Índice de Capítulo

    Neste mês de dezembro estarei publicando um capítulo por dia, então aproveitem!

    O barracão, construído às pressas por Tassi para abrigar a reunião com a Papisa, exalava um aroma misto de terra batida, madeira nova e o doce perfume do chocolate que escurecia em uma bandeja de prata.

    Gemas de luz, ativadas pelos poderes de Quixotina, cravavam as paredes de taipa, lançando uma claridade branca. No centro, uma longa mesa de jacarandá, polida até brilhar, refletia as luzes das gemas. Era ladeada por cadeiras com assentos almofadados de veludo verde-escuro. Sob a mesa, em finas taças de cristal, sorvetes suavam levemente no ar quente, suas superfícies começando a brilhar com a condensação. 

    Apesar da seriedade do encontro, Carlos insistira em proporcionar uma experiência que fosse, acima de tudo, proveitosa para a ilustre convidada.

    Dentro da sala, o ar estava carregado de uma tensão silenciosa que parecia engrossar a luz branca. De um lado da mesa, Carlos, com suas roupas práticas de trabalho, Espectro em sua postura habitual de sombra vigilante, e Ganga Zala, cujas vestes tradicionais contrastavam com a mobília europeia. Do outro lado, a Papisa Paula, com seus olhos azul-escuro pairando sobre todos como lagos profundos, e Francisco, seu acompanhante, cuja postura era de um tédio vigilante, dedos tamborilando levemente no veludo do braço da cadeira. Guardas de ambas as facções permaneciam imóveis ao fundo, suas armas cintilando à luz das gemas.

    Ganga Zala quebrou o gelo, seu sorriso amplo e calculado iluminando o rosto.

    — É um prazer finalmente conhecê-la pessoalmente, Vossa Santidade. Na última vez, as circunstâncias não permitiram.

    A Papisa, com seu rosto parcialmente oculto por um véu de seda branca que parecia flutuar com sua respiração, retribuiu o sorriso, um movimento sutil e controlado dos lábios. Seus olhos, porém, permaneciam imperscrutáveis.

    — O prazer é meu, Ganga Zala. — Ela então desviou o olhar para Carlos, sua voz suavizando-se um grau, quase musical. — É bom vê-lo novamente, Carlos.

    Carlos, lembrando-se vividamente de como havia pressionado Ganga da última vez, limitou-se a um aceno curto e respeitoso. “Melhor deixar Zala conduzir a dança… pelo menos por agora. Não preciso de mais atritos.”

    Vendo que não eliciaria mais de Carlos, Ganga Zala prosseguiu, seus dedos tamborilando levemente na madeira polida.

    — Fiquei surpreso ao saber que o governador já suspeita de nossa… conexão. Imagino que Vossa Santidade tenha vindo até nós com uma solução em mente.

    Por trás do véu, os olhos de Paula faiscaram por um instante. “Maldição. Eu não sabia disso! Eu vim aqui justamente para pedir ajuda com relação a sede da igreja, não com uma resposta pronta!” Ela lançou um olhar rápido a Carlos, esperando um salva-vidas, mas ele permaneceu impassível como uma estátua. “Por que ele não diz nada? Eu o considerava o mais competente daqui!”

    Apenas Francisco, ao seu lado, percebeu o turbilhão interno da papisa. Disfarçando um sorriso de satisfação, ele pegou a taça de sorvete de cor marrom à sua frente e levou uma colherada à boca, saboreando a textura cremosa e o sabor intenso de cacau que se dissolveu em sua língua. O doce derreteu, um contraste gelado e delicioso com a atmosfera quente e tensa da sala.

    Um silêncio constrangedor se instalou, pesado e longo o suficiente para que todos ouvissem o ruído distante de um sabiá lá fora. Finalmente, Paula respirou fundo, o tecido do seu véu tremulando levemente.

    — Está claro — começou ela, tentando manter a voz serena — que não podemos mais esconder nossa aliança. E não é só o governador que investiga nossas conexões; a própria Igreja vai descobrir nossas conexões. Com a chegada dos enviados da sede para… supervisionar minhas atividades, minha liberdade de ação será drasticamente reduzida. — Ela fez uma pausa, escolhendo as palavras com o cuidado de quem pisa em ovos. — Sob esse novo escrutínio, não posso, em sã consciência, afirmar ter laços estreitos com um quilombo… especialmente um que ainda pratica abertamente costumes pagãos.

    Ganga Zala colocou a mão no queixo, ponderando. Seus olhos percorreram os rostos ao redor antes de retornarem à Papisa.

    — Está sugerindo, então, que abandonemos nossas crenças e nos convertamos ao cristianismo?

    A Papisa assentiu, sentindo o gosto amargo da sugestão em sua própria boca, como se tivesse mastigado uma casca de limão.

    — Deus é misericordioso e perdoará seus pecados, acolhendo-os de bom grado. Você, como líder, poderia dar o exemplo: ser batizado e, naturalmente, abandonar práticas como a poligamia. — Ela falou com uma dificuldade perceptível, seus olhos fixos em Ganga, tentando medir a fagulha de fúria que esperava ver.

    Para surpresa de todos, Zala não explodiu. Ele permaneceu calmo, sua expressão inscrutável como a superfície de um lago noturno.

    — Compreendo a posição da Igreja. E aceito a condição… — Ele fez uma pausa dramática, deixando as palavras pairaram no ar. — …mas com uma contrapartida. — Seus olhos encontraram os dela com intensidade. — Que Vossa Santidade atue como mediadora em um tratado de paz entre mim e o governador.

    A proposta atingiu Paula como um soco no estômago. Seu corpo ficou rígido por um segundo, os dedos crispados sobre o colo. “Eles não são os selvagens que eu imaginava. Antônio  já me contou, só desejam viver em paz, mas ainda achei dificíl de acreditar depois de ver o estado que os combatentes voltaram… Parece que os julguei mal, e com preconceito.” Um sorriso genuíno, ainda que cauteloso, surgiu em seus lábios, afastando levemente o véu.

    — Eu… vou ver o que posso fazer. Mas não espere termos muito favoráveis da parte do governador. — Ela então ergueu levemente a cabeça, assumindo novamente sua postura oficial, a máscara da autoridade religiosa reassumindo seu lugar. — Além disso, também gostaria de fazer um pedido.

    Seu olhar, agora afiado como uma adaga, voltou-se para Carlos.

    — Espero que nada sobre nosso… acordo de informações… seja mencionado. Tenho uma reputação a zelar.

    Carlos finalmente sorriu, um gesto mais relaxado que chegou até seus olhos.

    — Pode ficar tranquila, Vossa Santidade. O segredo é a alma do negócio.

    Um suspiro quase imperceptível escapou dos lábios de Paula. Com os ombros visivelmente mais relaxados, ela esticou a mão e pegou um quadrado de chocolate da bandeja à frente de Francisco, em parte porque ele já havia comido e confirmado que estava tudo seguro, e em parte para aborrecê-lo, já que ele parecia estar tão satisfeito com a situação.

    — Também trago boas notícias — disse ela, quebrando o doce entre os dedos. O som seco ecoou na sala, e o aroma rico de cacau inundou o ar ao seu redor. — Não demorará para que os primeiros carregamentos de minério bruto cheguem para vocês. Vejo, porém, que não quiseram esperar e já dominaram a produção do aço. Suas mercadorias estão vendendo como água na Cidade Sagrada, e logo se espalharão por todas as outras. — Ela fez uma pausa dramática, e o som de sua mastigação do chocolate pareceu anormalmente alto. — No entanto, agora que a verdadeira fonte do aço se tornará pública… receio que possamos enfrentar… complicações no futuro, afinal será a Coroa Portuguesa que estará fornecendo esses minérios das capitanias mais ao sul.

    “Mais um problema para a pilha de problemas… Mas vamos deixar isso para depois”, pensou Carlos, enquanto pegava uma pequena pilha de documentos de uma pasta ao seu lado e fazia um gesto para um dos guardas, que os entregou à Papisa.

    — Sou muito grato por isso. Nossa indústria dará um salto tecnológico sem precedentes. E sei que nada disso é de graça. — Ele esperou ela pegar os papéis, o som do papel passando de mão em mão sendo o único ruína na sala. — Os documentos detalham os antibióticos.

    Paula, com os olhos brilhando de animação como as gemas nas paredes, começou a folhear as páginas, seus dedos ávidos tocando os desenhos e anotações como um devoto tocando um relicário.

    — Explico resumidamente — Carlos continuou, inclinando-se para frente. — Um antibiótico é uma substância que combate infecções causadas por bactérias. Aqueles desenhos mostram o fungo Penicillium chrysogenum. Ele produz a penicilina, que é extremamente poderosa. Minha ajuda termina aí: identificar o fungo certo e fazê-lo produzir penicilina em larga escala… isso fica com você. — Ele fez uma pausa, pensativo, esfregando o queixo. — Embora… talvez a Gema da Alteração possa ser usada para modificar o fungo, forçá-lo a produzir mais.

    — Fico imensamente agradecida, Carlos — sussurrou Paula, quase sem fôlego, sua mente já vagando por laboratórios e possibilidades que só ela podia enxergar.

    Foi então que ela notou que havia mais folhas no final, com diagramas de corpos humanos e técnicas estranhas. Carlos, percebendo sua confusão, explicou.

    — Soube que o Francisco recuperou as armas de fogo com a Vossa Santidade, e gostaria de ter mais delas. Isto é um pagamento adiantado por elas.

    Paula devorou as novas informações, sua animação transbordando. “Então é possível reviver os mortos! Isso não é tecnologia, é um milagre divino!”

    — Essa… ‘massagem cardíaca’… é mais do que pagamento suficiente por aquelas armas — ela declarou, tentando conter o tremor em sua voz. — Afinal, elas só juntam poeira na catedral. — Seu tom então ficou sério, e seu olhar varreu a sala, pairando sobre cada rosto. — Devo ressaltar: nada do que for discutido aqui pode sair destas quatro paredes.

    Ganga Zala vendo que poderia tomar o rumo da conversa novamente inclinou a cabeça em assentimento, seus brincos de ouro balançando levemente.

    — Não se preocupe, Vossa Santidade. O segredo é uma moeda de valor universal aqui.

    — Fico agradecida, Ganga — ela respondeu, antes de voltar sua atenção inquisitiva para Carlos, seu interesse científico superando a prudência diplomática. — Já que tudo aqui será confidencial… tenho algumas dúvidas que creio só você poder responder. Por exemplo… as almas residem no mundo físico ou apenas no espiritual?

    A pergunta ecoou na sala, pegando Carlos completamente desprevenido. Ele pestanejou, buscando uma resposta em um mundo que não tinha lugar para tal conceito.

    — No meu mundo… — ele começou, hesitantemente — nunca fomos capazes de detectar ou provar a existência de uma alma. É o máximo que posso lhe informar.

    A decepção foi visível no rosto de Paula, que ficou em silêncio por um momento, seus dedos traçando os contornos de uma gema em seu colar como se buscasse conforto em sua solidez.

    — Entendo… — ela murmurou, antes de levantar os olhos, cheios de uma luz estranha e obsessiva. — Recentemente, usando a Gema da Alteração, tenho realizado experimentos. Cortei partes de ratos e reconstruí seus corpos, assim como as estrelas do mar são capazes de se regenerar. O corpo reconstruído está vivo… respira, o coração bate… mas não se move. Parece… vazio. Sem alma. No entanto, com microrganismos, esse problema não ocorre. Você saberia me dizer a causa?

    A revelação causou um frisson na sala. Espectro cruzou os braços, tensionando os músculos visíveis mesmo sob suas vestes. Ganga Zala arregalou os olhos, impressionado com a frieza da prática. 

    “Que tipo de mulher é essa? Que experimentos hediondos ela conduz?”, pensou Carlos, sentindo um calafrio subir por sua espinha. “Ela é uma cientista louca… mas, pensando bem, acho que sei qual pode ser o problema.”

    — Creio… — disse Carlos, lentamente, escolhendo cada palavra com cuidado — que o segredo não está apenas no corpo, mas na mente. Todas as nossas memórias, conhecimentos, o que nos faz quem somos… tudo isso fica armazenado no cérebro, em uma vasta rede de conexões neurais. — Ele gesticulou, entrelaçando os dedos para demonstrar. — Clonar o corpo é inútil se a mente, a consciência, não for também replicada.

    Os olhos de Paula brilharam com uma compreensão avassaladora. Era como se uma porta se abrisse em uma parede que ela nem sabia que existia.

    — E em seu mundo… — ela perguntou, sua voz um fio de empolgação — já conseguiram ‘clonar’ alguém?

    A conversa havia transcendido completamente o contexto colonial, e os outros presentes olhavam para os dois como se estivessem falando em uma língua arcana. Ganga Zala e Espectro trocararam olhares de confusão. Mas Carlos e Paula estavam em seu próprio mundo agora.

    — Já clonaram animais. Uma ovelha, por exemplo. — Carlos explicou, virando-se mais para ela. — Pegaram o DNA de uma e fizeram nascer uma cópia idêntica. — Ele enfatizou as próximas palavras, batendo com o indicador na mesa. — Mas é uma cópia física apenas. As memórias, a personalidade… isso não se clona. Pelo menos não até onde eu sei. — Ele olhou para Paula com um novo respeito. — Aliás, acho que sua ‘clonagem’ mágica é, de muitas formas, muito mais avançada que qualquer coisa que já fizemos.

    Uma sombra de decepção cruzou o rosto de Paula, mas foi rapidamente substituída por um brilho de ambição pura. “Isso significa que sou uma pioneira! Em ambos os mundos! Até agora, apenas repliquei o conhecimento de Carlos… mas isto… isto é meu. Irei criar meu próprio legado!”

    — Carlos — ela disse, sua voz firme e decidida, projetando-se pela sala — se você tiver qualquer informação, qualquer fragmento sobre o funcionamento do cérebro, eu exijo que me passe. Isto será incluído em nosso acordo mensal. Conhecimento divino em troca de comércio.

    Carlos sentiu um alívio imenso. Ele estava, de fato, ficando sem “conhecimentos divinos” para barganhar.

    A papisa iria mudar de assunto, mas revolveu perguntar, sua curiosidade sendo mais forte:

    — E quanto aos microrganismos? Por que a clonagem deles funciona, mas a de animais complexos não?

    Carlos pensou por um momento, seus olhos perdidos no clarão branco de uma gema na parede. Enquanto isso, as demais pessoas na sala permaneciam com olhares confusos. Ganga Zala bebeu um gole de água, o som do líquido sendo engolido quebrando o silêncio. Espectro ajustou sua posição, a madeira da cadeira rangendo levemente.

    — A questão é a complexidade da programação — respondeu Carlos, encontrando a analogia certa. — Um microrganismo é como um instrumento autossuficiente. Todo o seu “saber fazer” — como obter energia, como se dividir — está imbuído diretamente em seu código, em seu DNA. É uma vida completa e funcional em um único pacote. 

    Ele fez uma pausa, erguendo dois dedos. — Já um animal complexo… bem, esse tem dois problemas. Primeiro, seu DNA não carrega apenas instruções para ser, mas para se tornar. São instruções para construir sistemas inteiros — nervos, músculos, um cérebro — a partir de uma única célula. E segundo, e mais crucial para o seu problema… 

    Carlos inclinou-se para frente, seu tom ficando mais grave. — …a mente não está escrita no DNA. Ela emerge das conexões neurais, das experiências, das memórias. Você pode usar a magia para ler o projeto do corpo no DNA e reconstruí-lo perfeitamente. Mas o que habita esse corpo, a consciência… isso é uma história completamente diferente.

    Francisco, que havia ficado em silêncio observando a troca, não pôde evitar um pensamento ácido enquanto mexia o que restava de seu sorvete. “Se eu soubesse que a conversa chegaria a esses… devaneios profanos, teria inventado uma desculpa para ficar na catedral. Só vim para viajar na confortável carruagem dela e para relatar o achado da fonte de enxofre…”

    Vendo que a conversa entre os dois chegara a uma pausa natural, Francisco limpou a garganta suavemente, o som seco chamando a atenção de todos para si. O momento de interromper aquele espetáculo de heresias e ambição havia chegado.

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