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    Fernanda e sua filha Carlinha seguiram o guarda para dentro da mata, por uma trilha bem cuidada. À medida que avançavam, podiam ver outros homens, fortes e ocupados, carregando e descarregando sacos de produtos. Muitos olhavam para as duas novas com cautela, mas outros, assim como o guarda, lançavam olhares de compaixão. Para as pernas magricelas e cansadas de Fernanda e Carla, aquela caminhada sob a mata fechada pareceu interminável.

    Depois de um tempo, chegaram a um aglomerado de mocambos, mas este não era seu destino final. Eles andaram mais um pouco, até que a vegetação começou a se abrir, revelando uma cena que fez Fernanda prender a respiração. Eles haviam chegado a uma parte do quilombo com ruas de um material cinza e liso, ladeadas por calçadas do mesmo material — concreto —, com várias árvores fornecendo sombra generosa. Pessoas andavam para lá e para cá, empurrando carrinhos de mão e carregando ferramentas e mercadorias, num burburinho de atividade pacífica.

    Não demorou muito para chegarem ao que parecia ser o centro da comunidade. Lá, a vida fervilhava. Pessoas observavam vitrines de lojas bem-organizadas, e construções usando materiais estranhos estruturas cresciam sob o sol. O guarda dirigiu-se a uma dessas lojas, um estabelecimento com uma placa simples onde se lia “Sorveteria Neve Doce”. Lá dentro, uma figura familiar atendia a um cliente.

    — Papai!

    Carla, num rompante de energia e reconhecimento que Fernanda julgara extinto, soltou a mão da mãe e correu em direção à loja, seus pés descalços batendo no chão de concreto.

    — Nala, cuide desse cliente para mim! — disse Jorginho, sua voz um pouco rouca pela emoção. Nala, a jovem auxiliar, apenas assentiu com a cabeça e assumiu o lugar.

    Por um momento, o rosto de Jorginho sumiu de vista atrás do balcão. Mas logo ele reapareceu, vindo da parte de trás da loja. E, para o espelho de Fernanda, que permanecera paralisada na entrada, ele estava… diferente. Mais encorpado, com o rosto preenchido, a pele com um tom mais saudável e os ombros mais largos. Ele não usava as roupas gastas de outrora, mas uma camisa simples de algodão, limpa e inteira. Seus olhos, que ela lembrava opacos pela preocupação, agora brilhavam.

    Ele rapidamente se ajoelhou e abriu os braços, e Carla se atirou neles, enterrando o rosto no seu pescoço.

    — Senti tanto a sua falta, filhinha! — sussurrou ele, sua voz embargada, enquanto segurava a menina com uma força que parecia querer protegê-la de todo o mal do mundo.

    A menina logo caiu em prantos, soluçando de forma convulsiva, demorando um bom tempo para se acalmar, enquanto Jorginho a balançava suavemente, murmurando palavras de consolo.

    Quando Carla finalmente se acalmou, ofegante e com o rosto molhado, ele a colocou no chão, mas manteve uma mão protetora em seu ombro. Seus olhos então encontraram os de Fernanda, que ainda estava parada, tentando assimilar tudo.

    — Vamos para casa — disse ele, sua voz carregada de uma emoção contida. — Tenho tanto para contar a vocês! Tanto para lhes mostrar!

    Fernanda ficou surpresa ao ouvir aquilo.

    — Você… você tem uma casa? — perguntou, incapaz de disfarçar o espanto.

    — Bom — ele riu, um som que era música para os ouvidos dela —, eu aluguei uma casinha de barro. Mas o chefe me informou que já estou na lista para morar numa das novas casas de alvenaria, assim que ficarem prontas.

    Depois de uma caminhada curta por uma das ruas laterais, eles pararam em frente a uma pequena casa, modesta por fora, com paredes de barro batido e um telhado de palha. Mas quando Jorginho abriu a porta, Fernanda sentiu o ar faltar em seus pulmões. O interior era simples, mas estava bem mobiliado: uma mesa de madeira sólida com quatro cadeiras, um armário rústico, pratos e talheres de estanho organizados, e até mesmo um pequeno baú no canto. Havia um cheiro agradável de limpeza e de ervas secas penduradas na parede.

    Fernanda entrou devagar, seus olhos percorrendo cada detalhe, cada objeto, como se estivesse em um sonho.

    — Não é tão bonita quanto a nossa casa do tempo em que éramos casados… — ela comentou, sua voz um fio de nostalgia.

    — Mas está bem melhor do que a casa que eu abandonei… — completou, em um sussurro cheio de significado.

    Jorginho sorriu, um sorriso que chegava aos olhos.

    — Mas tem uma bela diferença, Fernanda. Aqui, temos comida à vontade. — Ele se virou para a filha, seus olhos brilhando. — E aliás, amanhã, Carlinha, o papai vai te fazer um doce delicioso, que está fazendo o maior sucesso aqui. Chama-se sorvete!

    — Ebaaaa! — gritou a menina, pulando de alegria, sua fadiga momentaneamente esquecida.

    Fernanda finalmente se permitiu sentar em uma das cadeiras, seu corpo cansado afundando no assento com um suspiro profundo de alívio.

    — Então… o que você faz aqui é esse tal de sorvete? Trabalha naquela loja?

    Jorginho, animado, pegou uma panela peculiar — de metal pesado, com uma tampa que tinha uma válvula no topo: uma panela de pressão. Ele a encheu com água e feijão, alguns pedaços de carne seca. Já em outras panelas começou apenas colocou água, para depois prepara o arroz e a mandioca, e começou a acender o fogo no pequeno fogão a lenha.

    — Sim! Esse mês, ganhei trezentos réis de salário.

    Fernanda abriu a boca para comentar como aquele valor era baixo, um instinto de sua vida anterior, mas Jorginho a interrompeu, antecipando sua objeção.

    — Mas espere! — disse ele, erguendo um dedo. — O almoço pronto na vila custa um réis. As compras do mês para nós três sairiam por uns quarenta réis. O aluguel desta casa são quarenta réis. Tudo aqui é muito, muito mais barato do que em Areia Branca. — Ele apontou para os móveis. — Aliás, comprei tudo isso parcelado, a preços baixos também. Aqui o dinheiro rende, Fernanda. Amanhã, depois de irmos à prefeitura, podemos comprar roupas novas para vocês!

    Fernanda e Carla já estavam quase salivando com o cheiro delicioso que começava a escapar da panela de pressão, um aroma de comida caseira e farta que elas não sentiam há uma eternidade. Mesmo assim, a mãe se concentrava na conversa, fascinada pelo novo ambiente.

    — Prefeitura? — repetiu, confusa.

    — Sim! Temos que ir lá para registrar sua chegada e ver se conseguimos um trabalho bom para você. E a Carlinha — ele olhou para a filha, com orgulho — vai começar a estudar em fevereiro. Vai aprender a ler, a escrever, a contar. E nós poderemos trabalhar tranquilos, sabendo que ela está segura e aprendendo.

    Fernanda foi assimilando cada nova informação, cada peça desse quebra-cabeça de uma nova vida, enquanto Jorginho terminava de preparar a comida. Logo, a mesa estava posta, e uma refeição simples, mas farta e nutritiva, foi servida.

    Fernanda e Carla não conseguiram se conter. Comeram quase que freneticamente, como se temessem que a comida pudesse desaparecer, engasgando-se e soprando os pedaços quentes de mandioca com uma urgência que partiu o coração de Jorginho ao meio.

    Ele tentou conter as lágrimas que teimavam em sair em seus olhos ao ver sua família naquela situação tão precária, uma situação da qual ele se sentia, em parte, responsável por não ter conseguido evitar. Mas agora, vendo-as ali, seguras e sob o seu teto, a emoção foi forte demais. Ele baixou a cabeça e começou a chorar silenciosamente, suas lágrimas caindo sobre seu próprio prato de comida.

    Carla, percebendo, parou de comer e olhou para a mãe, com os olhos arregalados de preocupação.

    — Mamãe, por que o papai está chorando?

    Fernanda, que entendia perfeitamente o turbilhão de alívio, culpa, alegria e dor que se passava no coração do marido, enxugou sua própria boca com as costas da mão e olhou para a filha. Com uma calma que não sentia há muito, muito tempo, ela respondeu, enquanto uma lágrima solitária escapava de seu olho e rolava por sua face.

    — Ele está apenas chorando de felicidade, minha flor. De felicidade por finalmente nos ter de volta.

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