Índice de Capítulo

    As perenes ficavam além do trecho mais aberto. O vento cortava mais ali e entrava por baixo da roupa, achando as frestas como se conhecesse o corpo dele.

    O embrulho maior vinha preso no peito por duas tiras, ao lado da bolsa com o cetro. Pano grosso, nó apertado, cheio de vidro dentro. O menor ficava amarrado por cima, mais firme ainda.

    “Você escolheu o pior dia pra carregar coisa frágil.”

    — Eu escolhi o dia que eu tenho.

    Marco seguiu sem olhar pra trás. O machado batia na perna, preso pela alça. Cabo gasto, lâmina boa, feita pra abrir gente e madeira com a mesma falta de delicadeza. Em Ga-el, aquilo existia em todo canto.

    Ele passou entre pedras e raízes, medindo o caminho com o pé antes de botar peso. Não podia escorregar, não podia cair. A floresta não estava interessada no plano dele.

    O cheiro de resina subia quando ele pisava em galho quebrado. O chão estava firme e seco, com folhas duras e agulhas de pinho que grudavam na sola.

    Ele encontrou uma árvore pequena num ponto onde o vento batia menos. Não era a mais cheia, não era a mais reta, mas era a que dava pra carregar sozinho.

    Marco parou, estudou o tronco e olhou pro alto. Calculou a queda, o espaço, onde que ia bater primeiro. Levantou o machado e ajustou as tiras do embrulho uma última vez, puxando o pano pra cima, mais colado no peito.

    O machado ficou pronto na mão.

    Um ruído baixo, rápido, veio da base.

    Marco travou. Não girou o corpo todo. Só varreu em volta com os olhos, devagar, procurando movimento onde não devia ter. Deu um passo pra trás e achou a origem.

    Um mamífero pequeno disparou pra cima dele, agressivo, sem hesitar. Dente, unha, cheio de raiva crua. Marco girou o machado no último instante, não pela lâmina, pelo cabo.

    Ele deixou o embrulho fora da linha e encaixou a madeira entre os dois. O impacto subiu pelo braço e bateu no ombro. O vidro reclamou num tilintar abafado, e Marco travou o antebraço contra o pano, segurando tudo no lugar.

    As unhas acharam uma fresta onde o cabo não fechou. Rasparam a manga, entraram na pele e abriram um risco comprido no antebraço. O sangue apareceu na hora, quente demais praquele vento, escorrendo até o punho e manchando a madeira.

    Marco apertou o cabo. Não olhou.

    O bicho tentou morder a perna dele.

    Marco empurrou de lado com o cabo, sem bater. Só negou a linha e cedeu espaço. O animal voltou mais perto, insistindo, teimoso, com o mesmo ódio.

    Marco repetiu a defesa. Não chutou, não esmagou. O machado ficou ali como cerca, não como arma.

    Ele recuou mais um passo e ouviu.

    Um som fino, frágil, vindo debaixo da raiz. Um movimento pequeno demais pra vento, pequeno demais pra folha.

    Marco baixou os olhos e achou a entrada do ninho. Um buraco entre raízes e terra dura. Pontos se mexendo lá dentro, rápidos, escondidos.

    A mão dele apertou o cabo do machado, mas a lâmina continuou alta.

    — Tá. Entendi.

    Ele começou a se afastar, lento, medindo o chão. O mamífero não recuou. Ficou entre ele e o ninho, peito subindo e descendo rápido, pronto pra morrer ali.

    Marco não tinha vindo pra matar nada. Tinha vindo pra cortar madeira e fingir que uma noite podia mudar alguma coisa.

    Um peso maior entrou no bosque.

    O som não era de passo, era de arrasto. Casca raspando, folha esmagada, um corpo comprido abrindo caminho no chão.

    Marco sentiu antes de ver: a pele atrás do pescoço avisou.

    A serpente apareceu no limite entre as árvores. Grossa, do tamanho de Marco em comprimento, cabeça baixa, língua testando o ar. O olhar prendeu na raiz.

    O alvo era óbvio: o ninho.

    Marco entrou na frente sem pensar. Virou o machado na mão, cabo à frente, lâmina pra trás, e tomou a linha entre a serpente e a entrada. Firmou o pé no chão e prendeu o embrulho com o antebraço, como se estivesse segurando uma costela no lugar.

    O mamífero pequeno travou por um instante. Depois a fúria trocou de direção. Ele largou Marco e foi na serpente.

    Entrou pelo lado, cravou os dentes e saiu antes da cabeça virar. Voltou pela outra lateral, rasgou espaço com as unhas e sumiu de novo pra fora do alcance.

    Marco não tinha velocidade pra acompanhar aquilo, mas tinha alcance. Tinha posição, tinha a obrigação de não cair.

    A serpente respondeu na hora.

    O corpo fez um arco no chão, enrolou meio giro e disparou a cabeça como uma mola. A boca abriu grande, direto na altura do ombro dele.

    Marco enfiou o cabo no caminho do bote.

    O impacto sacudiu o braço inteiro. A cabeça desviou meio palmo do peito dele e bateu na madeira com um estalo seco. Marco perdeu meio passo, calcanhar raspando na terra, mas segurou.

    O embrulho tilintou outra vez. Um aviso. E o arranhão no antebraço ardeu junto, lembrando que a pele já tinha pago a entrada.

    O mamífero entrou no mesmo instante, cravou os dentes entre escamas e saiu. A serpente girou tentando alcançar e mordeu só ar.

    Ela não desistiu.

    A cauda varreu baixo e quase levou o joelho de Marco. Ele saltou pra trás sem baixar o corpo, sem deixar o peito ir pro chão. O pacote bateu contra as costelas e ele travou o antebraço com força, segurando o pano.

    A cabeça veio de novo, mais rápida, mirando o rosto.

    Marco encaixou o cabo no ângulo e empurrou de lado, braço travando. A boca passou perto o bastante pra ele sentir o bafo quente e o chiado da língua.

    O próximo bote não ia errar.

    O machado não podia descer. Um golpe errado ia atingir o ninho. Um golpe forte demais podia desequilibrar ele. E desequilíbrio, com vidro preso no corpo, era o fim da noite.

    A mão livre abriu.

    — Materialização de Essência: Esfera de Chamas.

    A essência subiu e fechou na palma. A bola apareceu viva, girando, luz batendo nas escamas. Calor contido, obediente.

    A serpente atacou no mesmo segundo, boca aberta.

    Marco lançou a esfera na cara dela.

    O fogo estourou no focinho e subiu pro olho. O ar chiou. A cabeça deu um tranco pra trás, sacudindo. O corpo inteiro se contorceu no chão num arrasto brutal, abrindo espaço sem querer.

    O mamífero aproveitou a brecha e entrou de novo, rasgando o flanco e saindo antes da cauda voltar.

    Marco avançou meio passo, só o necessário pra empurrar o recuo. O machado subiu como ameaça, lâmina guardada.

    A serpente cedeu.

    Recuou em arrasto, rápido, cabeça baixa, fugindo do calor e do alcance. Mais um metro, mais outro, até escolher a direção mais fechada e sumir entre as árvores.

    Marco não correu atrás.

    Ele ficou ali, peito subindo e descendo, sentindo o pano pressionar a respiração. O sangue do antebraço já tinha descido até a mão. A madeira do cabo estava escura e lisa, querendo escapar.

    Marco passou a palma no embrulho sem abrir, só conferindo com pressão. Nada cedeu ou estalou. O mamífero pequeno voltou pro ninho e sumiu na raiz, ainda olhando pra ele como se ele fosse mais um problema.

    Marco manteve distância. Não esticou a mão, não tentou contato. Só esperou o silêncio voltar pro lugar.

    Quando o bosque assentou, ele olhou a árvore escolhida.

    Ela ainda estava inteira.

    Ele poderia cortar ali mesmo.

    Marco olhou pra raiz, olhou pro buraco do ninho. Olhou pro chão onde ele teria que firmar o pé.

    Guardou o machado no ombro.

    — Não.

    Ele recuou devagar, sem virar as costas de uma vez, e saiu dali pelo mesmo caminho, medindo cada passo.

    Mais adiante, numa área mais aberta, ele achou uma perene caída, partida na base. Galhos ainda verdes, resina viva, tronco leve o bastante pra ele arrastar sem fazer o corpo brigar com o vidro no peito.

    Marco cortou só o necessário. Golpe limpo, sem exagero. Um galho caiu, outro caiu. Serviria.

    O sol já estava sumindo quando ele amarrou o tronco com uma corda simples e jogou no ombro. Ajustou o embrulho no peito outra vez e começou o caminho de volta.

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