Índice de Capítulo

    O sol da manhã ainda estava fraco, mas Tassi já caminhava a bom ritmo pela calçada de concreto. O ar carregava o orvalho fresco, um contraste agradável com a poeira que sempre pairou sobre o Mocambo no passado.

    “Os passarinhos hoje estão especialmente animados,” pensou ela, ouvindo o trinado alegre que vinha dos ipês que ela mesma ajudara a crescer. Suas sombras ainda longas desenhavam padrões dançantes no chão.

    Ela observou, não sem uma ponta de orgulho, um novo grupo de cavalos — animais robustos que Carlos estava adquirindo — puxando carroças carregadas de materiais. O trotar dos cascos no chão batido era um som agora comum.

    “Então era para isso,” ela refletiu, seu olhar percorrendo a largura incomum das ruas. “Carlos não estava só construindo ruas para pessoas andarem e sim carroças. Ele realmente enxerga o futuro a quilômetros de distância.”

    Apesar da serenidade do caminho, uma queixa ecoou em sua mente. “Mas, meu Deus, que caminhada interminável! Minha casa é no fim do mundo. Já falei para o Carlos me reservar um dos apartamentos novos, estou cansada de cruzar o Mocambo inteiro a pé todo santo dia!”

    Enquanto andava, notou alguns trabalhadores ainda se equilibrando com pesados carrinhos de mão. “Pelo menos essa invenção foi um alívio para muitos… Falando nisso, ele mencionou outra coisa, uma tal de… ‘bicicleta’? Disse que é o próximo passo, que só está esperando as fábricas prioritárias ficarem prontas. Seria maravilhoso. Os agricultores moram tão longe de tudo, e eu tenho que percorrer de uma ponta a outra! Já pedi ao Kaio para montar um cronograma de visitas mais eficiente, com fazendas próximas umas às outras, mas as pernas ainda são o meu principal meio de transporte.”

    Essas reflexões, em vez de acalmá-la, só alimentaram uma irritação crescente. Quando finalmente avistou a prefeitura, seu rosto estava franzido e seus passos, mais curtos. Mas o aroma inconfundível de chocolate quente e bolo recém-saído do forno pairou no ar, funcionando como um feitiço de acalanto.

    Encontrou uma fatia generosa de nega maluca esperando por ela em sua mesa. Ao primeiro gole de chocolate e garfada do bolo macio, sua tensão começou a dissolver-se.

    “Não posso ficar reclamando,” pensou, saboreando a mistura doce e amarga. “Foi todo esse trabalho que trouxe o trigo de volta e trouxe o cacau que faz essas delícias. Há um certo equilíbrio nisso.”

    Mal havia terminado o último pedaço, Kaio, seu assistente, aproximou-se silenciosamente e deslizou uma folha de papel sobre a mesa.

    — Bom dia, Ministra. O cronograma de visitas para esta manhã.

    Ela pegou a lista, e um suspiro escapou-lhe ao tentar ler o que estava escrito.

    — E- Li… — leu em voz alta, com dificuldade.

    Kaio ficou imóvel, observando-a com atenção, aguardando.

    — A, Elia? — tentou novamente.

    — Esqueceu de pronunciar o ‘S’. É ‘Elias’.

    A voz veio de trás dela, familiar e um pouco divertida. Tassi baixou o papel sem virar-se.

    — Ei, você não tem trabalho de chefe para fazer?

    Carlos surgiu ao seu lado, um leve e malicioso sorriso nos lábios.

    — Tenho, sim. E estou fazendo exatamente isso: supervisionando meus ministros. Em especial, minha ministra da agricultura, a responsável por encher nossos celeiros e, mais importante, nossas xícaras de chocolate.

    Tassi revirou os olhos, derrotada.

    — Como se o dinheiro do chocolate representasse 1% do que o aço traz.

    — Não subestime o poder do doce, Tassi — ele retrucou, o sorriso se aprofundando. — Os chocolates feitos com o seu cacau abriram portas que o aço nunca abriria. Conquistei chefes de outros Mocambos com ele. Falando nisso, a Papisa vem essa semana tratar de um assunto sério. E eu pensei em adoçar essa reunião com sorvete, e chocolate. Ela pareceu gostar muito de sorvete na última visita.

    Tassi ergueu as mãos em sinal de rendição.

    — Tudo bem, tudo bem, você venceu. Agora, com sua licença, tenho um império agrícola para gerir. As plantas não crescem sozinhas… Quer dizer, crescem, mas o trigo teima em discordar. Você me entende.

    Carlos deu uma risadinha baixa, e até o sério Kaio esboçou um sorriso. Derrotada, mas com o humor um pouco restaurado, Tassi pegou sua bolsa e saiu em direção à fazenda de Elias.

    A propriedade do velho Elias ficava nos confins do Mocambo, onde a ordenação das ruas começava a ceder à pressão da mata fechada. O ar mudava, ficava mais pesado, cheirava a folhas apodrecendo e terra úmida. O som dos insetos era mais agudo.

    Foi então que sentiu — uma coceira na nuca, a sensação inconfundível de estar sendo observada. Ela parou, os sentidos alertas, e olhou fixamente para a parede verde e sombria da floresta. Nada se mexia.

    “Foi só minha imaginação? Não…” O silêncio era a pista. Um silêncio profundo e antinatural, como se a floresta toda estivesse prendendo a respiração.

    O instinto falou mais alto. Correu em direção à casa, as mãos já tremendo ligeiramente enquanto abria a bolsa, pegava o revólver e o carregava com movimentos praticados. O ataque no começo do mês podia ter sido uma exceção, mas a precaução havia se tornado sua companheira.

    Estava quase lá quando um grito agudo, de puro terror, cortou o ar. Um grito de mulher.

    Acelerou o passo e a cena desenhou-se à sua frente: Seu Elias, de enxada em punho, os nós dos dedos brancos de tanto apertar. Atrás dele, sua esposa, tremia incontrolavelmente, o rosto pálido como a morte. E diante deles, a causa de todo o medo.

    A criatura era um pesadelo feito carne. Mais de dois metros e meio de altura, coberta por uma pelagem longa e escura, como a de um urso velho. No centro da testa, um único olho amarelo e pupilar fixa, e acima dele, uma gema vermelha incrustada que pulsava com uma luz interior sinistra. As mãos terminavam em garras que pareciam capazes de rasgar aço. Mas a parte mais aterrorizante era o ventre: uma boca vertical, uma fenda dentada que se abria e fechava espasmodicamente, revelando dezenas de dentes afiados e liberando um bafo fétido, um cheiro de carniça e podridão que enchia o ar. Um Mapinguari.

    Tassi não pensou duas vezes. Não houve pergunta, nem aviso. Ergueu o revólver e o fogo cuspiu.

    Bang! Bang! Bang!

    Os tiros ecoaram, acertando o torso maciço da criatura. O monstro rugiu, mais de surpresa do que de dor, e recuou alguns passos, sacudindo a cabeça. Mas os projéteis não o haviam derrubado; pareciam tê-lo apenas irritado. Aproveitando que Tassi pausava para recarregar, o Mapinguari voltou a avançar contra o casal, que retrocedia em direção à porta da cabana.

    — Não! — gritou Tassi.

    Enquanto as mãos trabalhavam velozes para colocar as balas no tambor, ela pisou forte no chão. Um de seus braceletes de madeira brilhou, e uma parede de terra e raízes irrompeu do solo, interpondo-se entre o monstro e os idosos.

    O Mapinguari rugiu, agora com fúria genuína. Investiu contra a barreira e, com golpes brutais de suas garras, despedaçou-a em segundos. Mas seu alvo já não eram os velhos. Aquele obstáculo mágico redirecionara toda a sua raiva para a guerreira.

    Ele se virou e arremeteu contra Tassi, que finalmente fechou o revólver.

    Ela não recuou. Em vez disso, estendeu a mão livre. Videiras e cipós brotaram do solo como serpentes, enrolando-se nas pernas peludas do monstro, tentando imobilizá-lo. Com um urro de desdém, o Mapinguari arrancou as plantas com puxões brutais, mas cada passo agora era um fardo, dando a Tassi o tempo precioso que precisava.

    Ele se aproximava velozmente, apesar do entrave. Ela ergueu o revólver, mirando. E o monstro… esquivou-se.

    “Espera aí,” o pensamento foi rápido e claro. “Se ele está se esquivando, é porque os tiros doem. Os primeiros só não foram suficientes.”

    Tentou mirar novamente, mas a criatura era ágil, movendo-se em zigue-zague. De repente, estava a apenas alguns passos, as garras erguidas para um golpe final.

    Tassi já esperava por isso. Deu um passo decisivo para o lado e, com outro pisão, ergueu não uma parede, mas uma cortina espessa de poeira e terra, cegando o monstro momentaneamente. Enquanto ele rugia e batia às cegas, ela se ajoelhou, tocando o solo com ambas as mãos, e a terra pareceu abrir-se e engoli-la, soterrando-a em um buraco raso que selou-se sobre ela.

    O silêncio desceu, quebrado apenas pelo respirar ofegante do monstro. A poeira baixou. Ele olhou ao redor, confuso. A presença da guerreira havia sumido. Então, ele começou a farejar o ar, seu focinho úmido se mexendo. O cheiro dela ainda estava lá, vindo do chão.

    Com um rosnado triunfante, ele começou a escavar, terra e grama voando para todos os lados. Tassi, sentindo as vibrações acima, fez as raízes e plantas crescerem mais uma vez, tentando prender seus braços. Foi inútil. A fera as arrebentou com facilidade, obcecada em alcançar sua presa.

    Em poucos segundos, suas garras desenterraram uma cavidade, uma toca rasa. Lá no fundo, ele viu o que procurava.

    Ela estava encurralada. O monstro rugiu, preparando-se para o mergulho final.

    Foi quando Tassi ergueu o revólver. O cano não tremia. O monstro parou, o olho único arregalando-se por uma fração de segundo. Ele havia caído em uma armadilha.

    Mas era tarde demais.

    Bang! Bang! Bang!

    Os tiros ecoaram no espaço confinado, ensurdecedores. Um deles acertou em cheio o olho amarelo. Um jorro de um líquido escuro e viscoso jorrou. O monstro não morreu imediatamente. Em vez disso, explodiu em uma agonia cega, rugindo, batendo contra as paredes de terra, fazendo o chão tremer. Tassi, protegida em seu nicho, concentrou-se, suando frio. As paredes da pequena caverna começaram a se mover, a se comprimir, a esmagar a criatura em um abraço de terra mortal.

    O rugido tornou-se um gemido abafado, até se extinguir por completo. O silêncio voltou, mais pesado do que nunca.

    Exausta, Tassi usou o último resto de sua força para fazer a terra elevá-la, trazendo-a à superfície junto com o corpo inerte do monstro, que enquanto subia à superfície se tornou o corpo de um homem.

    Assim que surgiu da terra, como uma flor brotando do solo, duas figuras apareceram como sombras ao seu lado: Sombra e Espectro.

    — Tassi! Você está bem? — a voz de Sombra era firme, mas carregada de uma urgência rara.

    Ela cambaleou e deixou-se cair de costas no chão, ofegante, o rosto sujo de terra e suor.

    — Estou… inteira — gemeu, a voz um fio. — Mas consumi toda minha mana… Nunca… fiz uma caverna inteira antes… — Ela fez uma pausa, recuperando o fôlego, e apontou para o cadáver. — E… o Mapinguari… era esse homem. Um homem branco.

    As pálpebras pesaram. A escuridão acolhedora veio buscá-la antes que pudesse ouvir a resposta.

    Sombra ajoelhou-se rapidamente, pressionando dois dedos contra seu pescoço. Os olhos escuros percorreram-na, buscando ferimentos graves.

    — Ela está só inconsciente. A exaustão e o esgotamento mágico. Os vitais estão estáveis.

    Ele então ergueu o olhar e fixou-o em Espectro, que observava o corpo do homem que fora um monstro, seu rosto imperscrutável.

    — Algum dos nossos guerreiros… algum deles… já matou um Mapinguari sozinho? — a pergunta de Sombra era quase um sussurro carregado de significado.

    Espectro manteve o olhar no cadáver por um longo momento. Finalmente, lentamente, balançou a cabeça em uma negativa silenciosa. A resposta era clara: não, nunca.

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