Índice de Capítulo

    O sol do meio-dia incidia como um prego em brasa sobre a estrada poeirenta que saía de Areia Branca. Uma carroça solitária rangia sob o calor, carregando três escravos de mãos atadas a caminho de um pequeno engenho. O ar pesado e seco carregava o cheiro de terra queimada e suor. Dois homens e uma mulher mantinham os olhos fixos no chão, seus corpos movendo-se em sincronia com cada solavanco do veículo, num silêncio quebrado apenas pelo crepuscular das rodas e pelo zumbido insistente de moscas.

    Ao chegar ao engenho, o condutor, um jovem de origem indígena, estalou o chicote no ar. O som cortou a quietude como um tiro.

    — Desçam, seus pretos imundos! Chegaram à sua nova casa! — Sua voz era áspera e carregada de desdém.

    Os escravos desceram lentamente, seus olhos wide-bertos capturavam a senzala ao longe, a casa-grande de paredes brancas e o aroma adocicado e fermentado da cana. O medo e a impotência eram palpáveis no ar, um gosto amargo na boca de todos.

    O senhor do engenho, alertado pelo barulho, surgiu na varanda. Seus olhos percorreram os recém-chegados com um brilho avarento antes de descer os degraus apressadamente.

    — Não acredito! — exclamou, esfregando as mãos. — O governador mandou essa reposição pelos que perdi na guerra? Ele é um anjo da guarda! E esses aí… bem mais robustos do que os que enviei.

    Circulou os cativos, sua presença invasiva e seu olhar grosseiro percorrendo cada centímetro de seus corpos. O capataz, uma sombra silenciosa, acompanhava-o.

    — Principalmente esta mulher… — murmurou o senhor, os olhos fixos nela. — Tire as roupas dela. Quero ver a mercadoria em detalhes.

    O capataz obedeceu, arrancando a blusa da escrava. O ar frio da tarde arrepiou sua pele, e ela o encarou com um ódio mudo, seus seios expostos à visão de todos. Ela não podia fazer nada, mas seu olhar era uma lâmina.

    — Realmente, uma bela peça — sussurrou o senhor, com um sorriso lascivo. — Esta noite você virá para a casa-grande. Por agora, você e os outros podem trabalhar no canavial.

    O jovem condutor da carroça se preparava para partir.

    — Que bom que o senhor gostou do pedido de desculpas do governador — disse, com uma leve inclinação de cabeça.

    O senhor do engenho esticou os lábios num sorriso.

    — Foi um pedido de desculpas mais do que adequado. E veja, o dia já declina. É perigoso andar por estas estradas à noite; dizem que a Mula sem Cabeça assombra estas bandas. Por que o moço não fica? Pode abrigar seus cavalos com nosso gado.

    O jovem indígena sorriu, aceitando a oferta.

    — O senhor tem um coração generoso! Aceito a hospitalidade.

    Ele desceu e levou os animais para o estábulo, misturando-se ao rebanho. O dia se despediu em tons de laranja e púrpura, dando lugar a uma noite estrelada e pesada.

    Dentro da casa-grande, na cama de dossel, a escrava era forçada a se deitar com o senhor. Seu rosto era uma máscara de gelo, seus olhos fitando o teto escuro, onde as sombras dançavam como demônios. Ela suportava em silêncio, até que, com uma calma sobrenatural, abriu bem a boca.

    — He, he, he! — o senhor riu, ofegante. — Finalmente está revelando que está gostando, não é mesmo?

    Mas não era um gemido que saiu de sua boca. Lá, no céu da boca, um piercing com uma gema da cor do fogo brilhou. O senhor do engenho viu e, num instante de puro pânico, entendeu o perigo. Era tarde demais.

    A escrava soprou. Não um sopro de ar, mas um jorro de chamas vivas que atingiram o rosto do homem em um clarão cegante e um cheiro instantâneo de carne queimada. Ele gritou, um som agônico e estridente, enquanto se contorcia na cama, suas roupas e a própria cama pegando fogo. A mulher não parou, soprando até que seu corpo ficou negro e imóvel, e os gritos se extinguiam em um sussurro carbonizado.

    Só então ela parou. Em meio às chamas que lambiam os móveis, ela se levantou com toda a calma, recolheu suas roupas do chão e vestiu-se. Ao sair da casa-grande em chamas, encontrou o jovem indígena à sua espera, seus traços iluminados pelo fogo dançante.

    — Você demorou — disse ela, a voz serena.

    — Havia mais capatazes do que esperávamos — ele respondeu. — Lamento tê-la feito aguentar aquele velho imundo.

    O rosto da mulher permaneceu inexpressivo, mas seus olhos faiscaram por um segundo.

    — Estava preparada. Agora, vamos libertar os outros e fugir para o quilombo, como Domingos pediu.

    Ela se dirigiu à senzala, e o jovem a seguiu.

    — Sabe… acho que você poderia melhorar sua atuação. Não é muito convincente no papel de escrava indefesa.

    Ela o encarou de relance, e o ódio em seus olhos foi resposta suficiente.

    — Tudo bem, tudo bem, calo a boca. Enfim, agora voltarei para Domingos. Boa sorte com sua missão.

    Antes que ela pudesse responder, o jovem dissolveu-se na escuridão, silencioso como uma sombra. A mulher prosseguiu sozinha até a senzala. Ao abrir a porta, os dois escravos que haviam chegado com ela foram os primeiros a sair, seus olhos não demonstraram nenhuma surpresa.

    Um a um, os demais acordaram com a agitação. Sussurros transformaram-se em exclamações abafadas, depois em lágrimas silenciosas de alívio e alegria. A notícia da liberdade correu como fogo na palha. Sem hesitar, decidiram seu destino: seguiriam para o Quilombo da Jabuticaba.

    ───────◇───────◇───────

    Na Cidade Sagrada de Santa Maria, novo laboratório de Vossa Santidade Paula exalava o cheiro envelhecido de pergaminho e cera de vela. Entre as pilhas de livros e manuscritos, um objeto anacrônico dominava uma mesa: um microscópio de latão polido.

    — Finalmente! Esta belezinha está pronta — sussurrou Paula, acariciando o instrumento. — O artesão mágico demorou séculos, mas valeu a pena. Com isso é possível ver criaturas minúsculas…

    Com dedos ansiosos, colocou uma gota de água entre duas lâminas de vidro, ajustou as lentes e inclinou-se sobre a ocular. Um suspiro de puro êxtase escapou de seus lábios.

    — Incrível! É fantástico! Um mundo inteiro… dentro de uma gota!

    Pequenos seres se contorciam e nadavam, algas verdes dançavam em um universo aquático. Imediatamente, ela mergulhou em anotações frenéticas, seus esboços preenchendo páginas e páginas. Batizou as criaturas com nomes que inventava no momento.

    — Mais uma descoberta magnífica da Santa Paula! — declarou para as estantes silenciosas. — Com isso, posso publicar um tratado sobre o mundo invisível! Mas primeiro, o dever… Enviarei os diagramas e estes desenhos para a Igreja, com instruções para combater essas criaturas que causam doenças.

    Seus olhos brilharam com ambição.

    — E então… farei uma proposta que não poderão recusar. Pedirei permissão para importar minérios brutos. Carlos terá seus materiais, e eu… eu terei a cura para todas as doenças causadas por bactérias!

    Ela passou dias finalizando sua documentação, enviando-a para a Igreja junto com o audacioso pedido.

    Em uma noite chuvosa, com a tempestade batendo contra os vitrais, Paula deu o próximo passo. O laboratório era um caos organizado, iluminado pelo tremor de dezenas de velas que lançavam sombras irrequietas pelas paredes.

    — Como serão as células do meu sangue? — perguntou ao vento e à chuva.

    Sem hesitar, pegou uma adaga fina e fez um corte rápido na palma da mão. O sangue, vermelho-vivo e com seu cheiro metálico característico, escorreu sobre uma lâmina. Sob a lente do microscópio, um novo mundo se revelou: glóbulos vermelhos como discos rubros, glóbulos brancos fantasmais e, entre eles, pequenas bactérias nadando.

    — Então era isso que eu sentia com minha magia… — murmurou, fascinada. — Agora posso ver!

    Ela observou um glóbulo branco perseguindo uma bactéria, falhando em capturá-la.

    — Se ele está fora do meu corpo… talvez eu possa… controlá-lo? Nas outras vezes falhei, mas agora… agora eu vejo.

    A gema azul escura no crucifixo em seu pescoço cintilou com uma luz suave. Imediatamente, o glóbulo branco na lâmina se multiplicou em centenas, cercando e consumindo a bactéria em segundos.

    — Funcionou! — ela exclamou, uma risada contida escapando. — E o custo de mana… foi insignificante!

    Sua curiosidade tornou-se uma febre. Ela fez o sangue se multiplicar até transbordar da lâmina, manchando a mesa. Testou com seu cabelo, com sua saliva. Finalmente, num ato de pura determinação, cortou a ponta de seu mindinho e colocou-a sob a lente.

    Lá fora, a chuva se transformara em um dilúvio, e os trovões rugiam como bestas antigas. No microscópio, as células de sua pele pareciam pequenos tijolos.

    “Carlos escreveu sobre a estrela do mar… que pode regenerar um corpo inteiro a partir de um braço. Com este microscópio e minha magia… eu devo conseguir!”

    Concentrando-se, ela canalizou seu poder. A carne, o sangue e a pele no vidro começaram a se agitar e crescer, quebrando a lâmina. Ela tirou o microscópio rapidamente, observando a massa biológica se expandir sobre a mesa, formando uma mão grotesca e deformada.

    — Este processo… — sussurrou, os olhos abertos. — Está drenando muito pouco de minha mana! O conhecimento, só o conhecimento, já é suficiente para reduzir o custo!

    A massa continuou a crescer, modelando-se em um braço. A euforia tomou conta dela, uma onda incontrolável. Diante daquele membro se reconstruindo de forma antinatural, uma risada escapou de sua garganta—primeiro um simples “ha”, depois outra, até se transformar em uma gargalhada maníaca e estridente que ecoou pela sala ensanguentada.

    — HA HA HA! EU SOU INCRÍVEL! AQUELES VELHOS CARCOMAS DA CIDADE SAGRADA NÃO SABEM DE NADA!

    O braço parou de crescer quando sua mana se esgotou, mas a risada histérica continuou.

    Foi nesse exato momento que o Cardeal Silva, voltando de uma visita noturna ao banheiro, ouviu o som perturbador vindo do escritório da papisa. Seus pés descalços faziam pequenos sons no mármore frio do corredor escuro. A cada passo, a risada ficava mais alta, mais distorcida—um misto de triunfo e loucura que o encheu de um frio na espinha. Impulsionado por um misto de preocupação e temor, ele empurrou a pesada porta de carvalho.

    A cena que se revelou foi de um grotesco além de sua pior imaginação. Um braço decepado e pálido repousava sobre a mesa, sangue escorrendo pela madeira e formando poças rubras no chão. Pedaços de cabelo claro estavam espalhados entre vidros quebrados. O ar estava pesado com o cheiro adocicado e metálico do sangue e da fumaça das velas, cuja luz tremulante projetava sombras que dançavam sobre uma figura central: a própria Santa Paula que estava irreconhecível por conta da luz, de vestes brancas agora manchadas de vermelho, seu rosto iluminado de baixo para cima, rindo para o teto como uma alma penada.

    Ao ouvir a porta se abrir, ela virou a cabeça com um movimento brusco. Seus olhos azul-escuros, bem abertos e com um brilho sobrenatural na penumbra, fixaram-se diretamente nos do cardeal. Um terror absoluto, primitivo e paralisante, inundou o homem. Seus pulmões queimaram, e um grito agudo e curto rasgou a garganta antes que suas pernas cedessem e a escuridão o levasse, desmaiando no limiar da porta.

    Vendo o cardeal desmoronar, o instinto de Paula falou mais alto. Ela correu para ajudá-lo, mas seus pés escorregaram na poça de sangue ainda fresca. Escorregou, caindo de cara no chão pegajoso, sujando-se completamente de vermelho.

    “Que droga, justo agora!”, pensou, com o rosto contra o mármore frio. “Mas… como está o cardeal?”

    Enquanto isso, no dormitório das freiras, o grito abafado havia ecoado pelos corridores silenciosos. A Irmã Diana acordou com um sobressalto, seu coração batendo forte contra as costelas.

    — Maria! — sussurrou, sacudindo a companheira de quarto. — Você ouviu? Alguém gritou! Precisam de ajuda!

    Maria, profundamente adormecida, apenas virou-se e puxou o cobertor.

    — Diana, foi um trovão… ou um pesadelo. Não foi nada. Volte a dormir.

    A freira mais gordinha não se convenceu.

    — Eu ouvi um grito, estou te dizendo!

    Mas a única resposta foi um ronco suave. Determinada, Diana pegou um castiçal com uma vela acesa, sua chama tremulante, e saiu para investigar.

    Ela caminhava pelos corredores vazios do distrito da igreja, cada sombra parecia se mover com ela. Os trovões do lado de fora iluminavam os vitrais em flashes fantasmagóricos, criando monstros passageiros nas paredes. Suas mãos tremiam, fazendo a cera quente escorrer sobre seus dedos. De repente, sentiu algo frio e úmido sob seus pés descalços—não era a água da chuva. Um raio iluminou o corredor, revelando uma mancha escura e pegajosa: sangue.

    Um grito preso na garganta da freira se transformou em um pânico mudo. Ela deixou cair o castiçal, que rolou pelo chão, sua chama fraca seguindo um rastro de sangue que levava… até os pés de alguém.

    Outro relâmpago iluminou o corredor. Lá estava uma figura—uma mulher de olhos azuis brilhantes e vestes ensanguentadas, arrastando o corpo inerte do Cardeal Silva. O choque foi tão violento que o grito de Diana morreu antes de nascer, sufocado pelo estrondo do trovão. A escuridão a consumiu, e ela desmaiou, caindo pesadamente ao chão.

    Na manhã seguinte, tanto o cardeal quanto a Irmã Diana juraram ter visto uma mulher ensanguentada de olhos azuis e brilhantes. Estranhamente, porém, ambos haviam acordado em suas próprias camas, e o suposto braço e todo o sangue haviam desaparecido do laboratório. Muitos na Igreja descartaram suas histórias como pesadelos vívidos, embora outros confirmassem ter ouvido gritos naquela noite de tempestade. 

    Por conta disso, se formou uma lenda na igreja de uma mulher ensanguentada vagava pelos corredores em noites chuvosas.

    Mal sabiam eles que a própria Santa Paula havia passado a noite inteira acordada, esfregando e lavando cada centímetro do local, tentando apagar os vestígios de sua experiência grotesca.

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