Capítulo 60 - Máquina a vapor
O fedor chegava antes mesmo do badalar dos sinos. Um cheiro acre de pus, suor e desespero impregnava o ar, pairando sobre os bairros mais pobres de Nova Lusitânia como uma maldição tangível. A varíola. Dom Mateus Orsini pressionava o lenço de linho embebido em vinagre contra o nariz — um hábito estranho que aprendera com médicos italianos —, enquanto suas botas finas de couro evitavam com cuidado as poças de água parada que encharcavam as pedras das ruas. Ele não estava ali por acaso.
O Legado Pontifício tinha uma missão clara: descobrir por que, entre todas as Cidades Sagradas do Novo Mundo, apenas Nova Lusitânia continuava sendo devastada pela peste. As respostas que obtivera dos servos do Papa Henrique até então eram evasivas, um coro ensaiado de “desígnios de Deus” e “provações da fé”. Mas uma palavra, um sussurro que insistia em ecoar, não lhe saía da mente: Vacina.
Ao adentrar o gabinete do Papa Henrique, Dom Mateus sentiu o contraste imediato. O ar lá dentro era pesado, cheiro de cera de abelha e autoridade. Henrique estava de costas, observando pela janela as fumaças funestas que subiam dos campos de enterro recém-abertos.
— Papa Henrique — começou Mateus, com a voz contida, porém firme —, notei que a peste ainda assola esta cidade. E isso apesar de a Papisa Paula já ter descoberto como preveni-la.
Henrique não se virou, mas seus ombros se tencionaram.
— A peste é um castigo, Dom Orsini — respondeu, a voz grave e carregada de desdém —. Um fogo purificador pela luxúria e pela preguiça deste povo.
— É curioso — a voz de Mateus deslizou suave como uma lâmina —. Em Santa Marta, não há peste. Em Alba, também não. Em todas as cidades sagradas que receberam e aplicaram as instruções da Papisa Paula, a doença foi domada. Apenas aqui, Vossa Eminência, o fogo purificador parece escolher suas vítimas com… uma seletividade quase divina.
Henrique finalmente se virou. Seu rosto, outrora impassível, era agora uma máscara de ira contida.
— Instruções? O que esse “homem” poderia saber que os médicos da corte não sabem? Suas “instruções” não passam de heresia, invocações pagãs disfarçadas de piedade!
— Heresia que salva vidas? — Mateus inclinou a cabeça, os olhos fixos no Papa. — A Igreja já atestou o milagre realizado pela papisa. E ela é uma mulher, sim, e agora também uma santa. Mas deixemos isso de lado… Acho interessante que as cartas dela sobre a vacina tenham chegado a todas as outras cidades, que as repassaram à Cidade Sagrada Suprema. A sua, no entanto, nunca ali chegou. E nem precisei investigar muito para descobrir que a carta destinada a você foi queimada sob suas ordens. Por quê?
O silêncio que se seguiu foi mais eloquente que qualquer grito. A máscara de Henrique rachou de vez, e a inveja, velha e amarga, jorrou.
— Ordens? Eu protegi o meu rebanho! Paula… sempre Paula! Com suas ideias estranhas, seu fascínio por coisas vis! Eu construí aquela cidade do nada, Orsini! Eu coloquei cada pedra do primeiro mosteiro com as minhas mãos! E ela… ela chegou depois e se sentou no trono que eu alicercei, para brincar com seus livros e suas gemas como uma criança privilegiada!
Cuspiu as palavras, o rosto deformado pelo ressentimento. Antes que Mateus pudesse responder, um escudeiro adentrou o gabinete, pálido, e entregou um novo pergaminho nas mãos do Legado. Era outro mensageiro de Paula.
Mateus leu em silêncio, e um sorriso amargo e incrédulo lhe tocou os lábios. Ergueu os olhos para Henrique, cuja respiração estava agora ofegante.
— Parece que a “criança privilegiada” não parou de brincar — disse Mateus, a voz carregada de um peso quase histórico. — Ela não envia mais apenas a cura, Henrique. Ela envia a explicação. Fala de um “microscópio”. De “micróbios”, criaturas infinitesimais, menores que um grão de areia, que seriam os verdadeiros agentes da doença. E de como evitá-los.
Atirou a nova carta sobre a mesa, entre eles.
— Vocês dois viveram no mesmo lugar, sob o mesmo teto. Você ergueu as paredes, é verdade. Mas foi ela, Henrique, quem olhou para dentro das pedras e descobriu como usar a gema da alteração. Foi ela quem domou a doença das vacas para salvar os homens. E agora… é ela quem desvenda o mundo invisível que nos cerca. Você estava na mesma posição que ela e não fez nada disso.
Henrique ficou ainda mais irritado, os nós dos dedos brancos de tanto pressionar a borda da mesa.
“Aquele herege devia ter sido queimada há muito tempo! Finalmente consegui um cargo de papa numa cidade decente, como esta da Ibéria, e ainda tenho que ouvir sermões desse jeito!”
Dom Mateus não esperou mais. Deu meia-volta, mas, já à porta, complementou:
— Vou escrever ao Supremo Pontífice, relatando tudo o que ocorreu. E você… que tal começar a aplicar a vacina? Sua inação e orgulho barato estão manchando o nome da Igreja.
Começou a sair, mas parou de repente. Sem se virar, acrescentou:
— Ah, e mais uma coisa… A papisa fez um pedido deveras incomum. Quer minérios brutos de ferro, entre outros. Segundo ela, vai transformá-los em aço e… quem sabe… ouro. Normalmente, se alguém dissesse um absurdo desses, já teria sido declarado louco. Mas, diante dos milagres que ela já realizou… Bem, acho que você já pode cumprir o que ela pede. Como representante do Pontífice Supremo, posso atuar como diplomata e negociar com Portugal a permissão. Aposto que aceitarão facilmente — afinal, nos devem rios de ouro pelas curas que lhes proporcionamos em suas guerras com a Espanha.
E saiu, deixando o Papa sozinho com o fantasma de seu ódio, as cinzas de sua traição e o futuro luminoso — e ameaçador — que teimava em chegar por outra carta.
“Como ela conseguiu fazer tantas descobertas naquele fim de mundo?” — o pensamento ecoou na mente de Henrique, ácido. — “Estou colocando meus melhores homens para estudar a gema da alteração, e mesmo assim eles mal conseguem usá-la… e ela, naquele lugar esquecido… Espera… ela era a responsável por artefatos considerados impuros… deve ter sido corrompida! Só pode ser isso! Fez um pacto com o diabo! E agora está arrastando toda a Igreja para a heresia!”
Tomado por uma urgência súbita, Henrique pegou um pergaminho, mergulhou a pena no tinteiro e começou a escrever uma carta endereçada ao Sumo Pontífice Gregório XXI.
“Esse Orsini já está completamente corrompido pelo demônio! Mas ainda posso confiar no Pontífice Supremo… Ele ouvirá meu clamor e enviará alguém para supervisionar aquele papa profano…”
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Já fora, Dom Mateus caminhava pelas ruas de Nova Lusitânia com um passo mais leve. O sol da tarde dourava as fachadas das construções, e o ar, embora ainda carregado do cheiro da cidade, parecia mais leve após o confronto. Seus dedos tamborilaram levemente contra o lado da batina, enquanto revivia mentalmente o conteúdo das cartas da Papisa Paula.
“Essa mulher é verdadeiramente extraordinária” — refletiu, um sorriso quase imperceptível nos lábios. — “E, sendo sincero, a velocidade com que adquire todo esse conhecimento é… suspeita. Demasiado rápida para ser apenas inspiração divina.”
Seu sorriso se tornou mais calculista, mais íntimo, enquanto ajustava o colarinho.
“Mas que importa a origem, quando os frutos são tão doces?” — continuou seu monólogo interno, os olhos perdidos no movimento das nuvens. — “Se ela conseguir mesmo produzir aço em larga escala… bem, isso muda tudo. De forma geral as gemas mágicas respondem ao aço como nenhum outro metal, só algumas gemas tem uma conexão melhor com metais específicos como a gema da cura tem com prata. Porém no geral com o aço a reação é mais intensa, mais violenta… mais poderosa.”
Uma centelha de ambição acendeu-se em seus olhos. Ele podia quase ouvir o som dos espadas melhoradas se batendo, o tilintar do ouro enchendo os cofres, o sussurro dos acordos nos corredores do poder.
“Armas mais destrutivas… guerras mais curtas… ou mais longas e lucrativas. Mais vítimas, sim, mas também mais doações para a Igreja… mais indulgências vendidas… mais influência. E, é claro…” — seus dedos formaram um punho leve — “…mais riqueza canalizada para os projetos certos. Para os meus projetos.”
Ele respirou fundo, sentindo o gosto do futuro — metálico, como aço, e doce, como ouro.
“Sim, a Papisa Paula pode muito bem ser a chave para um novo mundo.”
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Enquanto isso, no mocambo, Carlos percorria seu trajeto diário, inspecionando o andamento de seus projetos. Caminhava em direção à oficina de Nia quando a porta se abriu de repente. Ela surgiu à sua frente, o rosto sujo de sujeira e suor, mas com um brilho nos olhos que ele nunca vira antes.
— Carlos, consegui! — exclamou, ofegante. — Ela funciona! É… é uma máquina extraordinária!
Carlos não conseguiu conter o sorriso. Seguiu-a para dentro, ansioso para ver a invenção que, segundo ela, mudaria o mundo.
E então a viu.
A máquina se erguia no centro da oficina como um altar dedicado a uma nova divindade industrial. Seu aspecto era mecânico e bruto. As superfícies de ferro não eram ásperas, mas lisas e fluidas, como se tivessem sido vertidas ainda líquidas e congeladas no ar. As junções eram quase imperceptíveis — soldadas não pelo calor, mas pela vontade direta de Nia, resultando em emendas suaves como veias numa folha. Os detalhes em latão polido e madeira de jacarandá criavam um contraste belo e austero entre a escuridão do ferro e o brilho quente dos acabamentos.
A máquina já estava em movimento, usando gemas de fogo para aquecer a água, e o barulho que fazia era ensurdecedor. Mas, para os ouvidos de Carlos, soava como uma sinfonia. O ferro e o aço reluzentes pareciam a moldura de um novo tempo.
— Não acredito que você conseguiu, Nia! — ele disse, a voz tomada pela admiração. — Isso aqui… isso vai mudar o mundo!
Nia, com seus olhos prateados, sorriu, exausta e triunfante.
— Quando vi os esquemas pela primeira vez, não imaginei que essa monstruosidade pudesse se mover sozinha. Mas vê-la funcionando… é outra coisa. Realmente tem o poder de mudar tudo. Mas imagino que você vai querer que eu faça mais umas vinte, não é?
Carlos balançou a cabeça, os olhos ainda presos à máquina.
— Na verdade, quero que você comece a trabalhar no conversor Bessemer. Mesmo sem os minérios brutos, ainda podemos produzir aço de outras formas. E com aço, faremos mais máquinas. Você nem imagina como o aço está consumindo uma fortuna do nosso orçamento…
O brilho prateado de seus olhos perdeu um pouco do fulgor.
— Tudo bem… — disse ela, respirando fundo. — Sabe, adoraria continuar fazendo essas máquinas. O conversor não me entusiasma tanto, mas só de saber que vai ajudar no meu trabalho… já me dá ânimo.
— Isso me lembra, Nia — Carlos acrescentou, baixando a voz. — Vamos construir o conversor no distrito industrial. É grande demais para transportar daqui.
— Sim, chefe! Pode deixar comigo!
Nia imediatamente chamou seus ajudantes e começou a organizar o transporte do aço para o local onde o conversor seria instalado. Carlos ficou para trás, observando a máquina a vapor, o coração cheio de esperança.
“Isso vai mudar tudo” — pensou, maravilhado. “Podemos instalá-la em tantas indústrias… Em breve, o dinheiro não será problema, e todo mundo aqui no mocambo terá uma vida digna.”
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