Capítulo 10 - Tassi Hangbé

Carlos estava aproveitando seu único dia de descanso na semana para falar com Tassi e obter mais informações sobre este mundo.

— Me diga, ser adepto de usar gemas mágicas é algo raro?

Tassi suspirou e pensou: “Primeiro ele me fala de seu plano imbecil, agora ele faz uma pergunta idiota dessas?”.

— Pelo que fiquei sabendo você entende de muitas coisas como artefatos do diabo, então pensei que você fosse uma pessoa de vários conhecimentos. Deveria saber algo simples assim.

— Digamos que sou uma pessoa que veio de muito longe. É um lugar tão longe que nem existem gemas mágicas?

— De novo isso. Não precisa mentir assim para mim. Que tal assim, te falo minha história e você me fala a sua?

“Tenho que mentir porque se te falasse a verdade você nem acreditaria!”

— Vou pensar no seu caso, mas primeiro me fale sobre as gemas mágicas.

— Tudo bem. Raro não é, na verdade é algo comum até.

— Quão comum é? Digamos que dentre 100 pessoas que nascem, quantas delas vão poder usar gemas mágicas? E dentre 100 adeptos de gemas mágicas, quantos deles podem usar mais de um tipo de gema mágica? E tem gente que pode usar mais do que dois tipos de gemas mágicas?

— Depende. Estamos considerando as gemas mágicas inúteis ou não?

— Como assim, tem gemas mágicas inúteis?

Tassi rolou os olhos e disse:

— Você não sabe de nada mesmo.

“Claro que não sei! Sou de outro mundo! Você era muito mais legal quando não podia falar!”

— Sim, na verdade a maioria delas é assim. Apesar de a chamarmos de inúteis, a realidade é que para muitas delas não descobrimos como podemos utilizá-las. Toda gema útil que tivemos, um dia já foi considerada inútil. E claro também tem as que já descobrimos seus usos, só que não são realmente muito úteis. Por exemplo, a gema do fogo é bem útil para atacar alguém, já a gema do metal só consegue fazer o metal rotacionar, o que não é muito útil, só acaba sendo útil para carpinteiros.

“Ué, isso me parece bem útil. Além disso, não dá pra fazer tipo uma motosserra e ir atacando seus inimigos?”

— Certeza que não dá pra usar como arma? Imagino que uma serra afiada girando pode ser bem útil para matar inimigos.

— Ha ha ha, você realmente não é daqui. O problema da gema do metal é que você tem que tocar numa área bem próxima da gema para ativar seu poder. Ao contrário da maioria das gemas onde você pode apenas tocar em qualquer lugar do artefato mágico para que seu poder seja ativado, e com algumas gemas da pra até fazer a ativação acontecer depois de um tempo determinado como é o caso da gema de fogo. Por conta disso, a gema de fogo é considerada a mais versátil e melhor ainda, dentre as gemas úteis, é a mais comum de se encontrar um adepto de seu poder.

— Mas, claro, às vezes dá para fazer isso também com a gema de metal, nós apenas não descobrimos como fazer isso ainda.

— Ué, não dá para aplicar o mesmo princípio usado nas gemas de fogo nas gemas de metal?

Tassi balançou a cabeça e falou: — Infelizmente não, cada gema tem formas diferentes de serem ativadas e usadas. Por conta disto, quando alguém descobre como usar uma gema mágica, mantém o segredo guardado a sete chaves. Por exemplo, a família real espanhola, descobriu como usar as gemas do vento para conseguir acelerar seus navios em alto mar, o que faz da marinha espanhola a mais rápida do mundo.

“Então não é algo universal. Que complicado.”

— Respondendo à sua questão inicial. 10 a 20 pessoas podem usar gemas mágicas a cada 100. Talvez até mais, infelizmente não fazemos testes para descobrir quantas pessoas são adeptas a usar gemas mágicas inúteis.

— E quanto se trata de gemas mágicas úteis, são por volta de 2 a cada 100, não, um seria muito pouco. 3 a cada 100, acho que aí seria muito. 

— Entendi, então 2,5 a cada 100 pessoas podem usar gemas mágicas.

— Como assim? Não dá pra ter metade de uma pessoa, vai cortar ela ao meio?

— Ha ha ha. Não é isso, é como você mesmo disse 2 é pouco e 3 é muito. Porque de vez em quando a cada 100 pessoas você acha uma que pode usar gemas mágicas, e de vez em quando acha duas, logo 2,5.

— Acho que entendi… E quanto a sua questão de quantas pessoas podem usar mais de uma gema mágica, diria que metade das pessoas que podem usar gemas mágicas, podem usar mais de uma gemas mágica. Metade das pessoas que podem usar duas gemas mágicas, podem usar até três gemas mágicas.

Tassi parou de falar um pouco, respirou e continuou: — Então de 100 adeptos de gemas mágicas, 50 podem usar duas gemas mágicas ou mais e dessas 50, 25 podem usar três gemas mágicas ou mais e assim por diante.

Quanto Tassi terminou de falar parecia que estava saindo fumaça da cabeça dela.

“Entendo. Até que sabe bastante. Então quer dizer que existem pessoas apelonas assim que podem usar várias gemas mágicas. Me lembro dos capitães do mato, um lançava flechas de fogo e outro controlava videiras. Agora imagine alguém que pudesse usar os dois. Espera aí, será que se uma pessoa tivesse ambos os poderes, poderia fazer videiras flamejantes? Só de pensar nisso me dá calafrios.”

— Dá para combinar os poderes?

— Claro, mas é difícil, pois o artesão mágico tem que entender ambas as gemas mágicas. Você já me viu usando o cajado para fazer as plantas crescerem né, pois bem, aquele artefato mágico usa a gema da terra e da grama combinadas para fazer com que as canas de açúcar cresçam e continuem boas para serem usadas para fazer açúcar.

— Mas quando fomos atacados pelos capitães do mato, eles também conseguiam fazer as plantas crescerem, mas parecia que cada um deles só usava uma gema.

— Bem notado, a planta da grama pode fazer plantas crescerem, mas as plantas não duram muito tempo e além disso seus frutos não tem gosto de nada e não matam a fome, é como beber água do mar para saciar a sede. Se usasse apenas a gema da grama nas canas de açúcar seria impossível fazer açúcar, aí que entra a gema da terra, com o poder desta gema é possível controlar a terra e também deixar o solo mais fértil. Mas saiba que com aquele cajado que uso, apenas é possível fazer as plantas crescerem mais rápido e dar nutrientes, não posso fazer mais do que isso.

— Nossa que apelação. Imagina alguém que pudesse usar cinco gemas mágicas e pudesse combinar elas.

— Não sei o que é apelação. Mas não é tão simples assim, porque para cada gema mágica que a pessoa usa, vai precisar de uma arma mágica. E a pessoa pode até ser adepta de 5 gemas mágicas, mas não é fácil carregar 5 armas mágicas. Claro que tem armas como meu cajado que combinam com as gemas mágicas, mas isto é raro até porque é difícil combinar os poderes de várias gemas mágicas. Além de que as gemas mágicas que a pessoa pode usar são mais importantes que a quantidade.

— Por exemplo, já enfrentei oponentes que usavam até 5 gemas mágicas que foram bem mais fáceis de lidar do que um oponente que usava 3 gemas mágicas. Isso porque usava a gema da terra, do fogo e da força, estas gemas são muito úteis.

— Ele usava uma pulseira na perna com uma gema da terra que permitia erguer paredes de terra para sua defesa, como criar buracos para nos atacar e até mesmo lançar poeira para bloquear nossa visão. Também conseguia nos atacar com flechas de fogo, que lançava atrás da poeira. E se tudo isso ainda não fosse o suficiente, também era mais rápido e forte por conta da gema da força que usava como colar, aliás, por si só um oponente com esta gema já é muito formidável, mas em combinação com as outras virou um monstro. Se não bastasse tudo isso, tinha muita mana em seu corpo.

“Pelo visto já lutava antes de virar escrava, por isso deve ser tão durona na frente do velho do engenho.”

— Isso sim que é apelação, e como você ganhou?

— Não foi fácil, ficava erguendo muralhas de terra para me defender e fazia buracos de terra onde estava para tentar derrubá-lo, mas por também usar a gema da terra, entendia está tática muito bem, então isto não dava muito certo. Só conseguia segurá-lo com as videiras que controlava com cajado da grama e por conta da força logo escapava.

“Nossa parece avatar, que foda, como queria ter um poder assim. A Tassi realmente parece ser alguém incrível, mas pelo o que está falando, não parece que foi aqui no Brasil que aconteceu isso.”

— Era apenas uma pessoa, e nós éramos cinco e mesmo assim estávamos perdendo, duas de nós até foram mortas, uma caiu num buraco que ele criou, e na mesma hora fechou o buraco a esmagando. A outra estava no meio da poeira tentando desviar das flechas de fogo, quando, através da poeira ele aparece e a corta no meio com a espada que usava, tamanho poder vinha da gema da força. Foi uma luta dura, mas no fim conseguimos capturá-lo, só fizemos isso porque estávamos em maioria e conseguimos esgotar sua mana.

“Nossa, acho que to sonhando demais, aqui não é um desenho. Pessoas morrem nessas lutas. Mas me pergunto o que ela fazia antes de vir para cá.”

— O que você era exatamente antes de ser escrava?

— Imaginei que você iria perguntar isso. Posso até te responder, mas daí você vai ter que me falar da onde veio.

— Tudo bem, você ganhou.

Com um sorriso continuou a falar: — Bom, eu fazia parte de um exército de mulheres do Reino de Daomé, nós éramos conhecidas como guerreiras mino e éramos tão fortes quanto os homens.

— Mas não me orgulho do meu passado porque a gente só fazia o que o rei mandava. Nós lutavamos contra os reinos vizinhos, capturavamos os perdedores, e de vez em quando  capturamos os civis de reinos vizinhos. Fazíamos isso para os vendermos como escravos para os europeus. O rei usava o dinheiro com a venda de escravos para comprarmos armas mágicas européias, afinal as armas européias são as melhores. Com essas novas armas, a gente podia lutar com mais reinos vizinhos, conseguindo mais escravos, para vender e comprar mais armas, para conseguir mais escravos, e assim o ciclo vicioso continuava.

— Na época eu justificava nossas atrocidades pensando que se o nosso reino não fizesse isso, os outros reinos que faziam isso iriam ter armas melhores e nós que iríamos nós tornar escravos. Agora já não acredito mais nisso, porque enquanto a gente ficava se vendendo e matando uns aos outros, o europeu ficava mais rico, mais forte e melhor em produzir armas e nós? Mais fracos, com menos gente e mais pobres. Um dia os reinos europeus irão ver que não precisam de um reino pra vender escravos para eles, podem usar suas riquezas e armas para escravizar um reino inteiro diretamente.

“Foi o mesmo que aconteceu no meu mundo… Sendo sincero, é bem fácil julgar estes reinos da época por suas ações, mas se eu fosse um rei de um desses reinos, como poderia fazer diferente? Se me recusasse a fazer isso, como poderia ganhar dinheiro para comprar mais armas?”

Carlos estava quieto ouvindo e via o arrependimento e tristeza no olhar dela.

— No fim não percebi que nossas lutas eram em vão e em vez de aproveitar a minha liberdade, passei a vida acabando com a liberdade dos outros. Até que um dia foi a minha vez de perder a liberdade. Nós fomos emboscadas enquanto voltávamos com escravos para vender, eram em maior número e acabaram ganhando. Então foi a minha vez de ser vendida como escrava. Fiquei meses no porto esperando a minha vez de ser mandada para a terra sem volta. Por sorte durante a emboscada que fui capturada não pude fazer nada, o que foi até bom pois não fui vendida como escrava que pode usar gemas, afinal escravos que usam gemas sempre valem mais. Fui vendida como uma escrava normal, e não iria corrigir eles para lucrarem mais as minhas custas. Infelizmente cheguei aqui e fui forçada a fazer o teste de aptidão pelo senhor do engenho.

— É irônico, apenas vivia capturando pessoas e as tornando escravas, para no fim virar uma escrava também. Pelo que lutei tanto? Para que minhas companheiras perderam tantas vidas? O destino às vezes é bem cruel.

— Mas até que tive sorte comparada a outras pessoas, pois sabia o que me esperava. Como a gente vendia escravos para os portugueses, acabamos aprendendo um pouco de português e falando sobre o que faziam com esses escravos. Então sabia o que me esperava. Aliás, um dos português com quem eu conversava até me reconheceu quando me viu como escrava.

— E o que ele fez?

— Nada, apenas desviou o olhar.

— Enfim, deixa eu me apresentar. Meu nome é Tassi Hangbé esse é o nome que minha mãe me deu. Não que me orgulhe da minha mãe, já que me vendeu para virar guerreira ou concubina do rei. Quando cheguei o senhor do engenho até me nomeou como Catarina de Oliveira. Posso até virar escrava, porém não vou perder minha identidade, então me chame de Tassi, assim como todo mundo me chama. 

— Jorge já tirou muitas coisas de mim, mas meu nome não tira. Infelizmente tem um chicote na mão, no começo chicoteava todo mundo que me chamava de Tassi. Porém tenho algo que o senhor do engenho quer, meus poderes para fazer a cana de açúcar crescer e deixar o solo mais fértil. Infelizmente sou difícil de controlar, por isso precisava de alguém mais fácil. Por conta disso fui obrigada a parir uma criança que tenha os meus poderes. Tive que fazer sexo com muitos homens, mas não queria ter nenhuma criança nesse inferno de lugar. E conheço muitas formas de perder a gravidez, aprendi com minhas companheiras de exército que tinham certas escapadas.

“Nossa, que pesado. Que coisa horrível…”

— No fim o senhor do engenho descobriu isso, mas não conseguia fazer com que parisse um filho, não importava o quanto me torturasse. No fim, fiz uma troca, meu nome, por uma criança.

— Eu realmente não queria trazer uma criança para este mundo. Mas mesmo eu tenho um limite para quanta tortura aguento, tive que fazer isso, pelo menos consegui meu nome.

“Nem sei o que faria em sua situação. No passado ouvi falar que muitos escravos comiam terra para se matarem, agora entendo porque eles faziam isso.”

“Espera, ela disse algo bem importante, então quer dizer que a aptidão de gemas mágicas neste mundo é hereditária? E também, quem será o filho dela? Só uma criança me vem à mente…”

— Enfim, essa é minha história e gostaria de ouvir a sua também e sobre como escapei, depois te conto, infelizmente o dedo duro está vindo para cá.

Ela apontou para o Pedro que estava vindo na direção deles.