Esse é o último capítulo do mês, o que significaria que eu iria parar de postar capítulos todo dia. Porém, consegui um trabalho que me dá mais tempo para escrever por isso em janeiro vou continuar postando um capítulo por dia, mas não se acostumem.
Capítulo 108 - Hereges
O sol da tarde banhava o pátio atrás da igreja com uma luz dourada e oblíqua que fazia as poeiras de cimento e os grãos de areia brilharem como partículas de ouro suspensas no ar. A Papisa Paula estava no meio do canteiro experimental onde testavam novas argamassas quando a Irmã Luzia se aproximou, seu hábito de linho fino pairando suavemente sobre os tijolos dispostos no chão.
— Vossa Santidade — chamou a Irmã, com uma ligeira inclinação. — Os novos assistentes enviados pelo Papa Henrique chegaram. Doze monges. Aguardam no Salão dos Embaixadores.
Paula não ergueu os olhos imediatamente. Com um gesto preciso, ela deixou cair uma gota de um líquido turvo sobre um bloco de concreto e observou a reação química — um leve fumacinha ácida subiu até suas narinas. Só então assentiu.
— Doze? — sua voz era plana, mas um músculo tensionou-se em sua mandíbula. — Que generosidade inesperada.
Ela limpou as mãos em um pano áspero que pendurava de seu cinto, manchando-o ainda mais com uma mistura de óxido e cal. Seus dedos, finos e com as unhas curtas e sujas de trabalho, tocaram a gema azul-escura na cruz em seu pescoço, como quem busca conforto em um talismã familiar.
“Por que me mandariam tantos assistentes?”, o pensamento martelou em sua mente enquanto caminhava em direção ao edifício principal. Seus passos ecoavam nos corredores de pedra fria, um contraste com o calor do pátio. “A Igreja está mesmo tão intrigada com minhas descobertas? Ou é algo pior?”
Ela passou por uma janela aberta, e uma brisa súbita trouxe o cheiro do mar misturado ao odor doce e pesado da cana queimada em algum engenho distante. A combação lhe deu náuseas por um instante.
“Não”, concluiu, os lábios se apertando numa linha fina. “Não é curiosidade científica. É controle. Querem me vigiar, cercar, asfixiar. Colocar freios numa mulher que ousa olhar para além dos missais.” Uma pontada de frustração, quente e familiar, queimou em seu peito. “Já imagino: relatórios semanais, justificativas por cada grama de minério, interrogatórios sobre cada experimento. Vou perder o que mais prezo — minha liberdade para pesquisar.”
Mas havia uma preocupação mais urgente, uma peça que não se encaixava no tabuleiro. Ela parou por um momento diante de um vitral que representava São Jerônimo em seu estudo, a luz colorida pintando seu rosto de tons de rubi e safira.
“E o mais importante… onde está o legado pontifício? Dom Mateus Orsini. Por que enviaram esses monges de antemão, mas não o emissário principal?” Seus olhos azuis escureceram com a suspeita. “Estão testando minhas defesas. Enviando a infantaria antes do general. Ou pior… ele já está aqui, disfarçado, observando.”
Ela respirou fundo, o ar fresco do corredoor ajudando a clarear seus pensamentos. “Bom. Já preparei toda uma série de justificativas. Sobre o comércio com o quilombo — vou dizer que era para obter minerais raros para a pesquisa médica. Sobre as omissões nos relatórios — vou alegar proteção de descobertas sensíveis que poderiam cair em mãos heréticas. Tenho respostas para tudo.”
Mas ao se aproximar da pesada porta de carvalho do Salão dos Embaixadores, uma outra camada de preparação tomou conta dela. Foi então que ela forjou o sorriso — um gesto calculado que esticou seus lábios sem atingir seus olhos. Um sorriso de cortesia vazia, de plástica diplomacia, que lhe doeu nos músculos faciais como se fosse uma máscara de chumbo.
Ao empurrar a porta, o som das dobradiças rangendo anunciou sua entrada.
Dentro, os doze homens estavam dispostos de forma quase militar. Não estavam sentados nas polturas de veludo, mas em pé, formando um semicírculo rígido. Seus hábitos eram novos demais, as dobras ainda marcadas pela arrumação nas malas. O ar cheirava a lã nova e a um leve odor de suor nervoso — o cheiro acre de homens que viajaram muito e estavam em território inimigo.
O que parecia ser o líder — um homem de quarenta e poucos anos, com um rosto estreito e olhos tão claros que pareciam sem cor — deu um passo à frente. Seus lábios finos se moveram primeiro em um sorriso igualmente falso antes de falar.
— Vossa Santidade — começou ele, com uma voz que tentava ser respeitosa mas tinha a aspereza de quem está acostumado a dar ordens. — Sou o Irmão Tomás, designado pelo Papa Henrique para auxiliá-la em seus… labores aqui na fronteira da cristandade. Trouxemos experiência em administração monástica, cópia de documentos sagrados e…
— E vigilância? — completou Paula, ainda sorrindo, mas deixando a palavra pairar no ar como uma faca.
O sorriso de Tomás congelou. Os outros monges trocaram olhares rápidos. Um deles, mais jovem e com o rosto marcado por varíola, não conseguiu disfarçar uma expressão de desdém.
— Vigilância é uma palavra forte, Santidade — respondeu Tomás, recuperando a compostura. — Preferimos pensar em… documentação. Para que Alba possa compreender melhor os milagres que aqui ocorrem.
— Compreender ou controlar? — perguntou Paula, caminhando lentamente pelo semicírculo, seus olhos examinando cada rosto como se fossem espécimes sob uma lente. “Este aqui tem medo”, pensou, ao ver as mãos trêmulas de um monge mais velho. “Este, raiva”, ao notar a mandíbula cerrada do mais jovem. “Pois é melhor ficarem com raiva e medo, não planejo que a estádia de vocês seja boa.”
Foi então que o monge de rosto marcado falou, sem pedir licença, sua voz carregada de uma arrogância juvenil:
— Dizem que Vossa Santidade passa mais tempo com instrumentos de hereges do que com o cálice sagrado. É verdade que seu “laboratório” cheira a enxofre e coisas não batizadas?
O silêncio que se seguiu foi cortante. Paula parou diante dele. O cheiro do homem — suor ácido e uma pitada de alecrim, talvez para disfarçar — invadiu suas narinas. Ela manteve o sorriso, mas agora seus olhos brilharam com uma luz perigosa.
— O cheiro de enxofre, Irmão…?
— Lucas — ele respondeu, erguendo o queixo.
— Irmão Lucas — continuou ela, suave como seda rasgada. — O enxofre é um elemento interessante. Usado em medicamentos, na purificação de metais… e, sim, em algumas práticas menos ortodoxas. Talvez, durante sua estadia, você possa aprender a diferença. — Ela virou-se de costas para ele, um claro sinal de desprezo, e dirigiu-se novamente a Tomás. — Quanto ao cálice sagrado, Irmão Tomás, eu o uso todas as manhãs na missa. Mas confesso: estudo sua forma, a pureza do metal, como a luz se refrata no vinho. Para mim, até a eucaristia é um fenômeno a ser compreendido, não apenas celebrado. O mundo que Deus criou é perfeito, lindo e maravilhoso e eu busco comprrender esse mundo criado por Deus.
Tomás pareceu incomodado com a direção da conversa.
— A fé, Santidade, nem sempre precisa de compreensão. Às vezes basta a submissão.
— Como interessante que você diga isso — respondeu Paula, finalmente deixando o sorriso falso cair. Seu rosto assumiu uma expressão séria, intensa. — Porque foi justamente a submissão a velhos dogmas que permitiu que a peste matasse milhares em Nova Lusitânia, enquanto aqui, onde compreendemos a doença, ela foi contida mesmo antes de atingir a população.
O golpe atingiu em cheio. Vários monges baixaram os olhos. Tomás ficou pálido.
— Essas são acusações graves…
— São fatos — cortou Paula. — E falando em fatos, onde está Dom Mateus Orsini? O legado pontifício? Esperava recebê-lo primeiro.
A mudança de assunto foi tão brusca que Tomás piscou, desequilibrado.
— O… o Dom Orsini segue seus próprios métodos de avaliação. Deve estar a caminho. Nós viemos adiantar o trabalho.
“Mentira”, pensou Paula, com uma certeza absoluta. “Ele já está aqui. Está observando, avaliando. Estes são apenas a cortina de fumaça.”
— Entendo — disse ela, voltando a sorrir, mas desta vez com um brilho genuíno de antecipação nos olhos. — Bem, então vamos ao “trabalho”. Irmã Luzia lhes mostrará os aposentos. Amanhã começaremos. Há muito para documentar. Muitos microorganismos, os experimentos com purificação de água, os estudos sobre os como luvas de borracha do quilombo podem evitar contaminação.
Ela viu o choque percorrer o grupo ao mencionar o material do quilombo. O Irmão Lucas não conseguiu se conter:
— Borracha? Do quilombo dos hereges? Vossa Santidade comercia com inimigos da fé?
Paula olhou para ele, e desta vez seu sorriso foi quase maternal, o que era ainda mais assustador.
— Irmão Lucas, salvei centenas de vidas com técnicas aprendidas e materiais obtidos através desse comércio. Na minha ética, isso pesa mais do que dogmas sobre quem é ou não herege. Além disso eles já se converteram na verdadeira fé, meu padre que vive lá me manda relatórios mensalmente. Mas não se preocupe — ela se virou para sair, lançando as palavras por sobre o ombro —, você terá a chance de documentar tudo. Cada grama de minério, cada folha de borracha. Espero que sua caligrafia seja boa. Vai precisar.
Ao fechar a porta atrás de si, o som ecoou como um ponto final. Ela ficou parada do lado de fora por um momento, ouvindo o burburinho abafado de vozes indignadas e preocupadas que agora enchia o salão.
O sorriso desapareceu completamente. A máscara caiu, revelando o cansaço e a tensão por baixo. Ela levou os dedos às têmporas, onde uma dor latejante começava a se formar.
“Doze monges para me vigiar”, pensou, os olhos fechados. “E um legado escondido nas sombras. E eu aqui, no meio, com minhas descobertas e meus segredos.” Ela abriu os olhos e olhou na direção do seu laboratório, do outro lado do pátio. “Mas tenho uma vantagem: eu conheço o território. E conheço a verdade. Qualquer informação mandada para a igreja demora meses até ser respondida. Vamos ver quem cansa primeiro desse jogo.”
Respirou fundo mais uma vez, endireitou os ombros e começou a caminhar de volta ao seu santuário de vidro, metal e pergaminhos. A guerra silenciosa havia começado. E Paula, a Papisa Santa, estava determinada a vencer — ou, no mínimo, a transformar cada ataque em um novo dado para seu próximo experimento.
Dessa fez ela foi em seu laboratório, fazer novamente experimentos em ratos. Pouco a pouco ela clonava outro rato. Logo ele estava vivo, de pé, respirando, o rato clonado olhava ela, mas era um olhar sem vida.
O laboratório de Paula era uma caverna de vidro, metal e sombras. O cheiro que imperava não era mais o do sangue do incidente do braço — aquele havia sido eliminado com uma limpeza obsessiva com álcool e cinzas — mas sim um odor agridoce e penetrante de formol, misturado ao aroma terroso da palha das camas das gaiolas e ao cheiro metálico do latão dos microscópios. Uma lâmpada de óleo de baleia, melhorada por um sistema de refletores de metal polido que ela mesma projetara, lançava um cone de luz branca e intensa sobre a bancada principal. Sob aquela luz, em uma gaiola de arame, dois ratos se moviam.
Não, um rato se movia. O outro estava deitado, inerte.
Paula observava, a respiração contida. Seus dedos, agora limpos e envoltos em luvas finas de couro de rato almiscarado — uma extravagância necessária para sensibilidade —, ajustaram o foco da lente de aumento. O rato que se mexia era o original, um macho marrom e robusto que ela batizara de “Teseu”. O que jazia era sua cópia. Ou quase.
“Pelo menos agora ele respira”, pensou ela, observando o leve movimento do peito do animal clonado. “Os conhecimentos de Carlos sobre replicação celular em meio de cultura… eles realmente mudaram tudo.” Ela puxou uma anotação escrita na letra firme e prática do líder quilombola: “A célula não é um segredo mágico. É uma fábrica. Alimente a fábrica com os materiais certos, na ordem certa, e ela produz.”
Com uma pinça de aço inoxidável — outra dádiva do comércio com a república —, ela tocou a pata dianteira do rato clonado. O membro retraiu-se num reflexo mecânico. Mas quando ela levou um pedaço de queijo perto do focinho, não houve reação. Os olhos pretos do animal estavam abertos, vítreos, fixos no nada.
“Um olhar sem vida”, murmurou, e o som de sua própria voz ecoou no silêncio pesado do laboratório. “A máquina funciona, mas a centelha não acende.”
Ela se recostou na cadeira de madeira, que rangeu. A fadiga pesava em seus ombros, um cansaço mental profundo. Passou os dedos — sem as luvas agora — pelos olhos, sentindo a textura áspera das pálpebras.
“Uma célula é simples”, raciocinou em silêncio, olhando para suas próprias mãos como se as visse pela primeira vez. “Cada uma é uma pequena máquina. Com uma instrução: cresça, divida, produza proteína, morra. Ela cumpre sua função com uma obediência cega e perfeita.” Sua mente visualizava as estruturas que estudara ao microscópio — os núcleos, as mitocôndrias, os ribossomos — como pequenas engrenagens de um relógio biológico.
“Mas um neurônio…” Ela ergueu o olhar para um diagrama cerebral pendurado na parede, cheio de anotações suas. “Um neurônio também é uma célula. Mas ele se conecta. Estende seus braços, faz pontes, sussurra sinais químicos para seus vizinhos.” Ela se levantou e foi até o diagrama, tocando os desenhos das sinapses. “Um neurônio sozinho é burro. Um sinal entra, um sinal sai. Mas milhares? Milhões? Bilhões?”
A lembrança de uma conversa com Carlos, registrada em uma de suas cartas, veio à tona. A voz dele parecia ecoar em sua memória: “É uma propriedade emergente, Paula. A consciência, a mente. Não está em nenhuma peça, está no todo. Como um formigueiro — uma formiga é burra, o formigueiro é inteligente.”
“E aí está o problema”, sussurrou ela para os ratos, como se eles pudessem ouvir. “Como recriar isso? Posso copiar o DNA, a estrutura celular básica… posso até fazer um coração bater, pulmões respiraram. Mas como copiar uma vida inteira de conexões? Uma memória? Um medo? Um desejo por queijo?”
Ela voltou à bancada, pegando o rato clonado com cuidado. Seu corpo era quente, o coração batia forte e regular sob seus dedos. Um sucesso biológico monumental. Um fracasso filosênico completo.
“Espera”, ela disse em voz alta, os olhos se arregalando. A ideia surgiu como um raio, iluminando a escuridão de sua frustração. “Talvez eu esteja tentando escalar um penhasco de uma vez. Em vez de tentar recriar o ser inteiro… posso começar com os tijolos. Uma cultura de neurônios. Criá-los, alimentá-los, observá-los tentarem se conectar sozinhos. Estudar as pontes antes de tentar construir a cidade.”
Seu coração acelerou com a perspectiva. Os dedos percorreram as anotações freneticamente, buscando por fórmulas de meios de cultura neural. Mas então, seu olhar pousou na porta do laboratório, e lembrou-se dos outros “visitantes”.
“Ou talvez…”, um pensamento sombrio e tentador sibilou em sua mente, “…eu possa usar as doze cobaias que acabaram de chegar. Homens são mais complexos que ratos, mas o princípio é o mesmo. E eles vieram me espionar… seria uma ironia poética.”
Um leve sorriso malicioso — um verdadeiro, não o sorriso falso de antes — passou por seus lábios, deixando uma ruga de prazer intelectual no canto da boca. Mas durou apenas um instante. Ela abanou a cabeça, dissipando a fantasia.
“Não”, disse para si mesma, a voz firme no silêncio do laboratório. “Por mais tentador que seja, a única cobaia que usarei serei eu mesma. É o único modo ético. E o mais eficiente.”
A ideia se expandiu, ganhando uma lógica irresistível. Ela começou a caminhar, os sapatos de couro macio fazendo um som surdo contra as lajes de pedra.
“Apenas imagine…”, sussurrou, os olhos brilhando com um fogo azul de pura ambição intelectual, “…o quanto de trabalho, de pesquisa, eu poderia realizar. Dois corpos. Quatro mãos. Duas mentes… bem, uma mente, mas com o dobro do tempo de observação. Poderia fazer experimentos no corpo humano em tempo real, com um espécime cooperativo e perfeitamente compreensível — eu mesma — do outro lado da bancada.” A perspectiva era vertiginosa. “Afinal, se quer algo bem feito…”
Ela completou o ditado em silêncio: “…faça você mesma.”
Até que uma batida na porta a arrancou do transe. Era uma batida familiar, respeitosa, mas firme. Antes que ela pudesse responder, a porta se abriu e a Irmã Luzia entrou. O rosto da assistente estava sério, seus olhos castanhos refletindo a luz da lâmpada.
— Vossa Santidade — disse Luzia, com uma pequena reverência. — Dom Mateus Orsini está no escritório. Ele solicita uma audiência.

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