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    O sol já se punha, tingindo o céu de laranja e roxo, quando Carlos despertou. Ele havia passado a tarde toda deitado de lado em sua cama de terra batida na senzala. Mesmo com a pomada mágica do padre, uma sensação latejante e quente persistia sob sua pele, uma lembrança dolorosa da manhã. O ar dentro da senzala era pesado, carregado de cheiro de suor e terra.

    Não conseguira fazer outra coisa a não ser adormecer, e só despertara com o burburinho distante da hora da janta. Esfregou os olhos, pesados de um sono inquieto.

    “Um domingo inteiro… perdido”, pensou, com amargura. “Só fui à igreja e ganhei uma sova por não saber que até no dia de descanso temos que servir o velho.”

    Com movimentos lentos, pegou sua tigela de comida – uma porção morna de feijão e farofa – e procurou com os olhos um lugar para se sentar. Avistou Tia Vera encostada na parede, comendo calmamente no chão. Sentou-se ao lado dela. A mulher, ao vê-lo, franziu a testa, e seus olhos bondosos se encheram de uma preocupação profunda.

    — Menino, fiquei sabendo do que aconteceu — disse ela, a voz um sussurro rouco. — Sinto muito por isso. A culpa foi minha, devia ter te avisado que nós, da casa-grande, trabalhamos todos os dias, até quando Deus descansa.

    — Não fale assim, tia. A culpa não é sua — respondeu Carlos, o olhar fixo na própria tigela. — O velho é que devia ter me avisado. Ou será que acha que adivinhamos seus desejos?

    — Mesmo assim, o coração fica pesado. Para compensar, acho que posso te dar um presentinho.

    “Será que é mais caju?”, ponderou Carlos, internamente. “Apesar de ser bom, a boca até já enjoou do doce azedo.”

    — Sabe aquela receita com o tal do cacau em pó que você me passou? — continuou Vera, um brilho súbito animando seu rosto. 

    — Então, hoje eu fiz. O bolo ficou uma maravilha. A senhora do engenho amou, e o filho dela também. Ela até me disse: “Nega, maluca! Você usou todo meu cacau em pó, mas nem posso reclamar porque esse bolo é o mais gostoso que já comi na vida! Até o Juquinha, que é tão enjoado, adorou!” — Vera imitou o tom fino da patroa, fazendo Carlos soltar um pequeno sorriso. 

    — Aí ela me perguntou o nome do bolo, e eu, na hora, fiquei nervosa. O patrão ainda estava com a cara feia por sua causa, e eu não queria puxar assunto… então, sem pensar, repeti o que ela tinha me chamado: “nega maluca”.

    Carlos não conseguiu conter uma risada baixa.

    — Não ria, menino! — ela disse, tentando parecer brava, mas com os cantos dos lábios tremendo de humor. — Na hora, a senhora Alice também riu um bocado. Achou graça no nome.

    — Pois é — disse Carlos, recuperando o fôlego. — A partir de agora, esse bolo vai se chamar Nega Maluca. E aposto que a senhora Alice adorou a “coincidência”. 

    “Afinal esse bolo se chama mesmo nega maluca, mas que coincidência hein. Aliás, será que o bolo se chama nega maluca por causa de algo assim também?”

    — Só não te bato porque preciso que me passe mais dessas receitas da sua terra — brincou Vera, sacudindo o dedo. — Mas voltando ao assunto, seu presente é um pedaço do bolo que sobrou. A patroa deixou para mim.

    — Não precisa, tia. Pode ficar. Afinal, foi você quem fez.

    Tia Vera balançou a cabeça.

    — Nada disso, menino. Já comi meu pedaço, experimentei com a senhora. E ela acha que fui eu quem inventou a receita… O mínimo que posso fazer é dividir com você.

    — Tudo bem — ele cedeu. — Se a senhora insiste, aceito. Mas também não fui eu quem inventei a receita. É coisa da minha terra, coisas que lembro.

    — Então me passe mais dessas lembranças gostosas depois — pediu Vera, erguendo-se com um gemido suave. — Agora, tenho que dormir. Amanhã o sol nem nasceu e eu já tenho que acender o fogão da casa-grande.

    Tia Vera se afastou, e Carlos a observou ir, sentindo o peso daquela rotina exaustiva. Logo depois de comer o pedaço de bolo, também se deitou, buscando um sono que demorou a vir.

    ───────◇───────◇───────

    O toque estridente do chamador cortou a madrugada como um golpe. Carlos abriu os olhos, e o mau humor o envolveu como um manto pesado antes mesmo de sua consciência estar totalmente desperta.

    “Nem um dia de descanso para as costas sararem”, pensou, amargurado. A dor nas costas era uma presença constante, uma brasa sob a pele, e sua perna, recentemente curada, latejava com a promessa de nova exaustão. “Não aguento mais. O corpo fede, a comida é sempre a mesma miséria, e a folga é uma ilusão. E o banho… pior de tudo, perder o banho no rio.” Lembrou, com frustração, que enquanto dormia, os outros foram se lavar, e ninguém o chamou. A sensação de sujeira grudada na pele era quase pior que a dor.

    Apesar do protesto interno, arrastou-se para o canavial. A manhã se arrastou sob um sol impiedoso, cujos raios pareciam agulhas de fogo cravando-se em suas costas feridas. O ar pesado e doce do caldo de cana cortado misturava-se ao cheiro de terra molhada e suor. Cada movimento era um suplício. Quando o sol finalmente começou a declinar, uma centelha de alívio o animou. Pelo menos escaparia daquele inferno e entraria no fresquinho da casa-grande, no “ar condicionado” que Pedro, com suas gemas, providenciava.

    Saiu do canavial sentindo o peso de olhares hostis nas suas costas. Eram olhares de ódio e desprezo dos outros escravizados.

    “Agora entendo a inveja”, refletiu, evitando encarar ninguém. “Mas direcionam a raiva para as pessoas erradas. Pedro, Tia Vera, eu… não somos os inimigos. O inimigo é o mesmo que nos mantém a todos nessa prisão. Trabalhar na casa-grande pode ser menos pior, mas ainda é escravidão. Tenho que me controlar a cada instante para não estrangular aquele velho imundo.” Seus dedos cerraram-se involuntariamente. “Tomara que o comerciante volte logo com as armas. É a única esperança de respirar ar livre.”

    Ao entrar na casa-grande, o contato com o piso frio de ladrilho foi um alívio imediato para seus pés doloridos. O ar era mais leve, sem o peso opressivo do exterior. Na cozinha, ouviu as vozes baixas de Dona Alice e Tia Vera. Passou por elas rapidamente, dirigindo-se à escada, mas não pôde evitar notar, pelo canto do olho, algo errado. Os olhos de Alice estavam vermelhos e inchados, e manchas roxas, nítidas contra a palidez de seus braços magros, sobressaíam sob as mangas do vestido.

    “O que aconteceu com ela?”, perguntou a si mesmo. “Pela descrição da Tia Vera, sempre pareceu tão… controlada. Aquele vermelho é de choro. Mas que me importa? Ela também é dona de escravos. É cúmplice.” Abafou o lampejo de curiosidade e seguiu para o escritório.

    Ao abrir a porta, uma atmosfera pesada o recebeu. Jorge estava em sua poltrona, o rosto uma máscara de irritação habitual. Pedro estava em seu posto, imóvel, e uma leve brisa fresca, carregada de umidade, emanava dele, combatendo o calor. No entanto, um cheiro forte e adocicado de cachaça impregnava o ar, pairando sobre a sala como uma nuvem tóxica.

    — Finalmente você aparece! — rosnou Jorge, sua voz embebida em álcool e desdém. — Já pensei que ia inventar outra desculpa para folgar!

    “De que adianta toda essa riqueza, todo esse poder, se você está sempre irritado?”, pensou Carlos, baixando a cabeça em uma respeitosa farsa.

    — Perdão pelo atraso, senhor. Na próxima vez, me apressarei mais.

    A tarde se arrastou em uma rotina recente: Carlos lia trechos de livros e explicava conceitos ao senhor, filtrando cuidadosamente seu conhecimento real, especialmente sobre qualquer coisa que cheirasse a estratégia ou armamento. Era perigoso saber demais. A noite caiu, e com ela, um cansaço profundo.

    “Mais um dia sem apanhar. Um triunfo.” Enquanto se arrastava de volta para a senzala, as imagens se conectaram em sua mente: o cheiro de cachaça no escritório, as marcas roxas nos braços de Alice, seus olhos vermelhos. Um frio percorreu sua espinha. “Não… aquele monstro bateu nela também.”

    Na calada da noite, encontrou Tia Vera perto das fogueiras já quase apagadas. A luz bruxuleante dançava em seu rosto cansado.

    — Tia Vera — começou ele, baixinho. — A senhora sabe por que a patroa estava cheia de marcas roxas hoje?

    Ela suspirou profundamente, um som que parecia carregar o peso de décadas.

    — Menino, você notou? Esperava que não… você é muito atento aos detalhes. Mas tudo bem, vou te contar. O patrão… a crueldade dele não é só para nosso lado. A senhora Alice sofre calada. Domingo à noite, ele ainda estava bufando de raiva por causa da igreja, do Tassi, e de você.

    — Quando fica assim, recorre à garrafa para se ‘acalmar’. Só que o álcool não o acalma, transforma-o em um demônio. A senhora me contou… — a voz de Vera embargou. — Ele começou a jogar e quebrar tudo na cozinha. Ela, conhecendo o feitio dele, trancou-se no quarto com o pequeno Juquinha. Mas a criança, com medo do barulho, começou a chorar desesperadamente. Nada que ela fizesse o acalmava.

    — O senhor Jorge ouviu o choro e subiu as escadas, resmungando palavras torpes. Arrebentou a porta e gritou: ‘Faça essa criança calar a boca! Você não serve para nada! Era para me dar um herdeiro digno das minhas gemas, mas só me dá esses trastes!’. — Vera fechou os olhos por um momento, como se revivendo a cena. — Ele pegou o cinto… e foi para cima do menino. ‘Se comporta como homem, porra! Homem não chora! Mas se quer chorar, vou te dar motivo!’.

    — Ele arrancou o Juquinha dos braços da mãe. Ela tentou segurá-lo, mas era como uma folha contra o vento. Ele começou a bater no menino com uma força desumana… até que a fivela do cinto acertou a cabecinha do pequeno. O sangue jorrou, e ele caiu, quieto.

    — Nessa hora, a senhora Alice gritou, agarrou o braço dele, implorando que parasse. Ele a empurrou com tanta violência que ela foi lançada ao chão. E então… então começou a bater nela. Socos, chutes… gritando que era o homem da casa e que ia ensiná-la a respeitá-lo. Só parou quando o cansaço o venceu, e foi dormir como um porco. Ela, com o que lhe restava de força, pegou o filho sangrando e correu para o padre.

    Vera fitou as chamas moribundas.

    — Sabe, menino, todos os outros filhos fugiram. Ou foram estudar longe, ou casaram cedo, qualquer coisa para escapar do pai. Sempre chamaram a mãe para ir com eles. Mas ele nunca deixa. Ele a mantém presa aqui, na esperança insana de que um dia ela lhe dê um filho que herde o dom das gemas de defesa, como ele. Este é o décimo segundo… Se Deus não quis até agora, quando irá querer? Mas o coração dele é uma pedra, e não enxerga.

    Carlos sentiu o estômago embrulhar. “Meu Deus… eu a julguei mal. Ela não é cúmplice. É outra prisioneira, outra vítima acorrentada àquele mesmo monstro.”

    — Toda vez que a cachaça fala, é a mesma tragédia — continuou Vera, a voz um fio. — Uma vez, eu estava lá… Tentei ser uma sombra, pois se ele faz isso com a esposa, o que faria com uma escrava? Mas esqueci o saleiro na mesa do jantar. Por esse motivo, ele pegou uma cadeira e a estraçalhou nas minhas costas. Até hoje sinto aquela dor. As pomadas do padre não apagam certas marcas.

    “Todo mundo aqui é uma vítima”, pensou Carlos, uma fúria fria e determinada crescendo dentro dele. “Tenho que tirar todos daqui.”

    — Sabe o que dói mais? — sussurrou Vera, as lágrimas finalmente rompendo a barreira. — É ver o olhar da patroa. Às vezes, é tão vazio… Não é por maldade. É porque a vida já fugiu de dentro dela por tantos anos. Ela só continua respirando por causa do Juquinha. Muitos da senzala pensam que ela vive no paraíso, que trocariam de lugar num piscar de olhos. Mas eu, que convivo com eles há trinta anos, sei. A dor dela é diferente, mas é real. É um vazio que consome por dentro… E me pergunto, o que será dela quando este último filho também conseguir fugir?

    Ela limpou o rosto com as costas da mão, envergonhada.

    — Menino, desculpe falar tanto. O Pedro já deve ter te dito que sou tagarela. Tento ser alegre, ver a beleza nas pequenas coisas, mas há dias… há dias que o peso é grande demais. Só de ter alguém para desabafar… já ajuda.

    Carlos ficou em silêncio. Nenhuma palavra parecia suficiente para aquele oceano de dor. Em vez disso, moveu-se e envolveu Tia Vera em um abraço firme e silencioso. O gesto simples quebrou as últimas barreiras da mulher, que chorou suavemente em seu ombro, seu corpo frágil tremendo contra o dele.

    Após o desabafo, Vera se recolheu, exausta. Carlos foi para seu canto, mas o sono não vinha.

    “A Tia Vera carrega um fardo tão pesado… e ainda assim encontra força para ser gentil. Deve ser um tormento para ela, testemunhar tudo e se sentir impotente.” A dor em seu peito era aguda, uma compaixão profunda por aquela mulher resiliente. “Reclamo da minha sorte, mas mal conheço o significado do sofrimento. Tomara… tomara que o comerciante chegue logo. Com as armas.”

    Enquanto essas pensamentos ecoavam em sua mente, o cansaço finalmente o dominou, e ele caiu em um sono agitado, enquanto a senzala mergulhava em um silêncio quebrado apenas pelos suspiros da noite.

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