Capítulo 107 - Heresia no Prato
O navio atracou com a discrição de um mercador, mas Dom Mateus Orsini desembarcou com os olhos de um avaliador de impérios. A primeira coisa que o atingiu foi o ruído — um coro constante de vozes, rodas rangindo, animais relinchando e o tinir metálico de ferramentas. A doca fervilhava como um formigueiro humano. Navios atracavam e partiam em intervalos assustadoramente curtos. Carroças formavam uma fila que se perdia de vista rumo ao interior, carregadas de fardos, barris e peças estranhas cobertas com lonas.
“Pelo visto a produção de aço realmente deu certo…” pensou ele, os dedos tamborilando no punho de sua bengala. “Essa papisa é mesmo incrível. Agora poderei descobrir todos seus segredos.”
Um sorriso fino lhe tocou os lábios enquanto observava dois estivadores carregando uma caixa de madeira que rangia com o peso de algo metálico dentro. O cheiro do porto — peixe salgado, água salobra e o aroma adocicado da cana — misturava-se a um novo odor: metal e borracha.
A comitiva oficial — ele e seus dois secretários, homens de rosto sério e roupas impecavelmente negras — foi recebida por uma irmã de hábito simples. O tecido, no entanto, tinha uma textura uniforme e resistente, diferente dos panos ásperos comuns.
— A paz esteja convosco, Dom Orsini — disse ela, com uma inclinação de cabeça precisa. — Sou a Irmã Luzia. Vossa Santidade sabia de sua chegada. Se me seguirem, os levarei ao complexo da Catedral para descansarem.
Enquanto subiam a calçada de pedras irregulares — limpas, ele notou, sem o lixo habitual das cidades portuárias — Orsini manteve o ritmo ao lado dela.
— Agradeço a hospitalidade, Irmã Luzia. Após deixar minhas coisas, pretendo conhecer um pouco da cidade. O cansaço da viagem se dissipa melhor com um passeio e uma refeição local.
A mulher lançou-lhe um olhar rápido, uma centelha de curiosidade passando por seus olhos castanhos antes de se apagar.
— Como preferir, Vossa Excelência. As portas do complexo estarão abertas. — Uma pausa quase imperceptível. — A cidade é… segura, mesmo para estrangeiros. Mas evite as docas após o anoitecer.
Ele acenou com a cabeça, já sabendo que seu pedido fora incomum. “Somente se conhece um papa pela cidade que governa e pelas vozes que nela ecoam”, pensou, enquanto observava o vai e vem das pessoas.
Além de Orsini e seus assistentes, desembarcaram mais doze “monges adicionais” — os olheiros de Henrique. Homens de olhos baixos e mãos calejadas de forma suspeita para copistas. Eles seguiram a Irmã Luzia com obediência bovina, claramente exaustos. Mateus os deixou ir sem um segundo olhar. Eram ferramentas descartáveis. Ele procurava a moeda real: informação não filtrada.
Sem pressa, Orsini mergulhou nas ruas de Santa Maria. A cidade respirava um ritmo diferente. O ar, embora quente e úmido, não carregava o fedor nauseante dos esgotos a céu aberto que ele conhecia de Lisboa ou mesmo de Nova Lusitânia. Em vez disso, um cheiro de terra molhada, pão fresco e, de vez em quando, um traço metálico e quente vinha de alguma oficina oculta.
“As pessoas daqui…” ele observou, caminhando devagar. “Parecem animadas. Cheias de vida.” Era verdade. Não via os rostos esgotados e resignados das cidades coloniais. Aqui, homens e mulheres — negros, mestiços, brancos — caminhavam com um propósito visível. As roupas chamavam sua atenção: vestidos e camisas de algodão bem cortados, tingidos com cores vivas — vermelho-terra, azul-anil, amarelo-oucre — que reluziam sob o sol forte. Nada de trapos.
Viu uma carroça passar, conduzida não por um homem, mas por uma mulher jovem, seu cabelo preso num lenço vermelho, as mãos firmes nas rédeas. Outra a seguiu, depois mais uma.
“Isso é… incomum”, murmurou para si mesmo. “Mulheres cocheiras? Viajando sozinhas?” A memória das últimas cartas lidas em Alba veio à tona: relatos de estradas no Nordeste brasileiro tomadas por bandidos e quilombolas fugitivos desde a expulsão dos holandeses. “Se as estradas ao redor são tão perigosas, como estas mulheres viajam em segurança?”
Sua curiosidade o guiou até uma praça ampla, batizada pela placa de madeira queimada como “Praça das Trocas Justas”. O burburinho era intenso, cheio de vozes negociando, risadas e o tilintar de moedas.
Parou diante de uma barraca onde um vendedor robusto, suando sob o calor, apregoava seu produto com voz de trovão.
— A panela que cozinha feijão em um terço do tempo! — ele bradava, batendo com uma colher de pau num exemplar brilhante. — Não derrama, não gruda e faz o tutu mais cremoso do Nordeste, graças à República! E eu ensino a usar, senhor! Sem risco de explodir a cozinha!
República. A palavra ecoou no ar como um trovão silencioso. Não era um sussurro conspiratório, mas uma afirmação natural, tão comum quanto “padaria”.
Um frio percorreu a espinha de Orsini. “Que república? Estou na colônia portuguesa do Brasil, não em Veneza.”
Aproximou-se, o tom cortês mas firme.
— Boa tarde, meu bom homem. Desculpe a ignorância, sou recém-chegado. Que república é essa que fabrica panelas tão engenhosas?
O vendedor o olhou de cima a baixo, os olhos estreitando-se ao notar a batina fina e os sapatos de couro importado. O estranhamento deu lugar a um brilho de oportunidade.
— Ih, o sinhô não ficou sabendo das novidades? O Ganga-Zala, o rei do Quilombo da Jabuticaba, aceitou um acordo com a Coroa e foi embora. Agora quem manda lá é o Carlos. Ele se declarou “Presidente da República do Brasil”. — O homem fez um gesto vago com a mão. — O que isso quer dizer, só Deus sabe. Mas o que importa é que são eles que fazem essas maravilhas de aço! Olha só o brilho!
Dom Orsini tinha uma centena de perguntas fervilhando na mente — sobre legitimidade, heresia, política —, mas seus olhos foram capturados pelo objeto. Ele pegou a panela que o homem lhe estendia. O peso era substancial, mas bem distribuído. A superfície interna era lisa como um espelho, refletindo a luz do sol e seu próprio rosto, distorcido.
“Aço”, pensou, atordoado. “Um material tão caro, tão difícil de trabalhar, cobiçado por ourives e fabricantes de armas mágicas… sendo usado para uma panela.” A carta de Paula falava em produzir aço, mas esta panela, segundo o vendedor, vinha do quilombo.
— É… impressionante — admitiu, passando o polegar pela borda perfeitamente lisa. — Quanto custa?
O sorriso do vendedor alargou-se, revelando um dente faltando.
— Para o senhor, um preço de amigo: trinta mil réis! Uma peça que dura décadas, hein? Vai passar para os netos!
“Trinta mil réis?” A mente financeira de Orsini calculou rapidamente. Por uma peça de aço de qualidade, era um preço insultantemente baixo. Na Europa, custaria cinco vezes mais, fácil.
— Está feito — disse, tirando a bolsa de couro presa ao cinto. “Uma amostra para estudar”, justificou para si mesmo, ignorando o fato de que nunca cozinhara na vida.
Enquanto contava as moedas, um movimento ao fundo chamou sua atenção. Uma carruagem diferente passava pela praça. Não tinha as rodas de madeira pesada e rachada típicas das colônias. Em seu lugar, rodas de um material preto e flexível, que rolavam quase em silêncio sobre as pedras. A carruagem, puxada por dois cavalos vigorosos, sumiu numa rua lateral antes que ele pudesse ver mais.
Sua curiosidade, agora completamente despertada, levou-o a seguir naquela direção. A rua desembocava num canteiro de obras barulhento. Homens escavavam o solo, outros despejavam carrinhos de mão cheios de cascalho e areia. Mas o que realmente o intrigou foi o que vinha depois: grandes blocos de uma pedra lisa e cinzenta eram assentados sobre a base, formando uma superfície plana e regular.
“Uma estrada de pedra? Mas que tipo de pedra é essa?” aproximou-se, observando os trabalhadores. O cheiro era de suor, terra úmida e um pó cinzento e acre que lhe fez comichar o nariz — cal, reconheceu.
Foi então que um aroma diferente invadiu suas narinas: gordura quente, pão fresco, especiarias e algo ácido e doce ao mesmo tempo. Um ronco gutural saiu de seu estômago, lembrando-o de que só comera biscoitos secos no navio.
Virando-se, viu o estabelecimento de onde vinha o cheiro. Uma placa pintada com cores vivas anunciaba: Restaurante do Preto: Saboreie a Autêntica Cozinha Quilombola!
“Mas que diabos…” murmurou, incrédulo. “Comida de quilombola? Servida num restaurante? Quem, em sã consciência…?” Sua mão tocou a panela de aço que ainda carregava. O objeto era frio e sólido, um testemunho da habilidade técnica daqueles “bárbaros”. “Bem”, pensou, cético mas faminto, “se são capazes disso, talvez a comida não seja veneno.”
A fome falou mais alto. Empurrou a porta de madeira, que tilintou um pequeno sino.
Dentro, o ambiente era simples mas limpo. Mesas de madeira rústica, bancos compridos. O cheiro era ainda mais intenso e tentador. Uma jovem de traços finos e cabelos presos num coque impecável — ela tinha um ar de nobreza caída em desgraça — aproximou-se com um sorriso profissional.
— Boa tarde, senhor! Bem-vindo à nossa estreia! Aqui servimos as iguarias mais modernas da República. É simples: pegue um prato, sirva-se no balcão e depois trazemos para pesar. O preço é pelo peso.
Orsini assentiu, ainda processando a novidade. Primeiro se aproximou de uma mesa e deixou sua nova panela em cima da mesa e depois seguiu para o balcão de comida e parou, surpreso. Diante dele estendia-se uma fileira de travessas de cerâmica com comidas que ele nunca vira. Massas de formas variadas — fios longos, laços, conchas — cobertas com molhos de cores diferentes. Um vermelho vivo e espesso chamou sua atenção.
“Macarrão? Pensava que trigo fosse caríssimo aqui…” Sua curiosidade gastronômica superou a prudência. Encheu seu prato com a massa vermelha — “Macarrão à Bolonhesa”, dizia a etiqueta — e levou-o ao balcão de pesagem.
A atendente, uma moça de rostos sardas e olhos vivos, pegou o prato.
— Boa escolha, sinhô. Esse é o favorito do chefe.
— Estas comidas… são realmente do quilombo? — perguntou ele, incapaz de conter-se.
A moça sorriu, parecendo animada por ter um cliente interessado.
— São sim, sinhô! O Preto, nosso dono, viveu lá um tempo e trouxe as receitas. Mas a história é boa, quer ouvir? — Como o fluxo de clientes havia diminuído, ela se apoiou no balcão, pronta para conversar.
Orsini, ainda desconfiado mas cativado pelo aroma do seu prato, assentiu.
— Pois então — começou ela, baixando a voz num tom conspiratório. — O Preto era escravo de um comerciante rico daqui. Um tal de Seu Almeida. Apesar da Santa Paula não gostar, ter escravo ainda não é crime na Cidade Sagrada, sabe como é… Enfim, esse Seu Almeida ficou sabendo da riqueza que era negociar com o quilombo e foi lá, levando o Preto junto. Só que quando os quilombolas viram um senhor de escravos, a coisa feia. Prenderam o Almeida e disseram que quem compra deles não pode ter escravo.
Ela fez uma pausa dramática, os olhos brilhando.
— Não só prenderam, como obrigaram o Almeida a libertar o Preto na hora! E ainda fizeram ele pagar uma indenização por todos os anos de trabalho! O comerciante voltou pra cá roxo de raiva, foi direto pedir à Papisa que convencesse o governador a atacar o quilombo.
— E ela? — perguntou Orsini, genuinamente intrigado.
— Ela? — A moça riu, um som leve. — Nem recebeu ele! Mandou dizer que problemas comerciais se resolvem no mercado. O Almeida ficou tão fulo que parou todas as doações à Igreja, pegou o que pôs e fugiu pra Areia Branca. Só que a esposa e a filha ficaram. — Ela inclinou-se mais. — E o Preto, agora com dinheiro, foi viver um tempo no quilombo, trabalhando nas cozinhas. Mas ele gostava mesmo era daqui. Diz que é por amor à Papisa, mas a gente sabe que é por causa da moça, a filha do Almeida. Assim que pôs o pé na cidade de novo, abriu este restaurante. Tá juntando dinheiro pra convencer a mãe da moça a deixá-lo casar com ela.
No início, Orsini estava interessado, mas a fome e o aroma do prato à sua frente falaram mais alto. Quando a moça finalmente terminou, ele pagou rapidamente e se sentou à mesa mais próxima.
A primeira garfada foi uma revelação. O macarrão estava al dente, perfeito. O molho — essa mistura vermelha e encorpada — explodia em seu paladar com um sabor rico, ligeiramente ácido, carnudo e herbáceo. Era profundamente satisfatório. Uma sensação de conforto que ele não experimentava desde sua infância em Nápoles.
“Isto… é divino”, murmurou para si mesmo, fechando os olhos por um instante. “Esse molho. Roubar essa receita valeria uma fortuna na Itália.” A ideia, embora absurda, fez um sorriso verdadeiro surgir em seu rosto.
Enquanto comia, passou a filtrar as conversas ao redor. Na mesa ao lado, dois homens de aparência artesanal conversavam entre golões de cerveja escura.
— …e o meu primo, que é carroceiro, jurou que viu com os próprios olhos — sussurrava o mais magro, com ar de importância. — No quilombo, tem máquinas grandes como casas que soltam vapor e gritam como demônios! Movem carrinhos cheios de pedra sem cavalo nenhum!
— Bah, conto de pescador! — respondeu o outro, mais cético, mordendo um pedaço de pão. — Eu ouvi coisa melhor. Armas que lançam bolas de ferro do tamanho de uma cabeça e partem árvores ao meio! Mas é tudo mentira, claro. Medo de preto é o que não falta.
— Shhh! — o primeiro olhou em volta, nervoso. — Fala baixo, seu louco! Não sabe que a Papisa é amiga desses… empreendedores?
Orsini limpou a boca com o guardanapo de pano, a mente trabalhando rapidamente. Máquinas a vapor. Armas de cerco avançadas. Tudo vindo de um quilombo autodeclarado república.
“Interessantíssimo”, pensou, os olhos perdidos no fundo de seu prato vazio, onde apenas um fio de molho vermelho manchava a faiança branca. O burburinho do restaurante, os cheiros de comida, tudo parecia se afastar enquanto sua mente focava no que ouvira. Máquinas que soltavam vapor. Armas que partiam árvores. Um quilombo que se chamava de república.
Ele deixou a colher cair no prato com um tilintar suave.
“Henrique se engasgariam com a heresia política”, refletiu, um sorriso ácido tocando seus lábios. “Chamar um bando de escravos fugidos de ‘República do Brasil’… é um insulto à Coroa Portuguesa, à Santa Igreja, à própria ordem natural das coisas.”
Levantou o copo de água, observando a luz se refratar no vidro limpo. Sua expressão se tornou calculista, os olhos estreitando-se.
“Mas a mim…”, sussurrou para si mesmo, o som quase abafado pelo ruído ambiente, “…interessa-me o poder prático. O que essas máquinas podem fazer. O que essas armas podem destruir. O que esse aço pode construir.”
Um plano começou a tomar forma em sua mente, não como um lampejo, mas como uma equação sendo resolvida com paciência de ourives. Peça por peça. Frio. Calculista. Lucrativo.
Ele recostou-se na cadeira de madeira, que rangiu levemente sob seu peso. O barulho súbito o trouxe de volta ao presente. Olhou em volta. Ninguém prestava atenção nele. Era apenas mais um estrangeiro comendo.
“Talvez eu não precise de ameaças”, considerou, os dedos tamborilando na mesa. “Ameaças são para mentes pequenas, como a de Henrique. Eu ofereço… negócios.”
Agora, a linha de raciocínio fluía clara:
“Paula está numa posição delicada agora. Uma vez que essa ‘república’ foi anunciada, ela não poderá manter abertamente a aliança e o comércio com esses quilombolas. Não sem parecer uma traidora da Igreja e da Coroa. Ela precisará de um aliado influente… de um intermediário.”
Seus olhos brilharam com uma luz fria.
“E se eu… me oferecesse para ser esse intermediário?”
A ideia ganhava corpo, tentadora. Ele imaginou-se escrevendo ao Papa, não com denúncias, mas com uma proposta.
“Posso convencer o Alba a fechar os olhos — ou melhor, a abri-los para o lucro — se essa tal república concordar em vender à Igreja os métodos para fabricar o aço, e não apenas as panelas prontas. Os segredos. Os projetos das máquinas. E, claro…”, ele fez uma pausa mental, o coração batendo um pouco mais rápido com a ambição, “…alguns protótipos dessas armas e engenhocas a vapor. Claro, se forem tão boas quanto dizem os boatos.”
Um último pensamento, prático e cínico, completou o raciocínio:
“E se não forem? Bem, então a Igreja terá perdido apenas um pouco de tempo. Mas se forem… então o futuro estará nas mãos da igreja, e talvez eu seja o próximo Pontífice Supremo.”
Seu raciocínio foi interrompido por uma nova placa, pendurada perto do balcão: Sobremesas Exclusivas: Pudim de Coco Caramelado & Cocada Cremosa.
Um último ronco, mais suave, saiu de seu estômago. Um sorriso surgiu em seus lábios.
“Bem”, pensou, levantando-se e pegando novamente seu prato. “A investigação deve ser completa. E quem sabe… não descubro mais algum segredo útil entre uma colher de doce e outra.”

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