Capítulo 11 - Igreja
Carlos ao ouvir que Pedro era o dedo duro não podia deixar de ficar surpreso.
“Não tem como ser ele, o Pedro foi o primeiro que me ajudou por aqui.”
Pedro então se sentou no meio dos dois.
— Então como você está se sentindo depois de finalmente poder ter tirado aquela máscara horrível?
— Estou me sentindo ótima. Ainda mais porque pude ver o seu Jorge ficar vermelho daquele jeito. Mas não imaginei que o padre teria tanta coragem. Obrigado por falar com ele.
— Não fiz nada, o padre já estava falando a dias pro patrão tirar a máscara de você, apenas ajudei a confrontar o seu Jorge. Você deveria agradecê-lo depois.
— Sim, farei isso. Pena que sempre tenta me converter por umas horas quando vou lá.
— Você tem que acreditar em Deus irmã, para ter sua salvação.
— No dia que Deus me tornar uma pessoa livre vou acreditar nele. Até lá não vou acreditar em nada.
— Não existe salvação aqui na terra, só no céu seremos salvos e verdadeiramente livres. Eu iria dizer “Não concorda, Carlos?”, mas lembrei da sua fala de ontem, e não sei que você é do tipo que acredita que dá pra criar um mundo melhor aqui. Bom, cada um acredita no que quiser.
“Parece que minha fala de ontem teve bastante impacto nele.”
— Pelo visto estão começando a me entender melhor, mas não falo da boca pra fora, vou provar para vocês.
— Vai provar como?
Tassi que estava do lado de Pedro apenas levou o dedo aos lábios e fez sinal de silêncio, da posição de Carlos, apenas ele podia ver isso.
“Ops, falei demais, apesar de que confio nele, mas vou confiar em seu julgamento. Tenho minhas dúvidas. Bom, vou apenas deixar meio vago.”
— Espere e verá.
“Idiota, que frase susgestiva é essa, a gente é escravo, nada vai mudar a não ser que sejamos livres. Falar para ele esperar e ver é basicamente dizer que vai tentar escapar!”
Pedro gravou bem na memória a fala dele, mas não quis insistir mais nesse assunto.
— Então sobre o que vocês estavam conversando, agora que a Tassi finalmente pode falar sem ficar sussurrando.
— Eu estava contando sobre minha vida e falando das gemas mágicas, parece que ele vivia numa caverna e nunca ouvi falar de gemas mágicas.
“Se não nada falar agora vai que esse idiota fala mais alguma besteira.”
Carlos não gostou muito de ser chamado de idiota e resolveu comentar: — Só não sei nada sobre gemas mágicas, mas sei sobre tudo o resto, sei que estamos no Brasil, que vários escravos vem do Congo, da Guiné, sei sobre Portugal, Espanha, Inglaterra, Holanda, Império Otomano, Marrocos, Mamelucos, Etiópia. Sei que estamos no Brasil.
“Aliás, em que parte do Brasil, bom, considerando o engenho de açúcar e a época, dá para assumir que estamos no nordeste. Pois foi no nordeste onde teve a maior produção açucareira e acho que a capitania do nordeste na época era Pernambuco. Olinda era capital da capitania de Pernambuco inicialmente, mas com a expulsão dos holandeses se tornou Recife. Se eu me lembro bem o velho do engenho tinha falado algo sobre os holandeses terem sido expulsos. Então a capital deve ser Recife.”
— Também sei que estamos na capitania de Pernambuco, cuja capital é Recife. E o quilombo aqui perto se chama quilombo de palmares, pelo menos o maior quilombo aqui perto.
Carlos disse tudo isso orgulho.
“Pelo menos minhas mil horas jogando europa universalis vão servir de alguma coisa pra mim.”
Pedro e Tassi se entreolharam e começaram a dar risadas. Eles estavam dando altas gargalhadas, até que Tassi respirou com calma e começou a falar: — Na primeira parte até que você me impressionou, mas só foi falar as cidades que você se embananou todo, que diachos é Recife? A capital da região é Praia Branca, o quilombo aqui perto é o Quilombo da Jabuticaba.
Pedro também segurou o riso antes de dizer: — Você disse com tanta confiança que eu até achei que tinha lembrado errado o nome daqui!
“Como que ia saber que tinha o nome diferente, tudo o resto é igual. Não entendo a lógica desse mundo, metade das coisas é igual e metade é diferente.”
Vendo que os dois não iriam parar de rir tão cedo, Carlos se levantou e foi caminhar um pouco.
Depois de alguns minutos os dois começaram a parar de rir.
— Ele é meio estranho né? De onde será que ele veio?
— Não acho que seja estranho. Você nasceu no engenho, não é Pedro? Então não sabe que quando se perde a nossa casa, família e amigos e vai para um lugar desconhecido isso afeta nossa cabeça. Eu mesma demorei para me adaptar.
— E por acaso você se adaptou? Não tentou fugir no começo dessa semana? Mas você tem razão. Nasci e cresci aqui no engenho, então meu mundo sempre foi isso. Não consigo imaginar como deve ter sido pra você que foi capturada lá e te levaram pra cá.
— Justamente por ter me adaptado que quero fugir, quero ser livre. Você nunca foi livre, então não sabe como é. Justamente por isso peço para que você tente não falar muito do que o Carlos disse para o senhor do engenho. Ele ainda não se acostumou com a vida daqui.
Pedro se levantou em silêncio e falou: — Infelizmente deu a minha hora, tenho que voltar para a casa-grande.
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Carlos andava ao redor do lago do engenho enquanto absorvia tudo que ouviu hoje.
“Tô assumindo coisas demais mesmo. Esse não é o meu mundo, tenho que ouvir mais, pensar mais, não sei nada sobre a magia desse mundo, nem o que posso fazer. Tenho que aprender mais sobre esse mundo e não assumir que seja igual o meu.”
Os pensamentos de Carlos foram interrompidos por uma voz vindo de trás dele.
— O patrão está te chamando.
Quando Carlos se virou viu que era o capataz Jairo que estava lhe chamando.
“Mas que droga. O que ele quer comigo num domingo? não posso nem descansar.”
Quando chegou perto da casa do senhor do engenho. Jorge estava na frente da casa estava furioso.
— Você está atrasado! Pelo visto nenhum escravo aqui me respeita. Mas você vai aprender a me respeitar!
“Como assim, achei que era dia de descanso, pensei que não tinha que vir aqui.”
— Perdão senhor, achei que era o meu dia de descanso.
— Mentiroso, todo mundo sabe que quem trabalha na casa-grande não tem dia de descanso! Para aprender a me respeitar você vai levar vinte chibatadas. Jairo, tire-o da frente de mim e de a punição dele. Não quero ver esse preto mais na minha frente por hoje!
Sem pestanejar, Jairo o levou para o pelourinho na frente da senzala.
— Tira sua camisa, seu preto, você vai aprender a respeitar o seu dono.
Jairo olhou ao redor para os escravos descansando antes de gritar: — Ouçam todos vocês, seus pretos vagabundos! Isso é o que acontece quando não se respeita o senhor do engenho!
Relutantemente tirou a camisa. E Jairo começou a lhe dar as chibatas na frente da senzala.
A chibata começou a acertar suas costas. Da última vez que foi torturado, teve tempo para se preparar mentalmente, mas dessa vez não. Por conta da dor, quase gritou, mas conseguiu se conter.
Alguns escravos desviavam o olhar da cena, outros apenas olhavam com pena.
Em sua cabeça parecia que estava levando chibatadas a horas, a dor era excruciante. Quando as chibatadas terminaram, mal conseguia ficar de pé de dor.
— Queria tanto ter seu dia de descanso, pois agora você tem. Vai lá no padre tratar logo essas feridas e pode ficar sem fazer nada já que o patrão não quer mais te ver.
Aos poucos se levantou em silêncio, enquanto rangia os dentes.
“Vou matar esses desgraçados, custe o que custar!”
Se virou e lentamente foi para a capela. Por conta das chibatadas, cada movimento lhe causava dor e por isso demorou para chegar na capela. Quando chegou lá, padre Antônio que estava do lado de fora varrendo viu Pedro.
— O que aconteceu com você?
— Boa tarde padre, apenas levei chibatadas por não ter ido falar com o senhor do engenho.
— Venha comigo, vamos tratar isso já.
Eles foram na salinha onde ficavam armazenados os remédios do padre. Antônio pediu para Carlos sentar na cadeira e logo começou a passar pomada feita com a gema da cura.
— Sinto muito por isso, acho que irritei demais o senhor do engenho e ele descontou a raiva em você.
— Você me deu chibatadas? Ou mandou me dar chibatadas? Não! Então o senhor não tem culpa de nada!
— Você tem razão. Mas mesmo assim, deveria ter tido mais tato com meu sermão.
— Só de vê-lo com tanta raiva já valeu a pena. E Tassi estava precisando mesmo de comida. Deixar uma pessoa passar fome é crueldade demais.
— Além disso, se soubesse que deveria ir ver o seu Jorge também isso não teria acontecido, eu achei que hoje era dia de descanso. Ninguém me disse nada, apesar de que lembrando agora, Pedro comentou que iria trabalhar na casa-grande hoje. Nessa hora deveria ter me tocado que também teria que trabalhar.
— Mas você não deveria, hoje é um dia sagrado. Infelizmente para muitos dos senhores de engenho escravos não tem dia de descanso, só consegui que desse um dia de descanso para os escravos porque a Alice, é uma fiel que segue as palavras de Deus. E convence seu marido a fazer isso também. Mas infelizmente, o Senhor Jorge não considera o trabalho na casa-grande como trabalho, por isso você e os demais escravos que trabalham na casa grande, tem que trabalhar.
“Meu Deus, que vida sofrida, imagina uma vida inteira sem um dia de descanso. Coitada da Tia Vera, se tivesse no lugar dela não conseguiria ser uma pessoa amável, odiaria tudo e todos. Ainda mais por ter dores constantes de tanto trabalhar, minha mãe sentia muitas dores. Aposto que a Tia Vera também deva sentir muitas dores devido a idade.”
— Mas mesmo Alice sendo uma fiel das palavras de Deus. Acho que o principal motivo de vocês apenas terem dias de descanso é porque a Cidade Sagrada fica aqui perto.
“Peraí, cidade sagrada? Nunca ouvi falar disso!”
— Cidade Sagrada?
— Você não é mesmo daqui né, apesar de que você tem um português muito bom para quem veio da África. Aqui perto existe a Cidade Sagrada de Santa Maria, é uma das muitas cidades sagradas da igreja.
“Como assim a igreja é mais forte que no meu mundo, preciso saber mais.”
— Porque a igreja teria uma cidade sagrada neste lugar? E tem mais lugares com cidades sagradas?
— Onde a palavra de Deus precisa ser espalhada, há cidades sagradas no mundo inteiro. E além de espalhar a palavra de Deus as cidades sagradas recrutam qualquer pessoa que tenha aptidão para usar a gema da cura. Fui uma dessas pessoas, e sou muito grato por isso. Eu era órfão, meus pais morreram numa epidemia de varíola, fiquei sem nada e a igreja me deu um lar e educação, e tudo que tenho inclusive essa gema da cura para eu produzir pomadas e lhe ajudar. Mas claro, me ajudaram porque descobriram que tinha aptidão para a gema da cura.
Estava tão entretido na conversa que mal sentia dor nas costas enquanto passava a pomada.
“Aposto que além de espalhar a palavra de Deus, a igreja também tem estas cidades sagradas para manter e espalhar seu poder. E acho que a Tassi havia comentado sobre como era difícil trabalhar com as gemas mágicas.”
— E só a igreja sabe como trabalhar as gemas da cura?
— Sim.
“Então a igreja mantém um monopólio sobre a gema da cura e sobre quem pode usar ela. E com essa poder ela pode expandir ainda mais sua influência sobre o mundo todo. Pelo visto a igreja deste mundo é bem mais forte do que a do meu mundo, e olha que a do meu mundo já era bem forte. Só não sei se isso é melhor ou não, por um lado os escravos da região conseguem dias de descanso, porém a igreja aprova a escravidão e o colonialismo.”
— Entendo que para quem não é muito fiel esta ação de manter as gemas da cura para si mesmo possa parecer cruel. Porém a igreja usa este poder apenas para conseguir dinheiro dos nobres e reis, através das guerras, onde cobra uma taxa para curar qualquer combatente. Ela usa esse dinheiro para curar seus fiéis, por conta disso posso curar você. Pelo menos, é assim como funciona por aqui, não sei se no resto do mundo é assim. Mas a Papisa da Cidade Sagrada de Santa Maria, usa o dinheiro que a igreja consegue com guerras inúteis para que todos os desafortunados possam ser curados, claro menos aqueles que se feriram ao tentarem matar outra pessoa, seja em uma guerra ou fora dela.
“Qualquer um? Dúvido que no mundo inteiro seja assim, se não a igreja deste mundo é bem melhor do que a do meu mundo, pelo menos em meu mundo no papel falava que a igreja aceitava todo mundo, mas na prática os doadores mais ricos que recebiam os melhores tratamentos, alguns pobres recebiam um tratamento básico, mas para muitos escravizados e indesejados não havia nada, claro uma parte disso se devia a falta de mão de obra e recursos… Espera aí, disse papisa? E não papa?”
— Lamentavelmente os escravos também não recebem cura de graça, é cobrada uma taxa a todo senhor de engenho, mas mesmo se não fosse cobrado este taxa, eu faria isso porque acho que qualquer um mereça a cura de Deus.
“E nos engenhos que não pagam essa taxa? Se é cobrado uma taxa, então não é qualquer um, mas mais importante sobre a papisa.”
Na hora ia abrir a boca para perguntar sobre isto mas foi interrompido: — Terminei Carlos, agora apenas tente ficar em repouso até amanhã.
— Obrigado padre.
“Bom, acho que devo ter ouvido errado. De qualquer forma tenho que descansar logo porque amanhã vou voltar a minha vida de escravo. Mas este padre realmente para ser uma boa pessoa, até parece que não pensa como as outras pessoas desta época.”
Carlos se levantou do banquinho, e começou a andar em direção à porta para ir embora, mas antes de ir, ele se virou e disse para Antônio: — Porque você ajuda tanto nós, não precisava ter falado com o senhor do engenho daquele jeito? Para a igreja nós não passamos de escravos.
Antônio apenas sorriu e disse: — Eu sou muito grato pela a igreja, mas eu sei que a palavra da igreja não é a palavra de Deus.
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