Capítulo 94 - Fábrica de Máquinas a Vapor
O sol da manhã lutava para dissipar a névoa úmida que pairou sobre o mocambo, mas nada podia apagar o ânimo que fervilhava no peito de Carlos. Vestira-se rapidamente, o corpo ainda pesado do sono, mas a mente já alerta e dominada pela imagem do conversor Bessemer. Ao adentrar a zona industrial, seus pulmões se encheram do cheiro familiar de fuligem, carvão e metal quente — um perfume áspero, mas que para ele cheirava a progresso.
Ao se aproximar da grande estrutura de aço em formato de ovo, seus olhos encontraram Nyran. Ela estava em sua posição habitual, de frente para a boca aberta do conversor, mas a cena era, agora, marcada pela sombra de um guarda. O homem, de braços cruzados e expressão impassível, observava cada um de seus movimentos. A liberdade da jovem guerreira agora tinha um vigilante.
“Tive que criar uma prisão só para ela…,” pensou Carlos, sentindo um peso frio na consciência. O olhar desconfiado do guarda era um lembrete constante daquela realidade frágil. “Apesar de que… isso não é o fim do mundo. Logo, logo, a população do mocambo vai explodir. Mais gente, mais sonhos, mas também mais conflitos, mais crimes… Vou ter que criar um jeito de julgar essas coisas, um ministério da justiça, talvez… e uma polícia de verdade…” Ele esfregou as têmporas, sentindo a pressão do futuro como um peso físico. “Só de pensar, a cabeça já começa a latejar. Melhor me focar no que está funcionando, no que posso ver, tocar e cheirar agora. Como isto.”
Sua reflexão foi interrompida pelo ranger áspero e gemido de madeira de uma carroça pesadamente carregada. A equipe de logística começava a descarregar o minério de ferro recém-chegado ao quilombo. Homens de músculos tensos e rostos suados moviam as pedras brutas de coloração ferruginosa, que tinham o cheiro seco e terroso da jornada.
“Dizem que veio da Capitania de Gemas Gerais… uma capitania que nunca existiu no meu mundo,” Carlos refletiu, observando a pilha crescer. “Mas o que importa? Graças à Papisa, temos um fluxo constante de minério para alimentar este monstro de aço.” Sua mão tocou a lateral do conversor, sentindo o calor residual da última operação. “Mas essa fonte não vai durar para sempre. Com a notícia de que a Papisa está conosco, é quase certeza que Portugal vai cortar o fornecimento… Temos que produzir todo o aço que pudermos, enquanto podemos.”
Dirigiu-se então aos trabalhadores, homens cujos rostos já não carregavam a perplexidade de semanas atrás, mas a marca suja da experiência e os olhos cintilantes de quem entendia a magia daquela alquimia industrial.
— Muito bem, pessoal! — sua voz ecoou sob o teto do galpão aberto, competindo com o ruído de fundo. — Lembrem-se do processo! O minério vai para o alto-forno, mas o segredo está no sopro que queima as impurezas. Nyran, estamos prontos para você!
Diferente do processo anterior que ele havia testemunhado — que usava barras de ferro fundidas em um “ferro-gusa artificial” —, hoje eles usariam o minério bruto. O alto-forno adjacente já rugia, aquecido por gemas de fogo, transformando a pedra em um metal incandescente. Agora, era a hora do conversor.
Nyran se aproximou, seu passo firme ignorando a presença do guarda. Ela se dirigiu a um aparato de metal fixo perto da base do conversor — o soprador. O dispositivo, encomendado sob medida à Papisa, tinha o formato de um funil reforçado, com a Gema do Vento incrustada com segurança em seu interior. Carlos observou o equipamento com satisfação. “Esse foi um pedido necessário”, pensou. “Não só dá um controle muito mais preciso ao fluxo de ar, evitando que uma rajada desgovernada estrague todo o lote de aço, mas também garante que a Nyran não possa, num acesso de fúria, usar a gema solta como uma arma contra alguém do mocambo.”
Ela colocou as mãos nas alças metálicas do soprador, projetadas para canalizar sua mana. Fechou os olhos, respirou fundo e se concentrou. A gema no interior do aparato brilhou com uma intensidade repentina, e um rugido profundo e gutural encheu o conversor. um vendaval concentrado e incrivelmente quente que ela canalizava para dentro do vaso através de um tubo de ferro. O ar assobiava e uivava, um som assustador e poderoso, forçando a temperatura no interior a níveis impossíveis para qualquer fornalha comum. Sob aquele sopro mágico e tempestuoso, o ferro fundido do alto-forno, agora despejado no conversor, borbulhava violentamente. As impurezas — o enxofre, o silício — queimavam em um espetáculo pirotécnico de faíscas laranjas e brancas que jorravam da boca do vaso contra a penumbra do galpão.
Carlos observava, fascinado. Era uma fusão de magia e indústria, um atalho miraculoso que tornava o processo Bessemer muitas vezes mais eficiente. O calor radiante fazia o suor escorrer em seu rosto, e o cheiro metálico e agressivo do ferro purificado impregnava o ar.
Assim que o sopro de Nyran cessou, a equipe de Carlos entrou em ação. Com movimentos coreografados pela prática, eles adicionaram os fundentes de calcário. Então, veio o momento crucial. Carlos, da plataforma superior, deu a ordem.
— Agora, a liga spiegel! A liga de manganês!
Um trabalhador puxou uma alavanca, e o forno de cadinho, posicionado acima do conversor, inclinou-se. Um fluxo de metal brilhante e diferente — a liga spiegel que haviam produzido a partir da pirolusita — misturou-se ao conteúdo incandescente, corrigindo a química do aço e garantindo sua qualidade. O líquido, agora purificado e ajustado, foi então vazado em formas de areia, criando as primeiras barras de aço daquele lote. O metal deslumbrava, cintilando como água prateada e incandescente, até que, lentamente, começou a escurecer e solidificar, tomando a forma de centenas de barras regulares.
Carlos acompanhou a carroça que levava as barras recém-fabricadas, ainda irradiando um calor tremulo que distorcia o ar acima delas. O som metálico e cadenciado delas batendo umas nas outras ao balançar do veículo era uma música para seus ouvidos.
“Que bom que agora temos dinheiro,” pensou, seu caminho levando-o momentaneamente para perto dos novos currais. O cheiro de estrume fresco e feno era forte, mas vivo. Cavalos fortes bufavam, vacas mugiam placidamente, o grunhido satisfeito de porcos e o cacarejo incessante das galinhas preenchiam o ar. “Não são só ferramentas, são vida. Nos restaurantes e mercados, a carne vai ficar mais barata, acessível. E os cavalos… puxarão arados de aço, não mais de madeira. A agricultura vai dar um salto.” Seu peito encheu de um orgulho quente, mas a mente, insaciável, voou para o próximo desafio. “Agora só falta a Tassi. Se ela descobrir como usar a Gema da Grama para multiplicar alimentos… a fome pode se tornar uma lembrança amarga não só aqui, mas em todo o mundo.” Seu rosto se tornou sério. “Essa… essa informação é muito útil, talvez eu não devesse entrega-lá de graça, eu poderia usar isso nas conversas de paz…”
Enquanto esses pensamentos dançavam em sua cabeça, seus pés o levaram até um barracão novo, construído de concreto e aço, no coração da zona industrial. Ao entrar, o ambiente era diferente: o som predominante não era mais o rugido do fogo, mas o ritmo metálico de martelos batendo com precisão, o rangido agudo de metal sendo torcido, e o zumbido constante de máquinas. O cheiro do óleo de rícino queimado, pesado e acre, usado para lubrificar as engrenagens, substituía o odor de minério.
Lá, no meio do caos organizado, estava Nia. Seus dedos, sujos de óleo, traçavam linhas em um diagrama complexo, mas seu rosto iluminou-se ao ver Carlos, limpando as mãos instinctivamente em um trapo.
— Bom dia, Carlos! — ela cumprimentou, sua voz vibrante de entusiasmo cortando o ruído de fundo. — Finalmente! Está tudo pronto, todas as máquinas-ferramentas estão calibradas e testadas. Este barracão agora abriga o coração do futuro: uma fábrica capaz de produzir… outras máquinas a vapor!
Carlos não conseguiu conter um sorriso largo, sua energia contagiante encontrando a dela.
— Excelente, Nia! E eu trouxe o seu presente — brincou, apontando com o queixo para as barras de aço que começavam a ser descarregadas na entrada. — O aço de mais alta qualidade que já produzimos. Feito com o minério novo. Ele é todo seu.
— Perfeito! — Os olhos de Nia brilharam com uma luz tão intensa quanto as gemas que Nyran usava. Ela correu a mão sobre a superfície lisa e fria de uma das barras, um sorriso aberto e malicioso estampando no rosto. — A qualidade é sensacional. Presentear uma mulher com aço de primeira… é quase uma proposta, sabia? Tem certeza que não quer ser meu quinto marido?
Carlos, já mais do que acostumado com os avanços dela, limitou-se a dar uma tossida seca, abanando a cabeça com uma expressão entre o divertido e o resignado.
— Vamos… é, vamos é colocar essas máquinas para funcionar — redirecionou ele, o foco rapidamente retornando ao trabalho
Juntos, Carlos e Nia guiaram a equipe de trabalhadores especializados — homens e mulheres que haviam aprendido o ofício na oficina de Nia e entendiam a linguagem do metal. O processo de usinagem das peças da máquina a vapor era complexo, mas familiar.
Carlos explicava os princípios teóricos, apontando para os desenhos técnicos afixados na parede: — Lembrem-se, a tolerância aqui, no interior do cilindro, tem que ser mínima! — ele enfatizou, unindo o polegar e o indicador para mostrar uma folga ínfima. — Se tiver muita folga, o vapor escapa e perdemos toda a pressão. Imagina um balão furado; por mais ar que você sopre, ele não vai para lugar nenhum.
A comparação de Carlos voou sobre a cabeça da maioria. Balões de borracha coloridos até chegavam a ser vendidos em algumas lojas do mocambo, mas eram tratados como curiosidades sem função, objetos que as crianças observavam com um interesse breve antes de seguir adiante. Ainda assim, o respeito que todos nutriam pelo Chefe era tanto que ninguém questionou; limitaram-se a acenar com a cabeça, confiando que aquela imagem esquisita devia fazer sentido de algum modo. Do outro lado do barracão, Nia mal ouvira a explicação. Seu olhar percorria as linhas das máquinas com um brilho de orgulho materno, completamente absorta na beleza prática de suas próprias criações.
Ela apenas complementava imediatamente com a prática, suas luvas brilhando suavemente. Ela se aproximou de uma fresa a vapor, onde uma complexa engrenagem estava sendo cortada.
— É exatamente isso! — disse, fazendo com que todos se aproximassem para ver. — Vejam aqui, no corte dos dentes da engrenagem. Cada um tem que ser idêntico ao outro. — Sua mão esquerda, com a Gema do Ferro e do Fogo, passou sobre o metal, que parecia se ajustar levemente sob seu toque. — Senão, o encaixe fica imperfeito e a máquina trava. É preciso paciência e um bom ouvido.
As primeiras máquinas a vapor que saíram da linha de produção eram robustas, funcionais, mas visivelmente toscas. Faltava aquele polimento final, a assinatura de perfeição que só as mãos e a experiência de Nia podiam dar.
— Está bom, mas pode ficar melhor — ela murmurou, mais para si mesma do que para os outros. Colocando as mãos sobre o cilindro principal, as gemas em suas luvas brilharam suavemente. Sob seu toque, pequenas imperfeições pareciam se suavizar, o metal adquirindo um acabamento mais uniforme, como se estivesse sendo trabalhado por semanas em vez de minutos.
Ela olhou para a equipe, que observava com uma mistura de admiração e vergonha por seu trabalho inicial.
— Não se preocupem — disse ela, com um sorriso genuinamente encorajador. — Eu também comecei fazendo peças que pareciam ter sido mastigadas por um tatu. Aprendi na raça, errando. Vocês vão pegar o jeito muito mais rápido, eu prometo. Daqui a pouco, estarão fazendo máquinas melhores do que estas. — Ela deu um tapinha no casco de metal da primeira unidade. — Esta aqui é só a primeira de muitas.
Sob o comando de Nia, a equipe conectou a máquina a uma caldeira auxiliar. Após alguns minutos de aquecimento, uma nuvem de vapor branco jorrou de uma válvula, seguida por um assovio baixo e promissor. Então, com um trêmulo inicial, a engrenagem principal começou a girar. Lentamente no início, depois ganhando velocidade e estabilidade, seu ruído potente e constante — chuff-chuff-chuff — encheu o barracão. Era o batimento cardíaco de uma nova era, um som que falava de força, autonomia e um futuro forjado pelas próprias mãos daquele povo. Carlos e Nia trocaram um olhar, e sem uma palavra, souberam que tudo havia mudado.

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