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    Uma calma estranha habitava Nyran, mais profunda do que ela mesma esperava. Era o silêncio interior de quem já aceitou seu fim, um alívio mórbido após anos de lealdades conflitantes e sobrevivência precária. O ar do pequeno posto hospital cheirava a ervas medicinais e terra, e a luz fraca de uma gema da luz projetava sombras nas paredes de concreto.

    Sombra estava à sua frente, seu rosto uma máscara impenetrável de serenidade. Seus olhos, porém, observavam cada microexpressão em seu rosto.

    — Que bom que decidiu cooperar — disse ele, sua voz um tom baixo e neutro. — Venha comigo.

    Nyran, ainda com o corpo pesado pela exaustão e latejando de dor dos ferimentos, empurrou-se para fora da maca. Um leve tremor percorreu suas pernas, mas ela o controlou com um esforço de vontade. Enquanto seguia Sombra pelo corredor estreito, um hábito antigo a fez levar a língua ao céu da boca. O vazio áspero onde suas gemas costumavam estar instaladas confirmou o que ela já sabia: estava completamente desarmada. Pelos cantos, na penumbra, ela sentia — mais do que via — os olhares fixos nela. Sussurros cessavam quando ela passava, e o peso do ódio e da curiosidade era quase físico nas suas costas.

    Eles caminharam em silêncio por um bom tempo, subindo a encosta que levava à Serra da Vitória. O ar era quente e sufocante. Finalmente, chegaram a um grande barracão, sua estrutura robusta destacando-se contra o céu ensolarado. Ao entrarem, a porta de madeira maciça foi fechada atrás deles com um baque solene que ecoou no espaço.

    Dentro, a atmosfera era pesada e opressiva. Uma grande mesa retangular ocupava o centro, e ao redor estavam sentadas as figuras mais importantes do quilombo: todos os chefes dos mocambos e Ganga Zala. Os olhares que a receberam eram uma mistura cortante de ódio declarado, desconfiança gelada e, em alguns poucos, uma curiosidade clínica. E então, ela a viu. Tassi. Sentada um pouco afastada, com o rosto marcado pela fadiga e os olhos fundos. Um alívio agridoce invadiu Nyran, rapidamente suplantado por uma pontada de dor ao ver que Tassi não a fitava com alegria, mas com uma tristeza profunda e resignada.

    O silêncio no barracão era tão espesso que se podia ouvir o crepitar dos archotes nas paredes. Foi Espectro quem o quebrou, sua voz clara e impessoal cortando o ar como uma lâmina.

    — Vou direto ao ponto. Você tem duas opções — declarou ele, seus dedos entrelaçados sobre a mesa. — Morrer agora, ou falar tudo que sabe sobre Caetano Velho e, quem sabe, sobreviver.

    Nyran manteve a postura ereta, o queixo levemente erguido, encarando-o sem vacilar.

    — Irei falar tudo que sei sobre Caetano Velho — sua voz saiu mais firme do que ela imaginava possível. — O que querem saber primeiro?

    Um murmúrio de surpresa percorreu a mesa. Muitos esperavam negativas, desculpas ou até mesmo desdém. A cooperação imediata era inesperada. Espectro, porém, nem pestanejou.

    — Apenas para confirmar. Seus alvos no último ataque eram Carlos e Tassi, não é mesmo?

    Nyran assentiu com a cabeça.

    — Com base nas informações que colhemos, quem representa o maior perigo à Capitania de Pernambuco são Carlos, com suas invenções que podem equipar um exército, e Tassi, com seus poderes de fazer a terra florescer e alimentar todo um quilombo. Eram os pilares a serem derrubados.

    Ganga Zala, ao ouvir isso, fechou os olhos por um momento, uma expressão amarga e cansada cruzando seu rosto. Espectro continuou, inabalável.

    — Então, quem ordenou esses ataques constantes ao Quilombo foi Caetano Velho? Como funciona a gema da transformação ou metamorfose?

    Nyran olhou para Espectro, depois deixou o olhar percorrer os rostos à mesa antes de responder.

    — Sim, as ordens partiram de Caetano. Os ataques serviam de cortina de fumaça, dando tempo para que os espiões infiltrados aqui — como eu — passássemos informações para o governador. Posso lhes mostrar o ponto exato onde deixava as mensagens. Sempre via alguém pegá-las ou deixar novas ordens. — Ela fez uma pausa, escolhendo as palavras com cuidado. — Quanto à gema… vocês se referem à Mboia. Não posso ajudá-los a usá-la. Ignoro os detalhes do ritual que permite a um adepto dominá-la. Mas os gêmeos que capturaram… Silvestre e Silvana… eles podem saber. O ritual foi testado neles primeiro. Na menina, ele falhou. Sem os devidos cuidados, as transformações da Mboia podem se tornar permanentes. É uma gema complexa e traiçoeira.

    Espectro esperou Ganga Zala processar as informações, observando o líder mais velho anotar algo em um pedaço de couro, antes de prosseguir.

    — Existem mais adeptos usando essa gema? Eles pretendem lançar mais ataques? Há outros espiões entre nós?

    Nyran balançou a cabeça lentamente.

    — Não sei se há mais adeptos, nem seus planos futuros. — Ela franziu a testa, pensativa. — Mas conheço o Caetano. Ele não gosta de desperdiçar recursos. Com essa falha, ele vai perceber que subestimou gravemente o poder de suas armas de fogo. Ou melhor, que não conseguiu dimensionar seu poder real. Pelos relatórios da última batalha, elas pareciam bem mais fracas do que a arma que Tassi usou. Ele provavelmente irá recorrer a pequenos ataques de sondagem, para testar sua força total, enquanto planeja algo em larga escala. Quanto a outros espiões… os que vieram comigo estão mortos. Dos demais, não tenho conhecimento.

    Ganga Zala ergueu a cabeça, sua expressão carregada de preocupação.

    — É exatamente por isso que devemos buscar a paz! — ele exclamou, sua voz ressoando no barracão. — Para evitar um banho de sangue, um ataque em larga escala que pode dizimar nosso povo!

    Carlos, que permanecera em silêncio, balançou a cabeça com veemência.

    — Discordo, Ganga. Nesse último ataque, eles falharam em todos os objetivos. E num ataque maior, estaremos ainda mais fortes e preparados. Devemos partir para o ataque, mostrar nossa força! A retaliação é necessária!

    Zala bateu a mão aberta na mesa, o estalido ecoando como um tiro.

    — De jeito nenhum! O derramamento de sangue só gera mais sangue. Nossa força está em nossa comunidade, não em buscar guerra!

    Carlos abriu a boca para rebater, mas Espectro interveio, sua voz um tom mais alto, porém ainda controlada.

    — Com licença, Chefe Carlos, Ganga Zala. Sugiro que deixemos essa discussão vital para depois. Precisamos esgotar as informações primeiro. — Ele olhou para um, depois para o outro, até que ambos, relutantemente, aquiesceram em silêncio. Ele então se virou de volta para Nyran. — Sabe dos próximos planos específicos de Caetano Velho?

    Nyran suspirou, uma pontada de dor no braço ferido a lembrando de sua posição.

    — Não. Nada. Minha missão era específica.

    Espectro fez mais algumas perguntas, mas era claro que o poço de informações de Nyran secara. Ela não tinha mais nada de substancial para oferecer. Finalmente, ordenaram que ela esperasse do lado de fora, para que o conselho deliberasse sobre seu destino.

    Assim que a porta se fechou atrás dela, o ar dentro do barracão pareceu mudar. Espectro foi o primeiro a falar, seu olhar dirigindo-se a Tassi.

    — Sinto muito, Tassi — disse ele, sua voz um pouco menos impessoal. — Sei que ela te poupou mais de uma vez lá fora. Mas… não acredito que devamos aceitá-la de volta. E mantê-la solta é um risco. Agora ela tem conhecimento direto do poder de nossas armas.

    Tassi respirou fundo, seus ombros curvados pelo peso da decisão. Quando falou, sua voz estava carregada de uma dor profunda, mas clara.

    — Eu entendo. E concordo. — Ela olhou para as mãos no colo, evitando os olhos dos outros. — Eu disse a ela que matar Carlos seria como matar o quilombo, e que seria o mesmo que me matar. Mesmo assim… ela tentou. A lealdade dela já não está aqui.

    Ganga Zala emitiu um ruído de desaprovação, mas ficou em silêncio, seus dedos tamborilando na mesa.

    Carlos falou em seguida, sua voz prática e firme.

    — Concordo com a decisão. Por mais que sua ajuda na produção de aço fosse valioso, o risco de mantê-la viva é maior. A segurança do quilombo vem primeiro.

    “Este mundo não tem lugar para prisões de longo prazo”, pensou Carlos, seu rosto impassível. “É brutal, mas é a nossa realidade. Estamos numa situação de vida ou morte, e devemos tomar as decisões mais racionais, não as mais compassivas.”

    Os outros chefes de mocambo, um a um, expressaram sua concordância. Um consenso sombrio parecia ter se formado. Foi então que Ganga Zala se levantou, e a cadeira raspou no chão de terra com um som áspero. Ele bateu o punho na mesa, não com raiva, mas com uma autoridade final.

    — Não! — sua voz ecoou, firme. — Ela viverá. É uma testemunha viva de que o governador nos atacou enquanto buscávamos negociações de paz!

    Espectro manteve a calma, mas sua resposta foi incisiva.

    — Com todo respeito, Ganga, não temos provas tangíveis. E a palavra de uma mulher negra, e uma ex-espia, não vale nada perante as autoridades. Dirão que a forçamos a confessar, que ela é nossa aliada… A credibilidade é zero.

    Zala olhou para cada rosto ao redor da mesa, seu olhar impondo sua vontade.

    — Eu sou quem manda neste quilombo! E decido que ela viverá, sob custódia e supervisão constantes! Não alimentarei o ciclo de violência com uma execução sumária. — Ele fez uma pausa, sua respiração pesada. — E, por essa mesma razão, também não autorizo nenhum ataque de retaliação! — Seu olhar desafiou a todos. — Estamos entendidos?

    O silêncio que se seguiu foi pesado, carregado de tensão. Lentamente, relutantemente, um a um, os chefes foram abaixando a cabeça em aquiescência silenciosa. A decisão estava tomada, mas a divisão no coração do quilombo nunca fora tão clara.

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