Capítulo 84 - Visita e Armas
O sol da tarde insistia em derramar seu calor sobre a terra, mas Carlos permanecia confortável sob a sombra fresca do ponto de comércio. O ar carregava o cheiro misturado de poeira, suor e serragem, um testemunho do trabalho incessante que acontecia ao seu redor. Ao seu lado, imóvel e observador, estava Espectro, seus olhos atentos varrendo o horizonte como os de um falcão.
A estrada que se estendia diante deles era o coração pulsante do progresso do quilombo. Conhecida como Estrada da Prosperidade, ela serpenteava para longe, em direção à Cidade Sagrada, um veia de terra batida e esperança. Para alimentar esse crescimento, mais dois mil trabalhadores haviam sido contratados de outros mocambos para constituir uma estrada de concreto até a cidade sagrada. Foram contratados quilombolas de outros mocambo pois a mão de obra do Mocambo do Tatu já estava totalmente absorvida. O som ritmado de picaretas, o arrastar de carroças pesadas e as vozes distantes dos capatazes formavam uma sinfonia caótica de construção.
No meio desse vaivém, um grupo específico chamava a atenção. Além das dezenas de carroças de mercadores, trafegava uma carruagem de um branco imaculado, adornada com detalhes dourados que cintilavam sob a luz do sol. Era um veículo de design medieval, mas que rolava sobre uma inovação chocante: quatro pneus de borracha branca, fabricados sob medida por Carlos especificamente para a Papisa. À frente dela, uma carruagem mais simples e funcional transportava seus guarda-costas, que já haviam descido e inspecionavam a área com olhos desconfiados. Atrás, um padre de expressão séria conduzia uma carroça carregada com produtos cobertos por um pesado pano de lona.
Carlos acompanhou com o olhar enquanto o pequeno comboio se aproximava e finalmente parava no ponto de comércio. A porta da carruagem branca se abriu e dela desceu Paula, a Papisa. Seus trajes brancos e imaculados contrastavam vivamente com a terra ocre do local, e desta vez, nenhum véu ocultava seu rosto. Seus olhos claros percorreram o ambiente antes de pousarem em Carlos, e um sorriso leve, quase íntimo, curvou seus lábios. Carlos, por sua vez, sentiu o canto da sua boca se erguer em resposta.
— Bom dia, Vossa Santidade — cumprimentou Carlos, com um ligeiro aceno de cabeça. — Não esperava por vossa visita tão cedo.
Espectro inclinou a cabeça em um gesto respeitoso, sua voz ecoando a saudação.
— Bom dia, Vossa Santidade.
Paula fechou a porta da carruagem e se aproximou, o tecido de suas vestes sussurrando contra o chão de terra.
— Bom dia, Carlos. Bom dia, Espectro. Resolvi trazer pessoalmente as armas de fogo e mágicas que vocês solicitaram. Aproveitei a oportunidade para vir, pois seu mocambo tem produtos que… bem, que muito me interessam. — Seus olhos brilharam com um misto de curiosidade e cobiça. — Além disso, confesso minha curiosidade sobre o funcionamento dessas armas do seu mundo. Adoraria ver uma demonstração.
Espectro cruzou os braços, seu rosto impenetrável.
— Claro, Vossa Santidade. No entanto, receio que demonstrar seu uso aqui, em plena via pública, não seja a coisa mais prudente a se fazer.
— Isso não será um problema — ela retrucou, fazendo um sinal rápido para seus guardas. — Podemos nos dirigir a um local mais discreto.
Carlos, no entanto, parecia distraído, seus olhos procurando por alguém.
— E o Francisco? Não veio com você hoje?
— Ele tem seus próprios negócios a resolver — respondeu Paula, com um ligeiro tom de desdém. — Está empenhado em conseguir mais “livros divinos” para minha coleção.
— Entendo, se por acaso ele encontrar algum livro divino que não seja de seu interesse… — Carlos começou, escolhendo as palavras com cuidado. — Eu o aceitaria com o maior prazer.
Paula lançou-lhe um olhar perspicaz.
— Vou manter sua… oferta em mente, Carlos.
Enquanto isso, Espectro já havia começado a caminhar, sua figura esguia movendo-se com propósito.
— Vossa Santidade, se me acompanhar, levo-vos ao nosso campo de testes de armas. É o local mais adequado.
A Papisa acenou em concordância e começou a segui-lo, fazendo outro gesto para que seus guardas retirassem o pano da carroça e carregassem os estranhos artefatos. O grupo então se pôs em movimento, deixando o burburinho do ponto de comércio para trás e adentrando o canteiro de obras propriamente dito.
O ar mudou, tornando-se mais pesado com o cheiro de suor e o barulho metálico das ferramentas. Enquanto desviavam de homens que carregavam blocos de cimento e passavam por outros que derrubavam árvores com machados, Paula retomou a conversa, seu tom era de satisfação.
— A construção do nosso lado da Estrada da Prosperidade avança a bom ritmo. E os comerciantes locais, devo dizer, ficaram maravilhados com esse novo produto, o cimento. O Francisco, é claro, não ficou nada contente por eu ter formado uma guilda de construção e repassado a receita para seus membros.
Carlos ergueu uma sobrancelha, interessado.
— Oh? E por que a insatisfação dele?
— Ele acredita que isso dilui seus lucros — explicou Paula, com um suspiro que parecia mais teatral do que genuíno. — Mas, como Papisa, meu dever não é apenas engordar o bolso de um único comerciante, por mais influente que ele seja. É pensar no que beneficia a todos. Acredito que a competição entre vários produtores de cimento irá estimular a qualidade e baixar os preços. E, de quebra, o segredo de sua fabricação permanecerá seguro dentro da guilda.
Carlos não pôde deixar de sorrir, impressionado.
— Você é realmente uma pessoa de pensamento avançado, Vossa Santidade. Às vezes, chego a suspeitar que você também não seja deste mundo.
Paula, embora acostumada a lisonjas, corou levemente. Aquele elogio em específico tocou em sua vaidade intelectual.
“Finalmente!” pensou ela, seu ego inflando como um balão. “Alguém que reconhece minha genialidade, que enxerga além das aparências!”
Mas o balão foi rapidamente esvaziado pelas palavras seguintes de Carlos.
— No entanto, receio que sua ideia, embora brilhante em teoria, possa encontrar problemas no futuro.
— Problemas? — ela perguntou, seu sorriso murchando um pouco.
— No momento, sim, irá gerar competição — ele continuou, pegando uma pedra pequena do chão e examinando-a. — Mas não vai demorar muito para que os membros da guilda percebam que, em vez de competir entre si com preços baixos e trabalho de qualidade, é muito mais lucrativo se unir e manter os preços artificialmente altos. Formar um cartel.
Ele jogou a pedra para longe.
— A ideia da guilda em si é boa, não me entenda mal. Mesmo que o conhecimento do cimento se espalhasse por todo o mundo, esse tipo de acordo entre grandes produtores poderia acontecer. Talvez não com o cimento, por ser um produto mais fácil de fabricar localmente, mas certamente com outros itens no futuro.
Paula ficou em silêncio por um longo momento, processando a previsão de Carlos. Seus guardas e até mesmo Espectro trocaram olhares confusos; a conversa sobre economias futuras e monopólios soava como uma língua estrangeira para eles.
— É… um ponto de vista interessante — ela finalmente concedeu, sua voz mais contida. — Vou manter isso em mente, Carlos. Obrigada pelo aviso.
A conversa morreu enquanto o grupo finalmente alcançava uma clareira mais afastada, demarcada por barris de madeira e alvos de tiro espalhados. Era a área de testes do Mocambo da Serra. O ar aqui cheirava a pólvora queimada e metal.
Enquanto os guardas da Papisa colocavam as armas no chão com cuidado, ela fez uma observação.
— Para ser sincera, não tenho certeza se tudo o que trouxe são, de fato, armas de fogo. São todos artefatos divinos de metal que a Igreja preferiu não queimar. Estavam armazenados há décadas.
Carlos mal conseguia conter sua animação. Seus olhos se fixaram em uma arma longa e escura que um dos guardas depositou no chão. Ele não era um especialista, mas reconheceu instantaneamente o formato distinto de um rifle de precisão.
— Esta… esta aqui é uma sniper! — exclamou, a voz carregada de uma admiração quase reverente. Ele se ajoelhou ao lado da arma, seus dedos pairando sobre o metal frio e enegrecido sem tocá-lo, como se fosse uma relíquia sagrada. A coronha de madeira era áspera em alguns pontos, mas o cano longo e a luneta montada no topo falavam de um propósito mortal e preciso. — Com ela, podemos eliminar uma ameaça a uma distância incrível, onde nem mesmo o melhor arqueiro conseguiria acertar. A precisão é excelente!
Todos olhavam para ele, esperando mais. Ele percebeu os olhares expectantes e, com as mãos tremendo ligeiramente de empolgação, começou a procurar freneticamente nas caixas de munição. Encontrou os cartuchos longos e delgados.
— Aqui! — disse ele, engrenando a bolt action com uma certa dificuldade, mas com a determinação de quem já havia visto fazer. — Vocês precisam ver isso. Espectro, aquele alvo de barril, lá longe, perto daquelas rochas. Você vê?
Espectro, que já estava visivelmente animado, seguiu a direção do dedo de Carlos.
— Vejo. Deve ter uns trezentos, talvez quatrocentos passos, ou metros como você chama.
— Perfeito — Carlos respira fundo, apoia a coronha no ombro e encaixa o rosto na coronha, fechando um olho. A respiração de todos parece parar. Ele pressiona o gatilho.
CRACK!
O estampido foi seco, alto e violento, um som que não se parecia com nada que eles já tivessem ouvido. Não era o estrondo de um trovão, mas um estalo agressivo que ecoou pela clareira e fez vários dos guardas da Papisa, instintivamente, levarem a mão às espadas. Um bando de pássaros levantou voo assustado de uma árvore distante.
No mesmo instante, o barril de madeira, que parecia um pequeno ponto no horizonte, saltou para trás com força, lascas de madeira voando para todos os lados. Um buraco limpo e redondo agora marcava seu centro.
Um silêncio carregado pairou no ar, quebrado apenas pelo zumbido nos ouvidos.
— Por Deus… — sussurrou um dos guardas, sua voz cheia de incredulidade.
Espectro ficou com os olhos arregalados, uma fagulha de puro interesse tático acesa em seu olhar.
— Excelente para eliminar alvos de alto valor! — exclamou, sua voz contida mas carregada de fervor. — Eles nem saberão de onde veio o ataque! — Ele se aproximou e pegou cuidadosamente a arma das mãos de Carlos, sentindo o peso sólido e o calor residual do cano. Ele ergueu-a, fechando um olho e mirando através da luneta. Um mundo ampliado e detalhado se abriu diante de seu olho. — Hmm. A imagem é clara, mas treme com a respiração… Acho que eu poderia conversar com a Nia… pegar o cristal da visão de uma luneta e acoplar a essa arma para poder identificar adeptos a longas distâncias. Imagina uma mira que pode ver qualquer movimentação mágica a longas distâncias, não só isso, como também consegue eliminar qualquer ameaça a longas distâncias…
No mesmo instante, uma voz suave ecoou logo atrás de Espectro, tão próxima que seu bafo quase tocou sua orelha.
— Essa arma é perfeita para mim.
Carlos deu um salto para trás, seu coração acelerando como um tambor de guerra. Sussurro estava ali, como se tivesse se materializado a partir das próprias sombras alongadas do entardecer. Ninguém mais pareceu surpreso; eles estavam acostumados a sentir a presença sutil dela, uma leve alteração na pressão do ar.
— Eu já uso a gema da visão — ela continuou, sua voz um quase sussurro hipnótico, enquanto seus dedos esguios passavam sobre o cano da sniper com uma certa familiaridade. — Com uma luneta mágica consigo ver um alvo a um quilômetro de distância como se estivesse a dez passos. E consigo ficar invisível com a gema do assassino. Seria a arma ideal. Um sussurro mortal que eles nunca ouvirão chegar.
Pouco depois, Sombra apareceu ao lado de sua irmã, seus passos silenciosos não fazendo um único ruído na terra fofa. Seus olhos, sérios e analíticos, percorreram o arsenal.
— Acho que qualquer arma de fogo se torna formidável nas mãos de adeptos da gema do assassino — comentou, sua voz um contraste mais grave com a da irmã. — O elemento surpresa é nossa maior aliada. Mas essa… — ele apontou para a sniper — …esta é a materialização do silêncio absoluto. A morte que vem de um lugar que eles nem sabem que existe.
Espectro apenas concordou com a cabeça, baixando a sniper com um respeito renovado. A arma já não era apenas um artefato; era uma extensão potencial de suas próprias assassinas.
A empolgação era palpável. Carlos, revigorado, pegou uma das escopetas.
— Esta é mais… direta — ele anunciou, carregando-a. Ele apontou para uma pilha de tábuas vazia a cerca de vinte metros. — Não tem muita precisão, mas não precisa.
BOOM!
O rugido foi avassalador, muito mais profundo e ameaçador do que o da sniper. O coice foi brutal, empurrando o ombro de Carlos para trás. A pilha de tábuas simplesmente desintegrou-se, transformando-se numa nuvem de estilhaços e poeira.
A Papisa, que havia observado tudo com uma curiosidade académica, instintivamente deu um passo atrás, seus olhos arregalados. Os guardas, agora claramente impressionados e um pouco alarmados, trocaram olhares sérios. Aquele não era um poder que se podia bloquear com uma armadura comum.
Por fim, Carlos pegou a metralhadora pesada, apoiando-a no chão.
— E esta… esta é para quando você precisa dizer ‘não’ para um exército inteiro de uma só vez — ele disse, com um sorriso um pouco forçado, ofegante ainda do esforço. — Ela cospe fogo e metal mais rápido do que um dragão cospe fogo. Infelizmente, não podemos desperdiçar a munição agora, mas confiem em mim.
Depois de examinarem minuciosamente o resto do arsenal, um novo respeito pairava no ar. Havia escopetas, metralhadoras e até uma bazuca, embora não houvesse munição para esta última. Para uma luta de gangues, seria um arsenal formidável. Para uma guerra entre exércitos, talvez não fossem o suficiente para virar o jogo sozinho, mas certamente seriam um trunfo decisivo em batalhas cruciais. Eles não eram mais apenas objetos; eram ferramentas de mudança, e todos presentes sentiram o peso desse novo poder em suas mãos.
Depois que as armas de fogo foram todas inspecionadas, a Papisa limpou as mãos com um lenço branco.
— Também trouxe as armas mágicas que vocês pediram.
Desta vez, foi Espectro quem não conseguiu disfarçar seu interesse. Enquanto as armas de fogo empoderavam os comuns, as armas mágicas dariam uma chance de luta maior aos adeptos que antes ficavam apenas com lanças.
— Vossa Santidade — disse ele, e um pequeno, mas genuíno, sorriso surgiu em seus lábios. — Tudo isso irá nos ajudar imensamente. Estamos em dívida.
Paula balançou a cabeça, um gesto quase maternal.
— Vocês também me ajudam, Espectro. E eu espero que continuem a fazê-lo. Espero que sempre me vejam como sua única e preferencial parceira comercial. — Ela olhou para o céu, onde o sol começava a declinar. — Agora, se me dão licença, minhas carroças estão vazias e tenho muitos produtos para enchê-las. Chocolates, xampus, luvas, pneus… a lista é longa.
O resto da tarde foi dedicado ao comércio. A Papisa percorreu cada barraca, loja e mercado do mocambo, sua figura branca uma visão familiar e poderosa. Ela comprava com entusiasmo, examinando tecidos, provando doces e cheirando sabonetes. Seus guardas, inicialmente imponentes, logo se viram transformados em carregadores, seus braços cheios de pacotes, caixas e sacolas de todos os formatos e tamanhos.
Antes de se retirar, ela fez uma visita à igreja local para uma oração rápida e, em seguida, dirigiu-se ao complexo de apartamentos, onde um quarto era mantido para ela até a conclusão do hotel para visitantes ilustres. O hotel, que Carlos supervisionava pessoalmente, prometia ser uma estrutura ainda mais imponente.
Na manhã seguinte, bem cedo, a carruagem branca com seus pneus de borracha partiu de volta para a Cidade Sagrada. De dentro, Paula olhava pela janela, seu rosto iluminado por uma satisfação profunda. Ela não levava apenas mercadorias; levava a certeza de uma parceria lucrativa, a semente de ideias que poderiam mudar seu mundo e a imagem vívida de um hospital que funcionava como um refúgio de limpeza e ordem, um modelo a ser seguido.

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