Capítulo 40 - Vacina
A estrada poeirenta que ligava a Cidade Sagrada de Santa Maria à capital da capitania, Areia Branca, apresentava uma cena no mínimo peculiar. Uma carruagem branca e reluzente, com detalhes em dourado que cintavam sob o sol forte, avançava lentamente. Dentro dela, envolta em seu imaculado robe branco, estava ninguém menos que a própria Papisa Paula. Embora suas visitas pastorais fossem comuns, o que realmente chamava a atenção e arrancava suspiros de confusão dos mercadores e viajantes que cruzavam seu caminho eram os animais que puxavam o veículo sagrado: três vacas doentes, com os flancos marcados por feridas e as tetas cobertas de machucados e pústulas.
— Olhe só aquilo… Vacas? E daquelas? — sussurrava um tropeiro ao seu companheiro, o cheiro forte do suor dos cavalos misturando-se ao aroma seco da terra batida.
— Pois é, amigo. Para que a Santa precisa daquelas criaturas moribundas? — retrucava o outro, coçando a barba. — Com o poder que tem, poderia comprar o leite mais puro de todo o Nordeste.
Os olhares se cruzavam, cheios de dúvida, mas a fé sempre falava mais alto. No coração de cada um, uma justificativa se formava: ela, uma mulher tão bondosa, certamente tinha um plano divino. Aquelas vacas, de alguma forma misteriosa, iriam salvar vidas. E, nesse ponto, a intuição popular não estava errada.
Dentro da carruagem, o balanço ritmado das rodas era o som de fundo para os estudos da Papisa. Seus dedos, finos e cuidadosos, percorriam as páginas amareladas do livro “Vacinas: A invenção que salvou mais vidas na história da humanidade”. O ar dentro do compartimento cheirava a velino e à cera de abelha que polia a madeira.
“Tomara que isto esteja certo,” pensava ela, relendo pela décima vez o trecho sobre a varíola bovina. “Se estiver… milhões de vidas serão poupadas. Uma promoção? Talvez. Seria recomendada para uma cidade maior, mas… prefiro ficar aqui. Aqui tenho poder, estou longe dos olhos bisbilhoteiros da sede da igreja e posso conduzir meus experimentos com os Livros Divinos em paz.”
De volta à Cidade Sagrada, as vacas foram levadas para um curral isolado, longe dos cavalos e outros animais. No dia seguinte, Paula reuniu um grupo de padres e freiras corajosos, que se ofereceram como voluntários. Com instrumentos pontiagudos que reluziam à luz das velas, ela coletou, com extrema precisão, o líquido das pústulas das tetas dos animais. O cheiro doce e fétido da infecção enchia o ar. Um a um, ela fez um pequeno risco na pele de cada voluntário e esfregou o fluido no ferimento.
— Santidade, não seria mais prudente… — um padre mais velho começou a questionar, sua voz um misto de preocupação e temor.
Ela interrompeu, sem levantar os olhos do trabalho. — A fé exige coragem, Irmão. Confiem em mim.
Eles se opunham veementemente à ideia de que ela própria servisse de cobaia, e dessa vez, Paula cedeu. Afinal, precisava estar viva e bem para comandar o processo.
Dias depois, pequenas bolhas surgiram no local da incisão nos voluntários, evoluindo para pústulas cheias de pus. Todos, sem exceção, apresentaram febre baixa e mal-estar, mas em poucos dias se recuperaram, ficando apenas com uma cicatriz discreta. Um destino infinitamente melhor do que a morte ou a cegueira que a varíola humana trazia.
— Funcionou — sussurrou uma freira, aliviada, tocando a própria marca com reverência.
— Funcionou, sim — confirmou a Papisa, com um sorriso contido. — Mas o teste final ainda está por vir.
Ela então se lembrou do navio mercante que atracara uma semana antes, vindo do sul. A notícia de que a tripulação inteira estava infectada com varíola a fez ordenar uma quarentena imediata.
— Aqueles homens… — explicou ela aos seus assistentes, o som distante dos gritos dos gansos no pátio ecoando ao fundo — serão a prova final da eficácia da nossa ‘vacina’.
Com cuidado extremo, Paula foi até o navio isolado. O ar salgado misturava-se ao odor pesado da doença. Ela coletou o fluido das pústulas de um dos marinheiros mais enfermos e, de volta à catedral, aplicou-o em um padre de sua absoluta confiança. Dias de uma quarentena angustiante se passaram, mas… nada aconteceu. Testou em outro, e outro. Nenhum adoeceu.
Em seu escritório, envolta pelo cheiro tranquilo da tinta e do papel, Paula observava suas anotações. A luz das velas dançava sobre a caligrafia precisa.
“Realmente funciona… Encontrei a cura para uma das maiores pragas da humanidade. Deveria estar eufórica, e ainda assim… uma sombra de tristeza me envolve. Se tivéssemos esse conhecimento antes, meus pais… Mas não importa. O passado é pedra; o futuro, argila. Vou moldá-lo.”
“E pensar que tudo que sabíamos era um erro,” seus pensamentos continuavam, enquanto a pena traçava letras em uma nova folha. “Não é miasma, nem desequilíbrio dos humores, muito menos uma maldição. É um ‘vírus’. Algo tão pequeno e tão letal. Uma pena que estes Livros Divinos não se aprofundem mais. Preciso de outros. Preciso de mais.”
A carta que escreveu para a sede da igreja relatava o sucesso do procedimento, mas omitia, prudentemente, a verdadeira fonte do conhecimento.
No dia seguinte, a ordem foi dada: todos os fiéis deveriam ser vacinados. A explicação foi clara e direta, feita nos púlpitos e praças. Ninguém recusou. Vivendo em uma cidade portuária, todos conheciam alguém que havia sucumbido à varíola.
A vacinação em massa começou. As pobres vacas não conseguiam produzir fluído para todos, mas logo descobriram que poderiam colher o material das pústulas dos primeiros vacinados. A campanha foi um sucesso, impulsionada pela própria imagem da Papisa, que frequentemente aparecia para aplicar a vacina pessoalmente, sendo a primeira a recebê-la publicamente. Qualquer resquício de dúvida se dissipava ao vê-la.
Apesar do sucesso, uma melancolia fina persistia no coração de Paula.
“Se tivéssemos esse conhecimento antes… Mas não posso mudar o passado. Posso, no entanto, mudar o futuro. Já enviei as cartas para muitas cidades sagradas… Mas preciso de mais livros. Revirei todos os que temos aqui e nenhum fala mais sobre doenças. Preciso falar com Francisco. Ignorei suas visitas durante esses experimentos. Ele foi vender artefatos para aquele escravo… Talvez… apenas talvez, esse escravo saiba de algo. É improvável, mas eu só cheguei aonde estou por acreditar no improvável.”
Como se atendendo a um chamado, um cardeal surgiu à porta do escritório.
— Santidade, o comerciante Francisco está no estábulo. Deseja vê-lo?
— Me leve até ele! — ordenou Paula, erguendo-se num movimento rápido.
O cardeal hesitou, confuso com a urgência, mas obedeceu. Logo, eles estavam no estábulo, onde o cheiro forte de estrume, feno e suor animal dominava o ar. Francisco descarregava sua carroça, surpreso ao ver a autoridade máxima da cidade naquele lugar.
— É um prazer te ver, Francisco! — disse a Papisa, seu robe branco contrastando brutalmente com a sujeira do local. — Acho que Deus te mandou para mim. Estava justamente pensando em você. Me diga, irmão, o que me trouxe? Por acaso, trouxe livros?
O comerciante, atordoado, engasgou por um momento antes de responder. A informalidade dela sempre o chocava.
— Boa tarde, Santidade. Eu… é, também estava a procurar a Senhora. Tenho muito para contar. E já fiquei sabendo da sua nova descoberta. A ‘Vacina’ da Santa Paula, não é?
Paula manteve o sorriso sereno, mas uma centelha de impaciência brilhou em seus olhos.
— Graças a Deus, sim. Uma forma de prevenir o sofrimento. Adquiri esse conhecimento através de um dos Livros do Diabo que você me vendeu. Aliás, devemos parar de chamá-los de ‘livros do diabo’. São mensagens divinas, Francisco. Presentes de Deus para aliviar nosso fardo.
O cardeal que a acompanhava arregalou os olhos, chocado. Francisco também ficou pasmo. Ela nunca falava daquelas coisas tão abertamente.
Paula, no entanto, olhou diretamente para o cardeal e continuou, sua voz clara e deliberada: — Graças a esse conhecimento, recuperei membros de crianças e agora impeço que milhares morram. Se é um conhecimento do mal, por que salva tantas vidas? Acho que a igreja errou ao banir esses livros. Alguns, sim, são blasfemos e devem ser queimados. Mas outros… outros são a própria caridade divina materializada.
“E me permitiram tornar-me quem eu realmente sou,” pensou, complementando internamente. “Mas alguns milagres é melhor permanecerem inexplicáveis.”
O cardeal ficou em silêncio por um longo momento, seu rosto inicialmente surpreso transformou-se em uma expressão pensativa e, por fim, serena. Paula sorriu internamente.
“Exatamente como imaginei. Sou a Papisa, a mulher que faz milagres. Quem o povo vai seguir? Uns velhos distantes que só sabem queimar hereges, ou a mulher que lhes salva os filhos? Preciso desses livros, e a igreja não vai me impedir. O que farão? Me excomungar? Depois de tudo? Que tentem. Levará meses para a notícia chegar à sede, e duvido que muitos aqui estejam dispostos a me trair.”
Francisco, recuperando o fôlego, balbuciou: — Infelizmente, Santidade, esta viagem foi infrutífera… não consegui nenhum livro. Porém, tenho uma história interessante sobre o escravo que conhecia os artefatos.
A decepção foi visível no rosto de Paula, mas rapidamente substituída por interesse ao ouvir toda história do que aconteceu no engenho.
— Então aquele escravo foi para o Quilombo da Jabuticaba? E te convidou a visitá-lo? Acho uma ideia excelente. Poderia levar uma carta da minha parte. Mesmo sendo escravo, se conseguiu entender os artefatos através dos livros divinos, deve saber ler. Talvez tenha mais conhecimentos que possam nos ajudar.
Francisco sentiu um frio percorrer sua espinha. Quilombo? Era um lugar de lendas terríveis.
— Santidade, o Quilombo… os relatos não são bons. Dizem que são perigosos…
A Papisa inclinou a cabeça, um sorriso leve e perigosamente doce brincando em seus lábios.
— Estou apenas relembrando… alguém vendeu artefatos proibidos. Ilegalmente. Um herege, não? No futuro, talvez esse comércio seja permitido… para comerciantes selecionados, com certas isenções de taxas… — ela fez uma pausa dramática, seu olhar perfurante. — Ou, talvez, eu deva simplesmente seguir a doutrina e queimar os hereges envolvidos nesse comércio. Tantas escolhas difíceis, não acha?
Não havia santidade naquele sorriso. Era pura e calculada malícia.
Francisco sentiu o suor frio escorrer por suas têmporas. A escolha, na verdade, não existia.
— Eu… aceito a sua proposta, Santidade.
A Papisa ergueu os braços, num gesto quase celestial.
— Que proposta? — disse, com inocência encenada. — De qualquer forma, fico feliz. Vou escrever a carta agora mesmo!
E, com seu robe branco manchando-se levemente de poeira e palha, ela saiu do estábulo, deixando para trás um comerciante aterrorizado e um cardeal com um novo universo de questões fervilhando em sua mente.

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