Capítulo 106 - Plano Para Atrair Mais Imigrantes
Carlos finalmente se deixou cair na cadeira atrás de sua mesa, como se as pernas tivessem perdido toda a força. O silêncio do escritório era agora uma presença física, pesada e opressiva. Ele fitou as anotações rabiscadas em sua própria caligrafia acelerada, mas as palavras pareciam nadar diante dos olhos.
“Estou correndo demais”, o pensamento ecoou em sua mente, amargo e lúcido. “A pressa é inimiga da perfeição, diz o ditado, mas aqui… aqui a pressa é inimiga da vida. Era inevitável que isso acontecesse. Como poderiam saber? Como eu pude esperar que soubessem? Eles tiram leite de cabra, plantam mandioca, forjam ferro no fogo lento… Não têm a menor ideia do que é um ácido concentrado. Mal conseguem decifrar seu próprio nome no papel…”
Ele fechou os olhos por um momento, e a cena surgiu diante dele: a fumaça esbranquiçada, o grito abafado, a expressão de pavor no rosto de Davi. O cheiro ácido ainda parecia impregnar seu nariz.
“Tenho que parar tudo. Ou pelo menos desacelerar. Tenho que ir pessoalmente em cada fábrica, cada oficina, cada forno. Ver com meus próprios olhos onde mais estamos brincando com fogo sem saber acender um fósforo.”
Com um suspiro que parecia vir do fundo dos ossos, ele puxou uma folha limpa e começou a escrever com determinação renovada, mas desta vez, metódica. “Protocolos de Segurança” encabeçava a página. Ele rabiscou tópicos: “Identificação de materiais”, “Treinamento obrigatório”, “Equipamento de proteção”, “Procedimento de emergência”.
Depois de alguns minutos, quando uma lista inicial tomou forma, ele ergueu-se. Suas costas doíam da tensão acumulada. Ele abriu a porta do escritório e chamou por sua secretária, uma jovem eficiente que trabalhava na ante-sala.
— Marina, por favor, vá até o Ministério do Trabalho. Peça à Ministra Fernanda para vir aqui o mais breve possível. É urgente.
A moça assentiu e saiu a passos rápidos. Carlos voltou para a mesa, reorganizando os papéis enquanto esperava.
Não demorou muito até que a porta se abrisse novamente. Fernanda entrou, seu rosto sério demonstrava que as notícias já haviam circulado. Ela trazia consigo um caderno e um ar de preocupação prática.
— Presidente — cumprimentou ela, fechando a porta suavemente.
— Fernanda, obrigado por vir tão rápido — disse Carlos, indicando a cadeira à sua frente. — Imagino que você já tenha ouvido sobre o que aconteceu na fábrica química.
— Todo o mocambo ouviu, Presidente. E cheirou. É uma tragédia.
— É mais que uma tragédia; é um aviso. Um aviso que vamos ouvir. Por conta disso, vamos implementar medidas de segurança rigorosas, não apenas na fábrica química, mas em toda a indústria. Em toda a república, na verdade. Qualquer lugar onde haja risco. — Ele inclinou-se para frente, suas mãos entrelaçadas sobre a mesa. — Como Ministra do Trabalho, uma de suas novas funções prioritárias será vistoriar e auditar essas medidas. Garantir que não sejam apenas papéis na parede, mas prática no chão de fábrica.
Fernanda ouviu em silêncio, anotando um ou outro ponto. Quando Carlos terminou, ela não falou imediatamente. Em vez disso, olhou para suas anotações, buscando as palavras certas.
— Com todo respeito, Carlos… — ela começou, levantando os olhos. — Acho que o problema tem duas pernas. Uma é a falta de medidas de segurança, sim. A outra… é a falta de preparo das pessoas que colocamos para operar essas medidas.
Carlos sentiu um calafrio de irritação percorrer sua nuca. Ele sabia. Sabia muito bem. Mas ouvir aquilo, naquela hora, doía como um diagnóstico fatal confirmado.
“Claro que é!”,
pensou, com frustração.
“Mas de onde eu vou tirar químicos experientes? Da minha bolsa? Do século XXI? Eles nem sabem o que é um átomo!”
Ele respirou fundo, contando mentalmente até três. A irritação era um luxo que não podia permitir.
— Você está certa — admitiu ele, sua voz soando mais cansada do que gostaria. — Temos que ser mais rigorosos. Muito mais. Para trabalhar em ambientes perigosos — não só fábricas, mas até em certos cargos aqui na prefeitura, que lidam com números e leis —, vamos exigir mais do que boa vontade. Vamos exigir o diploma do ensino fundamental, no mínimo. Depois, provas específicas para a função. Treinamentos. — Ele fez uma pausa, esfregando os olhos. — O ideal, Fernanda, o ideal seria exigir ensino médio, até superior, para algumas coisas. Mas não podemos esperar cinco, dez anos formando a primeira turma. A guerra não vai esperar.
Fernanda acenou, um sinal de que entendia o dilema. Um leve sinal de satisfação cruzou seu rosto ao ver suas preocupações levadas a sério, mas logo foi substituído pela sombra do próximo obstáculo.
— Isso nos leva de volta ao problema anterior, Presidente. Não temos pessoas letradas suficientes para podermos ficar escolhendo. É como tentar fazer uma peneira com um tecido cheio de buracos. A água passa toda.
Carlos suspirou, o som ecoando no escritório silencioso.
— Sim, eu sei. Mas não é como se pudéssemos continuar colocando gente completamente despreparada para lidar com produtos que podem dissolver metal e carne em minutos. Não quero mais acidentes. Não posso. Cada vida perdida assim… é uma traição ao que estamos tentando construir.
Fernanda baixou o olhar para suas mãos por um momento, seus dedos apertando a capa do caderno. Quando falou novamente, sua voz era respeitosa, mas carregada de um receio cuidadoso.
— E se… e se tentássemos atrair mais pessoas de fora? Pessoas que já vêm com algum estudo? Imigrantes letrados?
Carlos não conseguiu evitar uma risada curta, sem humor, que soou mais como um suspiro de derrota.
— Já tentei essa rota, Fernanda. Pedi ao Espectro, com toda sua rede de contatos nos mocambos e entre os libertos, que espalhasse a palavra. Que tínhamos trabalho, salário, um lar para quem soubesse ler, contar, tivesse algum ofício especializado. — Ele balançou a cabeça. — Mas adivinha? Não há muitos negros livres, fora daqui, que tenham tido acesso a um livro. É um privilégio raríssimo. E os brancos… — ele fez uma pausa, escolhendo as palavras, — os brancos, mesmo os pobres, os que não são senhores, dificilmente aceitariam se mudar para uma república fundada e governada por negros. Por mais que eu queira que esta seja uma república para todos, a realidade é mais teimosa. E, para ser justo… — ele olhou diretamente para Fernanda, para sua pele clara, — …não os julgo completamente. Muitos dos que estão aqui, que construíram este lugar com as próprias mãos, carregam as cicatrizes do açoite. Apenas ver um rosto branco pode despertar uma dor profunda, um ódio justificado. Não seria fácil para nenhum dos lados. — Ele fez uma pausa significativa. — Imagino que você, mesmo como ministra, já tenha encontrado… resistências.
Fernanda não hesitou. Endireitou os ombros, e quando falou, sua voz era firme, clara, como se estivesse repetindo um juramento para si mesma.
— Encontrei. Olhares atravessados, comentários sussurrados quando passo, alguns ‘esquecimentos’ convenientes de ordens. Nada que eu não possa lidar. — Ela fez uma pausa, e seu olhar ficou distante, vidrado em uma memória mais sombria. — Mas sabe de uma coisa, Presidente? Nada disso se compara ao que era ser uma mulher branca, sozinha, com uma filha pequena e doente, em Areia Branca. Certos homens… homens do próprio povoado, me ofereciam moedas. Em troca de ‘favores’. Diziam que era para eu comprar remédio para a minha pequena.
Ela engoliu seco, a voz ficando um pouco mais áspera.
— Eu preferia morrer a trair meu marido, a minha própria alma. Mas quando via minha filha, febril, os ossinhos aparecendo… esse pensamento, esse pensamento vil, passou pela minha cabeça. Talvez… talvez eu tivesse aceitado. Talvez a desesperança tivesse vencido. Se não fosse pela carta. A carta que meu marido conseguiu me mandar, dizendo que estava vivo, aqui. Essa carta salvou a mim e à minha Carla. O quilombo salvou meu Jorginho. E esta república… esta república salvou minha família inteira.
Ela olhou para Carlos, e seus olhos estavam limpos, sem lágrimas, mas brilhando com uma convicção inabalável.
— Por isso tenho um plano. Você tem razão. Ouvir de um homem negro que um branco será bem-vindo aqui soa… improvável, para muitos de fora. Mas e se a mesma mensagem vier de uma mulher branca? De um homem branco? De uma família branca, inteira, que não apenas sobrevive na República, mas prospera? Que tem casa, trabalho digno, comida na mesa, filhos na escola? — Seu tom se tornou mais urgente, mais persuasivo. — Eu conheço mulheres. Conheço famílias. Muitas estão na mesma situação desesperadora em que eu estava. Sim, algumas carregam preconceitos profundos. Mas muitas outras, Presidente, estão dispostas a jogar esses preconceitos no fogo se, em troca, houver a chance de uma vida melhor. Uma vida sem medo. Elas precisam de uma ponte. Alguém que fale a língua delas, que entenda seus medos. Alguém como eu.
Carlos a ouvira em completo silêncio. O peso do relato dela, a crueza da escolha que quase fez, assentou-se em seus ombros junto com todos os outros pesos. No final, as palavras pareceram insuficientes. Ele viu não apenas uma ministra, mas uma sobrevivente. E uma estrategista.
— Esse plano… — ele disse, finalmente, sua voz carregada de um respeito novo, — é mais do que bom, Fernanda. É necessário. Siga com ele. Use os recursos de que precisar. — Ele ergueu-se, caminhando até a janela mais uma vez, mas agora seu olhar não estava na fumaça dissipada. Estava no horizonte, na estrada que vinha do mundo exterior. — A República do Brasil está de braços abertos para todos que queiram construí-la com honestidade e trabalho.

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