Índice de Capítulo

    O motorista, um homem negro de cabelo castanho liso, parou o carro junto ao meio-fio e avaliou a cena. Uma mulher sozinha, encostada na parede de uma boate, iluminada pelo néon que piscava irregularmente. Mesmo com a janela fechada, o cheiro adocicado e ácido de álcool chegava até ele, impregnando o ar noturno.

    — Você é a Jaqueline? — perguntou, mantendo o tom profissional.

    A mulher ergueu a cabeça com dificuldade, os olhos vidrados.

    — Aham… — murmurou, a voz pastosa.

    “Está completamente bêbada”, pensou o motorista, Carlos, com um misto de pena e preocupação. “Espero que não vomite no meu carro.”

    Ele a observou enquanto ela cambaleava em direção ao carro, abriu a porta e se acomodou pesadamente no banco do passageiro. “Normalmente as mulheres confirmam a placa e a minha cara antes de entrar. Mas essa aí já perdeu a capacidade de pensar.”

    Mal havia fechado a porta, ela pareceu ter um lampejo tardio de prudência.

    — É o Carlos?

    — Sim, sou eu, Jaqueline. Qual é o código de segurança? — ele perguntou, seguindo o protocolo.

    A mulher olhou para ele, confusa, como se ele tivesse falado em aramaico. Então, baixou os olhos para o celular, os dedos desajeitados tentando navegar pela tela. Para Carlos, aqueles segundos se arrastaram como minutos, com o cheiro de álcool se intensificando dentro do carro. Impaciente, ele baixou todas as janelas, deixando a brisa noturna entrar.

    — Quatro… um… oito… um… — ela soletrou, finalmente.

    Carlos inseriu o código no aplicativo e pôs o carro em movimento, sem dizer uma palavra. “Normalmente puxo conversa, mas com esse estado aí é perda de tempo. Já são duas da manhã, só quero terminar essa corrida e cair na cama.”

    Seus olhos, cansados e melancólicos, percorreram as ruas vazias. A cidade dormia, mas sua mente estava alerta, remoendo velhas frustrações. “Fui o primeiro da família a fazer faculdade. Todo mundo esperava grandes coisas de mim… E olha onde eu vim parar.” Um prédio em construção chamou sua atenção, não pela estrutura, mas pelo outdoor na frente. “Construtora Ferreira Garcia”. Três nomes estavam listados como engenheiros responsáveis: Renato, Eduarda e Fábio Ferreira Garcia.

    “Não acredito… Os dois piores alunos da minha turma, os que colavam em toda prova, são os únicos que conseguiram trabalhar na área.” Um amargor subiu pela sua garganta. “Claro, o pai deles tinha a firma. Quem manda é o Q.I., Quem Indica. Fui um ingênuo. Achei que estudar e trabalhar duro fosse suficiente. Enquanto eu ralava como garçom de dia e me arrasava de estudar de noite, os ‘filhinhos de papai’ herdavam o trono.”

    A amargura era um gosto familiar em sua boca. Ele seguiu a rota do aplicativo no piloto automático da exaustão, até que uma voz fraca o trouxe de volta à realidade.

    — Moço, é logo ali na minha ca… — A frase foi interrompida por um som gutural. Um cheiro azedo e doce encheu o carro instantaneamente. Jaqueline tentou se inclinar para a janela, mas foi tarde. O vômito jorrou, atingindo a porta e o chão do carro, escorrendo em fios pegajosos.

    — Moço, me desculpa… — sussurrou ela, a voz fraca e envergonhada.

    Carlos suspirou, muito cansado para sentir raiva.

    — Tudo bem. É aquela casa ali, né?

    — Sim… Se eu tivesse mais dinheiro, te daria uma gorjeta…

    — Não se preocupe com isso.

    Ele deu a volta no quarteirão e estacionou em frente à casa. A corrida já estava paga. Jaqueline desculpou-se mais uma vez e saiu do carro, cambaleando como um marinheiro em terra. Carlos não saiu. Ficou observando, um hábito que adquirira para garantir que passageiros vulneráveis chegassem em segurança. Ela vasculhou a bolsa interminavelmente até encontrar a chave do portão. Abriu-o com dificuldade, deu alguns passos, lembrou-se de trancá-lo e voltou. Depois, repetiu a busca caótica pela chave da casa. Carlos segurou a respiração. “Não quero nem imaginar o que poderia acontecer com uma mulher nesse estado, desmaiada na calçada.”

    Finalmente, a porta da casa se abriu e ela desapareceu lá dentro.

    Carlos colocou o carro em marcha. O fedor de vômito era insuportável, mesmo com as janelas abertas. A brisa noturna apenas espalhava o odor, sem dissipá-lo.

    — Mais um dia miserável, nessa vida miserável — resmungou para si mesmo.

    “Se eu pudesse voltar no tempo… Escolheria outra faculdade, uma que não fosse um beco sem saída. Só queria ter conseguido comprar uma casa para a minha mãe. Retribuir um pouco do que ela fez por mim.”

    A frustração e o cansaço se transformaram em uma imprudência silenciosa. Ele começou a acelerar, tomando as curvas com mais velocidade do que o habitual. A ânsia de escapar daquele cubículo fedorento, de chegar em casa e enterrar o rosto no travesseiro, era um ímã puxando seu pé para o acelerador.

    Ao virar uma esquina para a avenida principal, ele não viu o caminhão. Ou viu, mas foi tarde demais. O monstro de aço vinha na contramão, suas luzes altas cegantes como sóis gêmeos. Não houve tempo para desviar, nem para frear. Tudo o que Carlos viu foi uma explosão de luz branca, lavando sua visão, invadindo seus sentidos. Ele fechou os olhos, instintivamente, seu corpo todo se tensionando para o impacto que certamente viria.

    Mas o impacto não veio.

    Em vez do metal retorcendo, veio uma sensação de vazio. O banco do carro simplesmente desapareceu sob ele. Ele caiu, de repente e sem cerimônia, em um chão frio e úmido. O baque foi seco, e ele sentiu a terra sob suas mãos, que instintivamente haviam protegido a cabeça.

    Ele abriu os olhos.

    Escuridão. Absoluta. Uma escuridão tão profunda que ele não conseguia ver suas próprias mãos à frente do rosto.

    “Eu morri? É assim que é?”

    Ele se levantou, trêmulo, e então seus olhos foram capturados. O céu. Nunca, em toda a sua vida na cidade grande, ele tinha visto um céu como aquele. Um manto negro cravejado de diamantes, tantas estrelas que era difícil distinguir as constelações. A Via Láctea se estendia como um rio leitoso e brilhante através do firmamento. O assombro, no entanto, durou apenas um instante, rapidamente substituído por um frio na espinha.

    “Que porra é essa? Meu carro? O caminhão? A cidade sumiu! Onde eu estou?”

    Uma brisa gelada acariciou sua nuca, levantando os pelos de seus braços. “Um sonho? Mas é tão real…” Ele se beliscou no braço, com força. A dor foi aguda e imediata. “Não é um sonho.”

    “Fui teleportado para o meio do nada? Ou… para outro mundo?” Um fio de esperança, irracional e fantástico, brotou em seu peito. “Se for… tomara que seja um daqueles mundos de fantasia. Com magia, dragões… uma chance de recomeçar, ser alguém.” Ele respirou fundo, tentando se acalmar. “A única coisa que me prendia ao mundo era a minha mãe, e ela se foi. Talvez… talvez isso seja uma oportunidade.”

    Foi então que ele viu. Pontos de luz laranja, cintilando ao longe, como fogueiras dançantes.

    “Pessoas! Talvez elas saibam onde estou.”

    Cauteloso, ele começou a caminhar em direção às luzes, tropeçando em raízes e pedras no escuro. Conforme se aproximava, percebeu que as luzes não eram estáticas. Eram chamas. E se moviam.

    “Isso não são luzes… é fogo! Mas que tipo de fogo?” O medo o fez desacelerar. “Melhor tomar cuidado.”

    Quando estava a uns vinte metros, uma figura emergiu das sombras. Uma mulher negra, alta, de cabelo curto, vestindo roupas simples e grosseiras de algodão. Ela correu em sua direção, seus olhos arregalados de urgência.

    — CORRA! — ela gritou, a voz um misto de raiva e desespero. — Ou os capitães do mato vão pegar você também!

    Carlos congelou, confuso. Então, ele viu. As “fogueiras” eram, na verdade, homens montados a cavalo. Um deles, um homem barbudo com um chapéu de vaqueiro, empunhava um arco. Mas não era um arco comum. Da corda, ele puxou uma flecha feita de fogo puro, que crescia e brilhava com intensidade sinistra.

    O instinto de sobrevivência falou mais alto. Carlos se virou e correu.

    Ele não viu o homem soltar a flecha. Senti-u o calor primeiro, um sopro de forno no calcanhar. A flecha de fogo explodiu no chão, logo atrás de seu pé esquerdo. A sola de seu tênis derreteu parcialmente, e a queimadura latejou através do tecido.

    “Mágica! Isso foi magia de verdade!” Seu coração batia descontroladamente. “Saí de um pesadelo para cair em outro! Estou com saudades do maldito cheiro de vômito!”

    Os cavaleiros fecharam o cerco. Eram dois. Um homem mais velho, Sebastião, e um rapazinho, João, de não mais que quatorze anos.

    — Seu Sebastião — o garoto falou, apreensivo, a mão no cabo de um chicote de cipó que tinha uma gema parda. — Num é melhor tomar cuidado pra não esturricar a mercadoria?

    — Fica quieto e aprende, moleque! — Sebastião rosnou, ajustando a mira com seu arco, que possuía uma gema alaranjada incrustada. — Desde que o negro ainda possa trabalhar, o patrão não reclama. To controlando as chamas. Aquele outro, a tal da Tassi, some no breu, mas esse aí é mais manco que rato bêbado. É só meter a porrada que a cadela aparece. O sinhô paga uma nota por ela. Fica ligeiro, ela tá por perto.

    João olhou para as roupas estranhas de Carlos — a camisa branca, o jeans.

    — Mas, sinhô, esse cabra tá vestido mó esquisito. Acho que num é dos escravos do sinhô do engenho não…

    — E daí, pivete! Negro é tudo igual, cê num tá vendo? Negro bom é negro no tronco!

    Enquanto isso, Carlos corria, ofegante, seu braço latejando de dor onde uma centelha o atingira. “Eles estão me caçando por esporte! Nem estão correndo de verdade!”

    Escondida entre as sombras, Tassi assistia, conflituosa. “Devo sumir… Mas foi minha culpa que o acharam. Como ia imaginar que teria um idiota andando no breu a esta hora?”

    Sebastião, vendo Carlos cambaleando, decidiu forçar a mão. Ele puxou o arco e uma flecha de fogo grossa como um braço se formou, iluminando a noite com uma luz ameaçadora.

    — Aparece logo, sua macaca! — ele rugiu para as sombras. — Se não, a gente vai deixar esse nego aí mais torrado que carvão!

    Um farfalhar de folhas. Sebastião girou e disparou uma flecha menor e mais rápida em direção ao som. Tassi tentou se esconder, mas a flecha de fogo acertou seu pé, fazendo-a gritar de dor. No entanto, ela conseguira lançar uma pedra, que atingiu Sebastião na sobrancelha, abrindo um corte profundo.

    — PORRA! — ele gritou, segurando o rosto ensanguentado. — O que você tá olhando, moleque? Captura essa macaca!

    João, assustado, pegou um laço de cipó de sua cintura e o lançou ao chão. Como uma serpente, o cipó sumiu na terra e reapareceu aos pés de Tassi, enrolando-se em suas pernas e tronco com velocidade assustadora, imobilizando-a.

    Sebastião desceu do cavalo, ensanguentado e furioso. Caminhou até Tassi, que estava agora indefesa no chão, e desferiu um soco brutal em seu rosto.

    — Sua vagabunda! — ele cuspiu, puxando-a pelo cabelo. — Você tem sorte que o patrão paga bem por você inteira!

    Ele a jogou de volta no chão. Ela caiu de lado, gemendo, os braços ainda presos pelos cipós.

    Sebastião então olhou para onde Carlos estava. O espaço estava vazio.

    Ele ficou irritado por um segundo, mas um sorriso cruel se desenhou em seu rosto ensanguentado. Ele se virou para Tassi.

    — Ha ha ha! Viu só? Teu cúmplice te deixou pra morrer que nem cachorro sarnento!

    A expressão de Tassi não se alterou, mas antes que Sebastião pudesse continuar sua tortura, uma pedra voou da escuridão e acertou sua nuca com um baque seco. Ele gritou de dor e surpresa, caindo de joelhos. Carlos emergiu das sombras, movido por uma adrenalina desesperada, e se jogou sobre o capitão do mato, chutando sua barria e costas repetidamente.

    — CUIDADO! — o grito de Tassi ecoou.

    Carlos tentou se virar, mas foi tarde. O laço de cipó de João envolveu seus braços e tronco, apertando como uma cobra constritora. Ele lutou, mas era inútil. A última coisa que viu foi o cabo do chicote de Sebastião vindo em direção à sua cabeça. Então, apenas escuridão.

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