Capítulo 13 - Papisa - Parte I
O primeiro raio de sol mal havia rompido o horizonte quando Carlos despertou, mas sua mente já estava pesada, revirando a conversa da noite anterior com Tia Vera. A imagem dos olhos vermelhos de Dona Alice e das marcas roxas em seus braços pálidos dançava em sua mente, alimentando um caldeirão de ódio silencioso. O ar úmido e pesado da senzala, carregado do cheiro de suor e terra, parecia ecoar sua impotência.
“No fim das contas” pensou, com uma amargura que deixava um gosto amargo na boca “só existe uma solução real. Acabar com aquele verme. É a única maneira de salvar a nós, a Alice e o menino. Ela pode não querer agora, mas será pelo bem do futuro dela e do filho.”
O dia se arrastou com a lentidão habitual, um fardo pesado sob o sol inclemente que queimava sua nuca. O ar do canavial era espesso, carregado do cheiro adocicado da cana cortada misturado ao odor acre de suor. A parte mais difícil, no entanto, foi a tarde. Cada momento na presença do senhor Jorge era um teste de autocontrole.
Quando a noite finalmente caiu, trazendo um alívio fresco que fazia a pele arrepiar, ele avistou Tassi sentado perto das brasas crepitantes de uma fogueira.
— Tassi — chamou Carlos, sentando-se ao lado do homem com um suspiro cansado — você cumpriu só parte da sua promessa. Quero ouvir o resto.
Ela não pareceu surpresa.
— Claro, claro — Tassi respondeu, esfregando as mãos enlameadas uma na outra — ontem até procurei você, mas parecia ocupado com a Tia Vera. Não quis me intrometer.
Carlos se aproximou e começou a sussurrar.
— E então, como foi a fuga de vocês? Não deve ter segredo, né?
— Segredo, não. Era paciência — ela sussurrou, inclinando-se para frente. A luz da fogueira acentuava o F marcado em seu rosto — Passamos o ano todo esperando a hora certa. O momento em que o Jairo, o capataz principal, não estivesse por perto. Sem ele, tudo ficava mais fácil. Escapamos na hora de trancar o portão da senzala. Como éramos muitos, conseguimos derrubar os guardas e sair correndo.
— Fugimos juntos para o mesmo lado. Éramos vinte e oito. Mas… — Ela fez uma pausa, e Carlos pôde ver o peso da memória em seus olhos — alguém deve ter nos traído. Alguém avisou o patrão, porque os capitães do mato já estavam à espreita. Metade do grupo foi pego antes mesmo de cruzar a cerca. O resto… bem, você já sabe o que aconteceu.
Carlos a encarou, uma pontada de desconfiança na voz.
— E o plano era fugir e deixar todo mundo para trás?
Ele viu os músculos do maxilar de Tassi se tensionarem, mas sua voz se manteve controlada.
— Claro que não! — Ela retrucou, com um fogo súbito nos olhos — O plano era chegar ao Quilombo da Jabuticaba e conseguir ajuda para libertar todo mundo. Mesmo que não quisessem nos ajudar, bastava conseguir uma arma mágica de terra ou grama. Com isso, dava para derrubar todos os capatazes. Talvez não matássemos o Jorge, mas dava para libertar todos os nossos.
— Mas o plano falhou — Carlos completou, o peso da derrota pairando entre eles como um nevoeiro.
— Falhou — ela ecoou, a voz carregada de uma tristeza profunda — e agora tem mais capatazes do que antes. Não sei mais como vamos sair daqui. Se é que um dia vamos sair.
Carlos baixou a voz para um sussurro áspero, quase inaudível.
— Vamos, sim. Só preciso de algumas balas.
Tassi deu de ombros, um gesto de resignação que parecia consumir todo o seu corpo.
— Claro, claro. Tomara que seu plano dê certo.
Carlos olhou em volta, seus olhos escaneando as sombras familiares da senzala. Pedro não estava em lugar nenhum.
— Tassi… — Carlos começou, hesitantemente — você acha que foi o Pedro quem contou do plano para o velho?
A resposta dela veio imediata e plana, como um golpe.
— Tenho certeza.
— Como pode ter tanta certeza? — Carlos argumentou, uma ruga de confusão surgindo em sua testa — Pedro foi quem pediu ajuda ao padre Antônio para tirar aquela máscara horrível de você. Ele passou pomada em todo mundo que foi açoitado. Por que faria isso se fosse o responsável por nosso estado? Só se tivesse um sangue-frio desumano.
— É exatamente por ser o responsável que ele faz isso — Tassi explicou, sua voz perdendo a aspereza e tornando-se cansada. Ela fitou o chão de terra, como se as respostas estivessem escritas ali — E entendo sua dúvida. Pedro sempre tenta ajudar. Já me salvou inúmeras vezes, assim como te ajudou. Ele é uma boa pessoa. Infelizmente, a situação em que se meteu o tornou nosso inimigo. Mas, veja bem… não sinto ódio dele.
— Como assim? — Carlos perguntou, intrigado.
Tassi ergueu os ombros novamente, um gesto pequeno e derrotado.
— É simples. Ele tem um filho.
— Eu sei disso. Mas isso não justifica trair a todos nós — Carlos insistiu, sua voz um misto de frustração e incredulidade.
— Você lembra da nossa conversa? — Tassi perguntou, erguendo os olhos para encontrá-los — Ele não acredita que podemos ser livres. Perdeu a esperança. Por isso, luta para ter a melhor vida possível como escravo para o filho dele.
Carlos balançou a cabeça, incapaz de compreender.
— Até entendo o pessimismo, mas estragar os planos dos outros não vai melhorar a vida do menino. Ser capacho do velho não garante nada — ele cruzou os braços — E como vai garantir que seu filho tenha uma vida melhor?
— Como não? — Tassi inclinou-se para a frente, sua voz se tornando intensa — O filho dele pode usar as gemas da grama e da terra. Isso o torna valioso para o senhor Jorge, pois ele faz a cana crescer mais e mais rápido, assim como eu. Sendo valioso, o senhor tratará o menino bem. O único trabalho dele será cuidar do canavial. Pelo menos, é nisso que o Pedro acredita.
— Mas que plano estúpido — Carlos resmungou, a raiva borbulhando em seu peito — Tanta coisa pode dar errado.
— Vou te falar que até concordaria com você antigamente — Tassi admitiu — Mas agora… acho que é uma aposta razoável da parte dele.
— Você sabe como ele trata a esposa e a nós — Carlos argumentou, sua voz carregada de descrença — Por que trataria um escravo diferente, mesmo com as gemas?
— Eu só sou maltratada porque não o respeito — Tassi explicou, sua expressão inexpressiva como uma máscara — Ele trata todo mundo mal e quebra tudo… tudo, menos sua preciosa coleção de “artefatos do diabo”. Aposto que não mataria sua própria galinha dos ovos de ouro. É por isso que ainda estou viva.
Carlos ficou em silêncio por um longo momento, as engrenagens em sua mente girando lentamente.
— Entendo… — ele finalmente disse, sua voz mais suave — Mas ainda não concordo.
— Também entendo seu lado — Tassi respondeu — Apesar de tudo… aquela criança saiu de mim. Então, de certa forma, fico feliz que ele faça de tudo por ela.
Carlos ficou paralisado, suas suposições desmoronando.
— Como assim, “saiu de você”?
— Acho que fui clara — a voz de Tassi era lisa como um seixo, sem emoção — Aquele é meu “filho” também, embora eu não o considere como tal. Não foi fruto de amor, de nenhum dos lados. Fomos forçados pelo senhor Jorge, na esperança de gerar uma criança com minhas aptidões mágicas. Pedro, no entanto, o considera seu filho. Eu deixei bem claro para ele e para a Tia Vera: aquilo saiu de mim, mas não é meu filho. Eles entendem e respeitam.
“As coisas aqui são muito mais complicadas do que eu imaginava” — pensou Carlos, esmagado pelo peso dessas revelações — “Lembro das aulas de história na escola, onde tudo era simples: vítimas e vilões. Mas aqui… tudo tem nuances. Alice é dona de escravos, mas é vítima do marido. Pedro é uma vítima, mas nos trai pelo filho. Tassi é uma mãe que rejeita a própria criança. Como julgar alguém num lugar desses?”
— E com isso — Tassi interrompeu seus pensamentos, seu tom final — suas dúvidas foram respondidas. Agora, é a sua vez. Conte-me sua história.
— Está bem — Carlos suspirou, sentindo o peso de suas próprias memórias se aproximarem — Na verdade…
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Dentro da Cidade Sagrada de Santa Maria, longe do calor e da dor do engenho, a Papisa Paula caminhava entre sua estufa. O ar era úmido e quente, pesado com o cheiro de terra fértil, vegetação e o perfume adocicado de flores raras.
“Todos os frutos deste pé são lisos” ela ponderou, sua mente analítica se conectando ao mundo físico ao seu redor “E este pé veio do cruzamento entre um de frutos lisos e outro de rugosos. A rugosidade é, portanto, uma característica recessiva. Exatamente como descrito no livro do diabo, ‘Introdução à Genética’. Fascinante.”
Ela anotou a observação em um caderno de capa de couro, sua caligrafia elegante e precisa riscando a página.
— E pensar que duvidei desse conteúdo. Mas será que o mesmo se aplica às aptidões para gemas mágicas? Algumas, como a do fogo, são comuns. Outras, como a da força, são raríssimas. Haveria um padrão hereditário similar?
Ao sair da estufa, o ar fresco do corredor de pedra foi um alívio para sua pele. Logo andou até seu escritório que era um santuário de conhecimento, com estantes abarrotadas de livros que chegavam ao teto.
Paula guardou o controverso “Introdução à Genética” em uma gaveta oculta de sua escrivaninha de mogno. Em seguida, pegou um volume imenso e pesado da estante. Na capa de couro gasto, lia-se: “Corpo Humano: Da Concepção à Morte”.
“Está na hora de parar de chamá-los de ‘livros do diabo’” refletiu, sentando-se na cadeira de espaldar alto, que rangiu suavemente “Este conhecimento não é maligno. Talvez seja uma mensagem divina, um teste de fé. Lembro-me de tê-lo confiscado de um comerciante. Sempre os lia antes de queimá-los. Jesus pode ter se disfarçado de mendigo para testar a fé dos homens. Por que a sabedoria não viria em um invólucro profano? Nunca se deve julgar um livro pela capa.”
Ela abriu o pesado tomo, o papel amarelado sussurrando sob seus dedos.
“Mesmo assim, as heresias aqui… são desconcertantes. Diz que o sexo é definido por “cromossomos” e que características masculinas e femininas são moldadas por “hormônios” como a testosterona e o estrógeno. Como isso pode ser? Somente Deus define nossa essência antes do nascimento. Pelo menos… era no que eu acreditava.”
A porta do escritório abriu-se com um rangido baixo. Um cardeal, com suas vestes vermelhas e cheiro de incenso, inclinou-se.
— Vossa Santidade Paula, o comerciante Francisco chegou.
— Obrigada. Mande-o entrar. E, assim que ele estiver aqui, assegure-se de que não sejamos perturbados.
Não demorou para Francisco aparecer. Ele era um homem gordinho e baixinho de olhos astutos e roupas simples, mas de bom corte, que cheiravam a poeira da estrada e a cavalo.
“Nesta sala tem apenas livros e imagens santas, uma sala bem simples” pensou ele, enquanto seu olhar percorria o ambiente “mesmo a papisa não possui muitos ornamentos. Realmente vive pela palavra de Deus evitando a luxúria. E pensar que a igreja dizia que era uma herege e iria queimá-la na fogueira.”
— Boa tarde, Vossa Santidade — cumprimentou ele, com uma reverência respeitosa.
— Boa tarde, Francisco — respondeu Paula, e um olhar genuinamente suave iluminou seus olhos azul-escuros por um instante — É sempre bom vê-lo. Teve uma boa viagem?
— Sim, Vossa Santidade. Obrigado por perguntar — seus olhos pousaram no livro aberto sobre a escrivaninha — Vejo que está relendo este volume antigo. Quem diria que aquele livro que lhe vendi mudaria sua vida. Foi uma grande coincidência.
— Não foi coincidência, Francisco — ela replicou, e agora seu olhar tinha uma centelha de superioridade divertida — Tudo faz parte do plano divino. Além disso, “vender” não é a palavra exata. Você estava escondendo o livro, e eu… convenci-o a cedê-lo. Não pode reclamar; se fosse com outro membro da Igreja, não teria ganho nem cem réis.
— Sempre serei grato — disse ele, com um sorriso leve que não chegava aos olhos — Embora ache que esse livro valha muito mais, considerando o que lhe proporcionou…
— Não se esqueça, Francisco — ela interrompeu, e agora seu tom era brincalhão, quase cantado — a ganância é um dos sete pecados capitais. Além disso, agora eu o pago generosamente por seus “serviços”. E falando nisso…
Francisco tossiu, cortando-a educadamente.
— Aqui está seu pedido de sempre — ele colocou sobre a mesa uma bolsa de pano pesada, que produziu um baque surdo — os relatórios dos padres dos engenhos por onde passei.
Paula pegou algumas cartas, seus olhos percorrendo as linhas rapidamente.
“Nada muito diferente do habitual” ela pensou, uma pontada de desânimo e frustração apertando seu coração “Torturas, assassinatos, luxúria… Tanto com escravos quanto com pessoas livres. E eu, sentada aqui, praticamente impotente. Se eu for muito rígida com senhores de engenho, quem sofre são os mais pobres e escravos. Às vezes, sinto que estou enxugando gelo.”
Enquanto ela folheava os relatórios, Francisco a observava atentamente.
— Vossa Santidade não precisava fazer tudo isso… O último papa não ligava para os negros e pobres, já falei uma vez com ele, tive que beijar sua mão sebosa e enchê-lo de elogios falsos antes que ele me ouvisse.
— Modos, Francisco… — ela advertiu, mas um quase-imperceptível sorriso tocou seus lábios — Mas você está certo. Era realmente uma mão sebosa. Mesmo assim, talvez eu deva ser mais rígida com você. Você ficou muito casual ao longo dos anos.
— Então quer que eu beije sua mão e a elogie falsamente? — ele perguntou, um tom brincalhão claro em sua voz — Posso fazer isso, se Vossa Excelentíssima Santidade desejar.
— Sempre o espertinho, não é? — ela disse, e desta vez permitiu que o sorriso iluminasse brevemente seu rosto — Não há necessidade. Mas, de qualquer forma, não me compare àquele crápula. Ao contrário dele, eu me esforço para seguir os ensinamentos de Deus.
Seus dedos, que percorriam as páginas, pararam subitamente em uma carta específica. O relatório era do padre Antônio, do engenho de Jorge Oliveira.
“Antônio… um jovem tão promissor” ela recordou, uma sensação de oportunidade perdida amargando seu paladar “Cheio de fé e com um dom mágico notável. Uma pena que ele escolheu um engenho no fim do mundo.”
Seus olhos se fixaram em uma passagem específica, e o ar ao seu redor pareceu parar.
“Um escravo que apareceu do nada. Roupas estranhas. Conhecimento sobre artefatos profanos. Interessante.”
Ela ergueu os olhos, seu olhar azul-escuro, agora afiado e intenso, fixando-se em Francisco.
— Francisco… você notou algo incomum no engenho do Seu Jorge de Oliveira?
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