Capítulo 57 - Prefeitura
O sol da tarde batia forte sobre a terra batida do quilombo, aquecendo o ar e preenchendo-o com o cheiro seco da poeira e o aroma distante da mata. Carlos estava em pé sobre um palanque tosco, erguido bem em frente à nova prefeitura. O coração batia acelerado em seu peito, não por causa do calor, mas pela multidão de rostos que tinha à sua frente.
A prefeitura se erguia, imponente, como um sonho feito realidade. Suas paredes de cimento liso, de um cinza claro e uniforme, refletiam a luz do sol, criando um contraste marcante com as casas de barro e madeira do entorno. O cheiro característico da cal e do cimento ainda pairava no ar, misturando-se ao aroma da terra molhada.
“Pelo menos o cimento garantiu uma estrutura sólida e à prova do tempo,” pensou ele, observando a fachada austera. “Mesmo sem conhecimentos de arquitetura, conseguimos algo que transmite solidez e permanência.”
Diante do palanque, estavam reunidos todos os pedreiros do mocambo — os veteranos que haviam suado para erguer a prefeitura, os que abriam estradas com ferramentas simples e os novatos, com olhos ainda cheios de incerteza. Junto a eles, os futuros ministros e funcionários que dariam vida àquele lugar observavam, expectantes.
Carlos respirou fundo, sentindo o gosto da poeira na boca. Suas mãos tremiam ligeiramente ao segurar as anotações.
— Amigos! Irmãos! — sua voz saiu um pouco rouca no início, mas ganhou força. — Este edifício que vocês ajudaram a erguer não é apenas cimento e trabalho. Ele é um símbolo! Um símbolo de que nós, filhos desta terra, somos capazes de construir nosso próprio futuro, com nossas próprias mãos. Aqui, não seremos mais geridos pelas vontades de outros. Aqui, nossas leis nascerão, nosso progresso será planejado e nossa voz terá um lugar para ecoar! Esta prefeitura de cimento é a materialização da nossa liberdade!
O discurso fluía, e ele via nos olhos das pessoas não mais resignação, mas uma centelha de esperança. Ao final da parte principal, suas mãos já estavam mais firmes. Pegou a última folha.
— Durante os meses de construção, observei cada um de vocês. Vi suor, dedicação e, acima de tudo, potencial. Por isso, estou promovendo alguns de nossos mais valiosos trabalhadores, com um aumento de salário de mil réis!
Um murmúrio de excitação percorreu a multidão. Carlos sentiu um nó de ansiedade no estômago se desfazer.
“Com uma equipe maior e mais experiente, posso finalmente expandir os projetos. O quilombo vai crescer,” pensou, sentindo uma onda de otimismo.
— Guaíra Mirim! — chamou. — Você ficará encarregado de construir os novos apartamentos perto do distrito industrial.
O rosto do jovem indígena iluminou-se como o sol da manhã, e seus olhos escuros brilharam de curiosidade.
— Apartamentos, chefe? O que seriam?
— São grandes casas, Guaíra! — explicou Carlos, animado. — Prédios altos, de vários andares, onde muitas famílias poderão viver perto do trabalho, do mercado… longe das fazendas distantes. Serão para todos, com preços que um trabalhador honesto pode pagar.
“Não estou aqui para repetir os erros do passado,” refletiu, internamente. “Não vou criar um lugar onde ter um teto seja um sonho impossível. Embora… quase todos aqui já tenham seu canto de terra. O desafio é melhorar esse canto.”
— Lucas Sabá! — continuou. — Você reconstruirá as fábricas do distrito industrial. Quero prédios novos, uma estrutura forte!
Lucas acenou com a cabeça, sério, seu rosto marcado pela experiência.
— Pode deixar, chefe. Farei um trabalho que honre meus ancestrais.
— João da Costa! — Carlos prosseguiu. — Sua missão é erguer as lojas no centro da cidade. Precisamos de um comércio forte, que atenda nosso povo.
— Será um prazer, senhor Carlos! — respondeu João, um sorriso largo estampando seu rosto.
— E Francisco Benguela! — O homem ergueu o queixo, atento. — Você continuará seu excelente trabalho nas estradas. Em breve, todas as vias do mocambo estarão pavimentadas.
Enquanto os nomes eram chamados, uma pontada de preocupação financeira cutucou Carlos.
“Os custos disparam… Quando as estradas internas estiverem prontas, terei de mandá-los abrir a rodovia até o ponto de comércio. E para isso, precisarei de ainda mais braços. Logo, logo, o quilombo não terá trabalhadores suficientes para tantos planos.”
— E por último, Domingos Lopes! — anunciou. — Você será o supervisor dos projetos da prefeitura. Seu primeiro desafio será construir nossa primeira escola.
Domingos, um homem de expressão sábia, pareceu absorver o peso da responsabilidade.
— Uma escola… O que seria isso chefe?
Carlos dobrou a última folha e ergueu o olhar para a multidão, sentindo a energia que emanava dali.
— Um lugar de aprendizado, onde todos do quilombo poderão aprender a escrever, ler, matemática, biologia, história. E ouçam bem! Quem se destacar e aprender a ler e escrever na nova escola, poderá se tornar um ministro da construção civil — sua voz ecoou com convicção. — Dobrando o salário e trabalhando diretamente comigo!
A reação foi imediata. Os olhos dos pedreiros, que antes na construção de sua casa, demonstravam dúvidas e receio, agora brilhavam com ambição e respeito. Ver aquilo encheu Carlos de uma realização profunda. Ele sabia que aquela semente de dignidade estava, finalmente, brotando.
Após a inauguração, começou a mudança. Uma fila de pessoas transportava documentos, os preciosos “livros do diabo” e os baús de dinheiro para dentro da prefeitura, onde ficariam mais seguros. O interior do prédio cheirava a cimento novo e madeira fresca dos móveis novos feitos sob medida pelo carpinteiro. Havia uma sala para Carlos e várias outras, ainda vazias, aguardando os futuros ministérios.
Assim que a organização mínima foi feita, Carlos saiu em direção aos campos de Tassi. Nem precisou chegar perto para ter a resposta: um mar dourado de trigo ondulava ao vento, enchendo o ar com um cheiro doce e terroso. O coração disparou de alegria.
Tassi estava no meio do campo, colhendo alguns pés com movimentos hábeis, um sorriso sereno no rosto.
— Pelo visto deu tudo certo! — gritou Carlos, se aproximando. — Você é sensacional, Tassi! Agora podemos fazer pão, bolos, farinha… é uma nova era!
Ela parou e voltou-se para ele, as mãos cheias de espigas douradas.
— Já disse antes que tinha dado tudo certo. E só demorou tanto porque você demorou uma eternidade para trazer as sementes — respondeu ela, com um tom de brincadeira no olhar.
Carlos esfregou a nuca, envergonhado.
— Ei, a culpa não é minha! Nenhum comerciante traz grãos de trigo, só farinha pronta. Por sorte, alguns portugueses teimosos insistem em tentar plantá-lo por aqui. Falando nisso… — Ele estendeu a mão, entregando-lhe uma pinha. — Sua próxima missão.
Tassi pegou o objeto, virando-o nos dedos com curiosidade.
— O que é isso?
— É uma semente de araucária — explicou Carlos, com um sorriso esperançoso. — Com ela, poderemos fazer papel. Isto é, se você conseguir fazê-la crescer.
A ministra ficou irritada com a indireta. Sem dizer uma palavra, pegou a semente, a enterrou no solo úmido e afastou-se alguns passos.
— Apenas veja.
Ela fincou o Cajado do Crescimento no chão com força. Imediatamente, a terra estremeceu. Um broto verde irrompeu, crescendo numa velocidade vertiginosa. Em segundos, tornou-se uma muda, depois uma árvore jovem, seu tronco engrossando e galhos se estendendo para o céu como braços. O solo vibrava sob seus pés, e o som de madeira se expandindo era como um trovão abafado. A araucária não parou: dez, vinte, trinta, quarenta metros… até atingir uma altura majestosa de cinquenta metros, sua copa pontiaguda riscando o céu azul.
Tassi ficou ofegante, uma tontura a dominando pelo esforço colossal. Carlos ficou maravilhado, a boca semiaberta.
— Seu poder é realmente incrível! — exclamou ele, a voz cheia de admiração. — E o mais surpreendente é que duas gemas com poderes diferentes criam uma terceira magia tão poderosa!
A ministra mal conseguia ouvi-lo, focando toda a sua energia para permanecer de pé. Mesmo assim, um sussurro triunfante escapou de seus lábios.
— Sou… mesmo incrível.
“Com a araucária, poderei fazer papel e vendê-lo. E farinha do trigo, para comer e comercializar. Tudo graças a ela,” pensou Carlos, eufórico.
— Você é absolutamente incrível!
Sem perder tempo, o chefe saiu dali e dirigiu-se para casa, sua mente já fervilhando com planos.
“Para fazer papel, vou usar o processo de moagem natural. Não quero lidar com ácidos e produtos químicos como nos métodos mais avançados. Pena que o resultado seja um papel de qualidade inferior, mas servirá para livros escolares e, quem sabe, futuros jornais. Para fazer o papel, preciso de…”
“Uma grande pedra abrasiva giratória, montada vertical ou horizontalmente. Daria para usar a máquina a vapor para girar a pedra…”
“Um mecanismo para pressionar as toras de madeira contra a superfície da pedra. Vou precisar da máquina a vapor de novo…”
“Um sistema de jatos de água para resfriar, remover a polpa e evitar que a madeira queime com o atrito. Para isso, poderia usar um adepto da gema da água ou do gelo…”
“No fim, tudo se resume à máquina a vapor. Isso é só para fazer a pasta. Para formar as folhas, usarei a Máquina de Fourdrinier, que é mais simples de construir em madeira, mas ainda precisa de vapor para funcionar.”
Carlos passou a manhã inteira rabiscando esquemas, desenhando engrenagens e fluxos de trabalho em folhas de papel grosseiro.
— No fim, preciso de máquina a vapor para tudo — murmurou, frustrado. — Tomara que Nia consiga fabricar algumas. Também seria bom colocá-las no engenho de açúcar, na mineração e na fábrica têxtil… embora, por agora, vou deixar a fábrica como está. Não quero sair demitindo todo mundo.
“Também vou usar a máquina a vapor na produção de farinha a partir do trigo.”
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No Quilombo da Jabuticaba, Sombra, um dos homens de Espectro permanecia invisível, observando os recém-chegados. Era a segunda vez naquele ano que um grupo tão grande aportava no quilombo, e a última vez tinha trazido mudanças radicais. Como antes, havia uma mulher com postura de guerreira, mas, ao contrário de Tassi, ela não parecia sentir sua presença.
O grupo havia chegado de um engenho atacado por bandidos, segundo relatos. A única testemunha direta era a própria mulher, que confessara ter matado o senhor do engenho durante o caos, usando uma gema do fogo.
Invisível, observava cada um de seus movimentos. Naquele momento, todos trabalhavam nos campos que lhes foram designados.
“Conseguir matar o senhor de engenho no mesmo dia da chegada é uma coincidência grande demais,” ponderou ele, silenciosamente. “Mas não é impossível. Além disso, por mais que não conheçamos os planos do novo capitão-mor, é improvável que ele mandaria matar um homem branco só para infiltrar espiões.”
Sombra espionava não só ela, mas todo o grupo. Notou algo peculiar: a mulher e mais dois homens usavam anéis com pequenas gemas mágicas. Sozinhos em seus aposentos, eles os manipulavam constantemente.
“Suspeito… mas dificilmente um anel com gemas tão diminutas representaria uma ameaça real.”
Depois de observá-los por mais algum tempo, ele desapareceu para fazer seu relatório.
Nyran, que brincava com o anel no dedo, não só sentiu a presença indesejada desaparecer como o artefato parou de emitir calor.
“É incrível como este anel é superior a qualquer artefato mágico que já tive,” pensou ela, admirando a peça. “Mesmo eu não sendo uma Adepta da Visão, ele, com a mana que foi injetada por um adepto, ativa-se sozinho quando um portador da Gema do Assassino se aproxima. E ainda me alerta ficando quente, graças à Gema do Calor. É um trabalho excepcional. Nenhum artesão mágico do meu reino seria capaz de tal feito.”
Permaneceu acordada por mais algum tempo, certificando-se de que ninguém mais a vigiava. Então, forçou-se a vomitar.
No meio dos restos de comida, uma gema cheia de runas reluzia, produzindo um pequeno escudo mágico esférico. Dentro dele, camadas e mais camadas de papel fino e um pedaço de carvão estavam perfeitamente preservados.
Sem perder tempo, ela começou a escrever tudo o que havia observado. Não demorou muito, pois ainda não havia visto nada de crucial importância. Sabia que seria assim por um tempo, até que conseguisse ingressar no exército do quilombo e visse de perto as tais “laranjas explosivas” de que tanto falavam. A missão apenas começava.
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