Capítulo 73 - Nitrocelulose
Carlos acordou cedo, sentindo a brisa fresca da manhã acariciar seu rosto. O sol ainda começava a pintar o céu com tons alaranjados, e o canto dos pássaros ecoava pelo mocambo. Com os lucros exorbitantes do mês anterior, não conseguia conter o sorriso que teimava em surgir em seu rosto a cada pensamento.
— Hoje vou direto às obras — anunciou aos guardas, que se posicionaram ao seu lado. — A prefeitura pode esperar.
Enquanto percorria a estrada principal, seus pés deslizavam sobre a calçada limpa. O contraste com os caminhos irregulares de outros mocambos era notável. De repente, seus olhos pousaram sobre um grupo de trabalhadores, todos movimentando-se com energia, embora a exaustão já começasse a marcar alguns rostos. No centro deles, um homem negro e barrigudo gritava ordens.
— Bom dia, seu Benguela! — cumprimentou Carlos, aproximando-se. — Como andam as coisas por aqui?
Benguela virou-se, limpando o suor do rosto com um pano áspero.
— Chefe! — exclamou, com um sorriso cansado. — Está tudo indo bem. Temos muitos novatos, mas o aumento no salário deu um ânimo novo a todos. E sobre os mil homens extras que o senhor prometeu…
— Sim — Carlos interrompeu gentilmente. — Eles começarão pelo trecho final, no ponto de encontro com os comerciantes. Precisamos derrubar árvores e remover os tocos. Se os novatos daqui estiverem indo bem, podemos realocar metade para lá.
Enquanto Benguela observava os trabalhadores — alguns cavando, outros espalhando areia e granito, e os últimos assentando blocos de concreto —, Carlos notou o ritmo sincronizado do trabalho.
— Sabe, chefe — comentou Benguela, baixando a voz —, recebemos mais de mil novatos recentemente, mas a maioria foi direcionada para a fabricação de cimento e blocos, além do transporte. O cheiro do cimento já impregna até as roupas deles.
Carlos assentiu, observando um grupo que carregava sacos pesados.
— É um trabalho duro, mas necessário — refletiu em voz alta.
— Exatamente — Benguela concordou. — E falando em trabalho, queria falar sobre o pedreiro que mais se destacou. Ele tem potencial, vou deixar ele aqui enquanto vou instuir os novatos que vão começar a trabalhar a partir do ponto de comércio. Como vai assumir mais responsabilidades, talvez possamos ajustar seu cargo?
Carlos riu, o som ecoando levemente no ar da manhã.
— Você não precisa pedir isso a mim, Benguela. Fale diretamente com a Aqua. Salário segue responsabilidade, isso é regra. — Ele fez uma pausa, estudando o rosto do homem. — E os estudos para Ministro da Construção Civil? Como estão?
Benguela olhou para o chão, desconfortável.
— Fui às aulas noturnas, chefe, mas… — Suspirou. — Estudar não é para mim. Não se ensina truque novo a cachorro velho. Estou bem como estou. Deixo a vaga para os mais jovens.
Carlos colocou a mão no ombro do homem, sentindo o tecido áspero de sua camisa.
— Tudo bem, seu Benguela. O importante é vivermos do jeito que queremos. Agora, se me dá licença, preciso falar com a Maria sobre os outros novatos que vão começar a trabalhar limpando o caminho para a estrada.
Ao sair do mocambo, a paisagem transformou-se radicalmente. As ruas e calçadas deram lugar à terra batida, irregular e marcada pelas rodas das carroças. O ar agora carregava o cheiro forte de mato fechado e terra úmida. Poucas pessoas circulavam—apenas algumas transportando mercadorias.
A caminhada até o Mocambo da Lagoa foi curta. O local parecia deserto, com apenas o vento sussurrando entre as folhas. Carlos dirigiu-se ao segundo maior barracão de taipa e bateu na porta.
A porta abriu-se quase imediatamente, revelando Maria com um sorriso caloroso.
— Bom dia, chefe Carlos! — cumprimentou, afastando-se para deixá-lo entrar. — Entre, por favor.
Ela sentou-se em uma cadeira de madeira rústica e indicou que ele fizesse o mesmo. Sobre a mesa entre eles, uma bandeja exibia barras de chocolate reluzentes.
— Sabe, Carlos — Maria começou, pegando uma barra de chocolate e dando uma mordida lenta, deixando o doce derreter na boca antes de continuar —, no começo eu até duvidei desse negócio de salário para chefes… Mas depois de experimentar as maravilhas do seu mocambo — ela fez uma pausa dramática, abrindo os braços — confesso: agora sou dependente!
O aroma doce do chocolate parecia preencher o espaço entre eles. Carlos sorriu, pegando outro pedaço para si mesmo.
— Que bom que gostou! Esta é nossa mais nova iguaria — ele disse, segurando o chocolate à luz que entrava pela janela. — E também temos uma nova fábrica só para produzi-lo. Só pude fazê-lo porque finalmente chegaram as sementes de cacau, tomate, repolho e batata que eu havia encomendado dos comerciantes.
Maria arregalou os olhos, claramente impressionada.
— Sério? E o que mais vocês estão produzindo?
— De tudo um pouco — Carlos respondeu, animado. — Mas se quer uma recomendação, precisa experimentar a pizza que estão vendendo no centro do mocambo. É deliciosa! A massa coberta pelo queijo derretido , molho de tomate, calabresa…
Ele fez um gesto com as mãos, como se estivesse segurando uma fatia imaginária. Maria riu, balançando a cabeça.
— Parece tentador! Mas falando sério — ela colocou o chocolate restante na mesa —, sobre o Daniel…
Carlos inclinou-se para frente, interessado.
— Como ele está? A recuperação está indo bem?
— Está quase totalmente recuperado! — os olhos de Maria brilharam de orgulho e alívio. — O padre disse que em uma semana estará totalmente curado. Sabe o que é mais engraçado?
— O quê?
— Ele jurou que nunca mais vai para a batalha — ela riu, um som caloroso que ecoou na sala simples. — Mas quer retribuir o que você fez por ele. Disse que vai ajudar na construção da… como é mesmo o nome? “Estrada da Prosperidade”?
— Isso mesmo! — Carlos confirmou, seu rosto iluminando-se. — A Estrada da Prosperidade. Eu ficaria muito grato pela ajuda dele. Precisamos de todas as mãos disponíveis.
Maria pegou outro pedaço de chocolate, examinando-o contra a luz.
— Ele vai adorar saber disso. E eu… bem, eu vou adorar tê-lo por perto, em um trabalho seguro — sua voz suavizou-se por um momento, carregada de emoção.
— Isso mesmo — Carlos confirmou, servindo-se de um copo de leite. — Agradeço muito a ajuda dele. Por falar nisso, conseguiu os trabalhadores?
— Consegui, sim! — seus olhos brilharam. — O povo não para de falar da vida no seu mocambo, das coisas para comprar… Todo mundo topou na hora.
Carlos sentiu o chocolate derreter em sua boca, notando como seu sabor era mais intenso que qualquer um que provara antes.
“Quem diria que chocolate feito com ingredientes naturais teria um gosto tão melhor se comparada com aquele chocolate seboso de meu mundo… Foco, Carlos, foco!”
— Que ótima notícia — disse ele, voltando à realidade. — Pode mandar o pessoal começar a derrubar as árvores. Vou mandar um supervisor para orientá-los. E com os cavalos que comprei para o transporte, o trabalho deve fluir melhor — explicou, tomando um gole de leite. — Mas por enquanto, os animais ainda não conseguem avançar na mata fechada.
Maria exibiu um leve sorriso malicioso.
— Mas devo dizer essa idéia de dar salários para os chefes dos mocambo para suborná-los é mesmo excelente, não achei que você tinha coragem de falar aquilo na frente de ganga.
Carlos suou frio — “Eu não havia me dado conta de que aquilo era uma forma de suborno, eu apenas queria que vissem como era boa a vida em meu mocambo… E havia apenas me irritado com Ganga Zala gastando meu dinheiro com futilidades…”
Com a voz meio rouca, Carlos respondeu.
— Bom, apenas estou fazendo o que é melhor para o quilombo.
Maria mordeu outra barra de chocolate, esta era de chocolate amargo.
— Devo dizer que está dando certo esse plano, esses chocolates que posso comprar com o dinheiro são um excelente suborno.
A conversa continuou por mais algum tempo antes de Carlos se despedir. Ao sair, pensou: “Ah… estou cansado de andar tanto. Agora entendo por que a Aqua quis deixar de ser chefe de mocambo”.
Quando finalmente chegou ao quartel do exército, mal pôde reagir quando uma figura surgiu magicamente à sua frente.
— Aaah! — gritou, recuando instintivamente. — Ah, Espectro… não me assusta assim!
Espectro mantinha o rosto impassível, mas seus olhos traíam uma centelha de diversão.
— Perdão, Carlos. Costumo observar meus homens sem ser notado. Fico invisível, monitorando. Quando o vi, resolvi aparecer. Veio para o teste da nova arma?
— Sim, a—
— Aqui não — Espectro interrompeu com um gesto discreto. — Vamos ao campo de testes.
Caminharam até um local cercado por estacas de madeira pontiagudas, onde soldados treinavam com mosquetes de pederneira. O som de pedras sendo arremessadas—simulando granadas—ecoava pelo ar. Passaram por todos e adentraram uma área isolada.
No centro do campo, sacos de couro aguardavam, empilhados. A próxima a areá onde o grupo estava, havia granadas de ferro que estavam alinhadas.
— Desculpe interrompê-lo antes — explicou Espectro, baixando a voz. — Há recrutas novos, ainda não totalmente confiáveis. Por isso mantenho os testes de armas de fogo longe de olhares indiscretos.
— Sem problemas… — Carlos olhou na direção dos sacos. — Vejo que já preparou os testes da pólvora sem fumaça que mandei para você.
Espectro acenou, seu rosto sério.
— Sim. E desta vez, ficaremos a uma distância segura. Não quero nada voando na nossa direção.
Carlos sentiu uma pontada de vergonha.
— Desculpe novamente pelo que aconteceu da outra vez…
— Não se preocupe — Espectro dispensou o assunto com um gesto. — A culpa foi minha por não seguir suas instruções. Mas vamos começar.
Imediatamente, um guerreiro com uma gema de fogo na mão ativou-a. Correu em direção aos sacos, deixou-a no local e retornou em velocidade, como se sua vida dependesse disso. Todos os presentes se atiraram ao chão, tapando os ouvidos.
A explosão veio em seguida. O chão tremeu com violência, uma onda de impacto varreu o campo e fragmentos de terra, pedras e grama voaram para todos os lados. Desta vez, porém, quase não houve fumaça—e o estrondo foi muito mais potente do que o esperado.
Mesmo com os ouvidos tampados, Espectro levantou-se atordoado.
— Meu Deus… — murmurou, olhando a destruição. — É como se Xangô tivesse descido o machado com um raio sobre a terra…
Carlos notou a mistura da figura de Deus com um orixá, mas lembrou-se das benzedeiras católicas que sua mãe consultava, que invocavam Deus e santos em rituais que a Igreja mal aprovaria.
Espectro olhava para Carlos com um misto de temor e respeito. Ele parecia distante, quase alheio ao caos que se instalara.
“E pensar… que um homem pode trazer à terra um poder que deveria pertencer apenas aos céus.”
Os testes com as granadas também foram impressionantes, mostrando uma eficácia assustadora.
Ao final, Carlos suspirou, contemplando os destroços.
— Infelizmente, esse tipo de pólvora será nosso último recurso. Ainda não descobri como produzir os componentes em massa. E minerar pirita para extrair enxofre está ficando insustentável. Já pedi enxofre ao Francisco… espero que ele tenha encontrado um fornecedor.
Após trocarem mais algumas palavras, Carlos iniciou o caminho de volta. Espectro ficou observando suas costas, mas agora com um novo respeito—e uma ponta de receio—brilhando em seus olhos.

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