser o novo Ganga não é um sonho impossível. Zala acha que pode ser como um Ganga da nossa terra ou um rei europeu, com poder absoluto e súditos leais. Infelizmente, nenhum chefe aqui é leal a ele. Somos leais ao quilombo. E o quilombo não precisa de um rei absoluto e covarde.

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