Índice de Capítulo

    O sol da tarde filtrado pelos vitrais coloridos do escritório projetava manchas de rubi e safira sobre a pesada mesa de carvalho. Papisa Paula estava imersa na releitura de seu livro sobre vacinas, seus dedos deslizando sobre as ilustrações de estruturas celulares que mais pareciam mapas de mundos desconhecidos.

    “Segundo este livro, existem diversos tipos de vacinas,” ela pensou, a testa franzida em concentração. “Todas com o objetivo de prevenir uma doença específica. Umas usam uma versão atenuada do vírus ou bactéria, outras os utilizam mortos, certas pegam apenas parte do vírus, já algumas usam diretamente partes de RNA que ajudam nosso corpo a combater a doença… Mas não entendo. Não entendo nada. O que são vírus e bactérias? Sei que causam doenças, mas são animais minúsculos? Espíritos da pestilência? E existem outras formas de combatê-los além das vacinas? O que seria esse ‘RNA’? Compreendi que as vacinas ajudam o corpo a criar imunidade, um escudo… mas o resto é como tentar ler hebraico no escuro.”

    Ela largou o livro com um baque surdo na mesa, levantando-se com um suspiro de frustração. Aproximou-se da janela de arcos ogivais, olhando para o jardim meticulosamente podado abaixo. O aroma das rosas e do alecrim subia até ela, um contraste perfumado com a confusão em sua mente.

    “Já faz um mês que Francisco partiu. Está na hora dele voltar. Não estou com expectativas altas, mas qualquer ajuda para decifrar esses conceitos seria uma bênção…”

    Enquanto o pensamento ecoava em sua mente, uma batida discreta na porta a fez virar-se.

    — Vossa Santidade? — a voz grave de um cardeal ecoou na madeira. — O comerciante Francisco voltou. Trouxe uma carta e disse que entenderíeis.

    O coração de Paula deu um salto. Ela abriu a porta rapidamente, uma centelha de animação em seus olhos.

    — Sim, sim! Leve-me até ele, imediatamente.

    Enquanto seguia o cardeal pelos corredores frios de pedra, cujos tapetes amorteciam seus passos, não pôde conter um sorriso de satisfação.

    “Pensar no homem e eis que notícias chegam. É um sinal. O Divino realmente está guiando meus passos.”

    Mal chegou à antessala onde Francisco aguardava, o homem se atirou ao chão, ajoelhando-se de forma desesperada. Seu rosto estava pálido, marcado pela exaustão e pelo medo.

    — Vossa Santidade, eu lhe imploro! — sua voz era um misto de súplica e pânico. — Não me mande mais para aquele lugar! Por piedade!

    Paula se moveu com rapidez elegante, inclinando-se sobre ele como um pássaro de rapina. Seus sussurros foram cortantes, um fio de voz que só ele podia ouvir.

    — Cale a boca e controle-se! Está causando um escândalo! Esqueceu-se do sigilo que jurou manter?

    A repreensão funcionou como um balde de água fria. Francisco engoliu seco, respirou fundo e, com tremendo esforço, levantou-se, recompondo a postura. O cheiro de suor e poeira da estrada ainda lhe impregnava as roupas.

    — Perdoai-me, Vossa Santidade — disse ele, a voz ainda trêmula, mas mais controlada. — Cumpri a missão que me foi confiada. Aqui está a resposta que me deram.

    Ele ainda tirava a carta do bolso interno do casaco, amassada e suja da viagem, quando Paula a arrebatou de suas mãos com impaciência.

    — Vejamos o que o nosso misterioso amigo tem a dizer — murmurou, quebrando o selo grosseiro com o polegar.

    Seus olhos percorreram as linhas, e um sorriso de genuíno interesse surgiu em seus lábios.

    “Opa, direto ao ponto. Do jeito que gosto.”

    A carta dizia:

    “Bactérias e vírus são microorganismos, seres minúsculos, tão pequenos que são invisíveis a olho nu. Eles estão em todos os lugares: na água, no ar, na terra e até dentro e fora de nós. A maioria é inofensiva, mas alguns podem causar danos aos seres humanos.

    Bactérias são um tipo de microorganismo que não possui núcleo.

    Vírus são menores que bactérias e não são considerados vivos, pois precisam atacar uma célula viva para se reproduzir.

    Vacinas são apenas uma forma de prevenir doenças. Outra forma bem simples é lavar as mãos com sabonete, pois ele elimina a maioria dos vírus e bactérias. Se não acredita nisso, faça um simples experimento: obrigue os padres da Santa Casa da Misericórdia a lavar as mãos toda vez que forem fazer um parto ou tratar de uma ferida aberta, e anote o resultado.

    Se mesmo com esses experimentos ainda não acreditar em microorganismos, posso explicar como fazer uma máquina que permite vê-los. Essas informações que lhe passei são apenas o básico do básico. Se quiser mais, mande comerciantes para o quilombo. Temos roupas baratas para vender em troca de ferro e outros produtos.

    Eu, Carlos, disse isso tudo em nome do Quilombo da Jabuticaba e de Ganga Zala!”

    A cada linha, o sorriso de Paula se alargava, seus olhos brilhando com uma luz de descoberta.

    — Fascinante! — ela exclamou, quase para si mesma. — Qualquer outra pessoa descartaria isso como baboseira de um negro ignorante, mas eu não! Tenho que fazer esses experimentos! Se for verdade… eu, Santa Paula, terei mais uma contribuição monumental para a Igreja em meu nome!

    Ela já se virava, decidida, pronta para se dirigir à Santa Casa da Misericórdia, quando a voz ansiosa de Francisco a deteve.

    — E a minha recompensa, Vossa Santidade?!

    Paula parou. Um suspiro de irritação quase imperceptível escapou-lhe. Ela se virou lentamente, e um sorriso calmo e sereno, perfeitamente ensaiado, surgiu em seu rosto. Dirigiu-se ao cardeal que a acompanhava.

    — Por favor, irmão, recompense este nobre comerciante pelo seu serviço à Igreja. Paguem-lhe cem mil réis.

    Os olhos de Francisco se arregalaram, e um sorriso de ambição e alívio estampou-se em seu rosto.

    — Cem mil!? Vossa Santidade é generosa demais!

    Enquanto o cardeal se afastava para cumprir a ordem, o sorriso sereno de Paula se dissolveu como fumaça. Foi substituído por uma expressão astuta e maliciosa. Ela se aproximou do comerciante, e por ser mais alta, inclinou-se ligeiramente, olhando-o de cima.

    — Generosa? — sussurrou, sua voz agora um fio gelado. — Isso foi apenas um adiantamento. Você ficará aqui por uma semana, até eu verificar as informações da carta. E então… voltará ao quilombo.

    Toda a felicidade fugiu do rosto de Francisco, substituída por um pavor pálido.

    — Mas… Paula… Vossa Santidade, não pode fazer isso comigo! Eles são bárbaros! Selvagens!

    A santidade endireitou a postura, jogando os longos cabelos para trás com um gesto de arrogância.

    — Humf! Não me recordo de ter lhe dado permissão para tanta insolência. Para sua sorte, estou bem-humorada. Além do mais, você sempre me ajudou… e eu estou retribuindo o favor. Aposto que já leu a carta e sabe o que estão propondo.

    — O que propõem não será lucrativo! — ele argumentou, desesperado. — Roupas são caríssimas de produzir! Mesmo que consigam fazê-las, o tempo da viagem não valerá o esforço… Espera, não me diga que acreditou nessa história de ‘micro-sei-lá-o-quê’?

    — Não só acreditei — ela retrucou, os olhos estreitados — como imaginei que essas tais bactérias e vírus, mencionadas em meus livros, fossem invisíveis por estarem no reino dos mortos, ou por serem criações demoníacas, ou simplesmente por serem minúsculas. E não considero nenhuma de minhas teorias uma ‘baboseira’!

    O sorriso malicioso em seu rosto se intensificou, tornando-se quase predatório.

    — E você… você realmente leu a carta. Era um documento confidencial da Igreja. A punição por tal transgressão seria…

    Nesse momento, o cardeal retornou com uma pesada bolsa de moedas. Ao vê-lo, Francisco, num acesso de terror calculado, atirou-se de joelhos novamente, agarrando-se à barra do vestido de Paula.

    — Perdoai-me, Vossa Santidade! Jamais cometerei o mesmo erro! Poupei minha vida, eu vos imploro!

    “Querendo queimar minha imagem de santa, não é, seu velho amigo?” pensou ela, com desdém interno. “Pena que não caio nessa pantomima.”

    Externamente, seu rosto se transformou novamente, a malícia dando lugar a uma piedade beatífica.

    — Levante-se, meu filho. Não é para tanto. Sei que se acha merecedor de um castigo severo, mas pode aceitar este dinheiro sem remorso. Apenas fique na cidade sagrada esta semana e frequente a igreja diariamente. Ore pelo perdão e doe a maior parte do que ganhou aos pobres. Deus lhe recompensará em dobro. Use este tempo para reflexão e penitência.

    O homem baixinho ergueu-se, um sorriso falso e tenso estampado no rosto. Paula, porém, viu a farsa claramente, assim como o lampejo de ódio que brilhou em seus olhos por uma fração de segundo.

    — Obrigado, Vossa Santidade — disse ele, com voz submissa. — Sou imensamente grato por vossa benevolência.

    Ele pegou a pesada bolsa das mãos do cardeal e saiu rapidamente, desaparecendo na direção da cidade baixa.

    Paula, por sua vez, deu ordens precisas a outro cardeal.

    — Mande buscar uma fornada de sabonetes na oficina dos monges e leve-os à Santa Casa da Misericórdia. Instrua todos os padres e irmãs a lavarem as mãos com sabão antes de qualquer procedimento com pacientes. E, como sempre, que anotem minuciosamente o estado de todos.

    “Planejava ir pessoalmente,” ela refletiu, “mas acho que devo primeiro agradecer a Deus por esta benção e meditar sobre seu conteúdo.”

    Seguindo seu próprio conselho, ela se dirigiu à catedral. O prédio, embora imponente pelo padrão da colônia e intitulado “catedral”, não podia sequer ser comparado às grandiosas construções do Velho Mundo, que levavam séculos para ser erguidas. Mesmo assim, era o maior templo do Novo Mundo, pelo menos por enquanto, nas colônias espanholas se construía uma catedral que prometia ser mais grandiosa, e seu interior silencioso e sombrio, perfumado por incenso e cera de velas, sempre a acalmava.

    Enquanto caminhava, seus pensamentos voltavam à carta.

    “Se essas informações forem verdade… milhares de vidas poderão ser salvas. Atualmente, três em cada dez pessoas que curamos nas Santas Casas acabam morrendo de infecções subsequentes, mesmo usando as Gemas da Cura e da Alteração… Será que somos nós que causamos isso? Esses ‘microorganismos’ ficam em nossas mãos ao lidarmos com os doentes e depois os passamos para pessoas com a saúde fragilizada? É por isso que o sabonete é crucial? Mas que pena, a carta foi tão curta! Preciso de mais informações! Esse Carlos podia simplesmente me entregar o livro inteiro! O que um homem num quilombo no meio do mato faria com um conhecimento tão profundo?”

    Chegando à catedral, encontrou seu banco habitual, afastado e tranquilo. Sentou-se e mergulhou em oração por quase uma hora, até que sua mente, mais uma vez, vagou para o reino da ciência e do poder.

    “Os idiotas da sede da Igreja no Velho Mundo não compreendem nem um pouco o potencial da Gema da Alteração. Com ela, é possível sentir os aspectos mais ínfimos do corpo. As células, como o livro de anatomia descreve. Não apenas células, mas cada proteína, cada órgão, cada veia… e talvez até mais. Se o que o negro disse é verdade, existem microorganismos dentro do meu próprio corpo. Se consigo sentir minhas células, então devo ser capaz de senti-los também… Mas será que posso considerá-los parte de mim, já que vivem em mim? Não custa tentar.”

    A Gema da Alteração, uma pedra azul-escura incrustada no crucifixo de prata que pendia de seu pescoço, começou a emitir um leve brilho pulsante. Os fiéis ao redor, notando a concentração profunda da Papisa, mantinham uma distância respeitosa, admirando-a de longe. Aquele horário era sempre movimentado, com muitos vindo para orar na mesma hora que ela, embora nenhum suportasse ficar tanto tempo em devoção.

    Paula sentia cada batimento do seu coração, cada fluxo sanguíneo, cada órgão funcionando em harmonia. Sem usar muita mana, sentia o corpo como um todo. Para focar em algo específico, no entanto, exigia-se um imenso esforço de concentração e um grande dispêndio de energia mágica. Quanto mais mana canalizava, mais o mundo microscópico se revelava.

    “…Não dá,” ela pensou, com uma pontada de frustração e cansaço latejando em suas têmporas. “Vou gastar toda a minha mana e não encontrarei esses tais micróbios. Bem, não importa. Vou continuar com minha prática habitual… Alterar meus hormônios e células para manter meu corpo no estado ideal.”

    “E pensar que comecei a fazer certas células produzirem apenas para testar se o conhecimento do livro estava correto, e se a Gema seria capaz de tal proeza. Afinal, era bem menos arriscado do que cortar um dedo para tentar reconstruí-lo. E, bem, se eu acabasse tendo alguns… efeitos colaterais, como acabei tendo… seria uma vitória de várias formas, como de fato foi. Pena que quase fui queimada como herege por conta disso.”

    “Mas nem eu acreditava totalmente naquela ‘baboseira’ do livro na época, assim como ainda não acredito plenamente nesta carta. Só queria encontrar um uso prático para a Gema da Alteração. E consegui. A cada novo conhecimento que absorvia, meus poderes com a Gema se refinavam, até que consegui realizar o milagre de regenerar membros de outras pessoas. Então, talvez… se eu compreender profundamente esse novo conhecimento, poderei curar doenças com um simples toque? Seria mais um milagre para a Santa Paula!”

    “Espera… Há um grupo de células no meu pulmão… estão se comportando de forma estranha. Diferente. Será que foram infectadas por um vírus? A carta dizia que vírus precisam de células para se reproduzir. Seria isso? Preciso investigar… Ah, minha cabeça! A dor está insuportável, estou consumindo mana demais…”

    A dor latejante tornou-se aguda. Com um último esforço, a Papisa fez o sinal da cruz e interrompeu a conexão mística. A luz da gema em seu pescoço se apagou.

    “Existem outras formas de verificar os conhecimentos da carta,” ela lembrou a si mesma, ofegante ligeiramente. “Não preciso ter pressa. Preciso ter paciência.”

    Levantou-se com sua graça habitual e dirigiu-se para a saída da catedral. Ao cruzar os grandes portões, uma brisa marinha, salgada e fresca, soprou em sua direção. O ar carregado de partículas de sal e umidade fez com que um espirro súbito ameaçasse emergir. Ela o conteve com um esforço sobre-humano, apertando o nariz e respirando fundo, mantendo intacta sua imagem de serenidade impecável.

    “Talvez eu esteja mesmo adoecendo…” pensou, uma nova centelha de curiosidade científica substituindo o incômodo físico. “Terá relação com aquelas células alteradas? Preciso fazer mais experimentos!”

    ───────◇───────◇───────

    Na capital da capitania de Pernambuco, a cidade de Areia Branca fervilhava sob um sol inclemente. O cheiro de peixe seco, suor e especiarias enchia o ar da praça principal. Um homem, suado e de pulmões de ferro, balançava um sino de bronze, seu som estridente cortando o burburho do mercado.

    — Ouçam! Ouçam bem! — ele gritava, atraindo olhares. — O governador planeja um ataque para eliminar o Quilombo da Jabuticaba! Qualquer homem que saiba usar uma gema mágica será bem pago! Quem tiver informação da localização exata do quilombo também será recompensado! Vamos acabar com os pretos fujões e recuperar o que é nosso!

    A multidão ao redor começou a se agitar, um murmúrio de interesse e ganância se espalhando.

    — Eu sei manejar uma Gema do Fogo!

    — Já cacei naquelas matas! Posso guiar as tropas!

    — Quanto tão pagando? Fala o valor!

    No meio do alvoroço, um menino de roupas esfarrapadas, de no máximo quatorze anos, esgueirou-se pela multidão e correu em direção a uma taverna escura e mal-cheirosa à beira do cais. Lá dentro, o ar era pesado com o cheiro de cachaça barata e tabaco. Ele se aproximou de um velho encostado no balcão, um chapéu de vaqueiro surrado na cabeça e uma cicatriz profunda cortando sua sobrancelha direita.

    — Seu Sebastião! — o menino chamou, ofegante. — Tão querendo acabar com todos os pretos do Quilombo da Jabuticaba! Dizem que vão pagar uma fortuna! A gente devia se juntar, eu consigo pegar um ou dois, fácil!

    O homem, claramente embriagado, virou o rosto lentamente. Seus olhos vermelhos e turvos focaram no menino com dificuldade.

    — Hã… — ele resmungou, com a voz pastosa. — Esse governador é novato e ingênuo, Joãozinho. Se fosse tão fácil assim acabar com o quilombo, a gente já teria feito isso há cinquenta anos. Todo mundo que for nesse primeiro ataque… vai dar de cara com a realidade. Caçar preto fujão não é brincadeira de criança não. — Ele deu um gole longo na sua caneca. — Além do mais, ainda temos uns cobres guardados. Vamos é esperar. Deixa essa leva de aventureiros se estrepar. O próximo ataque, aí sim, a gente se junta pra ganhar a grana de verdade.

    O menino, Joãozinho, fez uma careta involuntária com o forte bafo de álcool, mas se conteve.

    — Tá bom, Seu Sebastião — disse ele, obedientemente. — Faz sentido. A gente espera.

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