Capítulo 16 - Liberdade
Tassi mal podia acreditar no que seus olhos testemunhavam. Cada vez que Carlos usava aquele estranho artefato do diabo, um estampido ensurdecedor cortava o ar, seguido por algo invisível que se chocava violentamente contra as barreiras mágicas de Jorge. A velocidade dos ataques era tanta que seus olhos mal podiam acompanhar. Um cheiro de pólvora queimada, metálico e acre, impregnava o ar. De repente, Carlos parou. A arma emitiu um clique seco e ele a jogou no chão. Por um instante, os escudos de Jorge pareciam intactos, reluzindo sob o sol como finas películas de vidro.
A trégua, porém, foi breve. Carlos apanhou um segundo artefato do chão poeirento e recomeçou o bombardeio. Nesse ínterim, Jairo, com os músculos tensionados e os punhos cerrados, parecia prestes a investir contra Carlos, mas hesitou. Atacar significaria abandonar a proteção e se expor àquela fúria mortal. Foi então que, com a nova arma em mãos, Carlos conseguiu quebrar uma das barreiras de Jorge e, no rastro do ataque, matá-lo. Mas Tassi notou algo que a deixou pasma: apenas a barreira da gema de defesa comum se estilhaçara. A barreira da gema de defesa divina permanecia intacta, pulsando com uma luz suave e inabalável.
“Isso é impossível”, pensou ela, o coração acelerado. “Para ter atravessado a barreira de defesa divina, o que atingiu Jorge não podia conter magia alguma! Se contivesse, a barreira divina teria detido o ataque. Mas como é possível? Um ataque à distância, com tanto poder… e sem magia? E não só isso: a barreira comum foi quebrada com uma facilidade assustadora! Um guerreiro habilidoso levaria uma hora para rompê-la. Pela história que ele me contou, de ser de outro mundo, imaginei que fosse louco… mas parece que estava falando a verdade. Nenhuma arma assim pode ser deste mundo.”
Ficou chocada por alguns segundos, a mente girando, até que o som de um golpe surdo a fez voltar a si. Jairo atacava e acertava Carlos.
“Pelo visto, ele não consegue atacar infinitamente com a mesma arma — por isso precisa pegá-las no chão. Jairo também deve ter percebido. Preciso criar uma abertura para Carlos!”
Tassi apanhou uma pedra áspera e fria que estava por perto e correu em direção a Jairo, arremessando-a com força. A pedra acertou-o na cabeça com um baque surdo, fazendo-o cambalear. O estratagema deu a Carlos um respiro, ainda que breve, pois Jairo já se recuperava para outro ataque. Tassi procurava desesperadamente outra pedra quando Pedro interveio, atacando Jairo primeiro. Foi a deixa que Carlos precisava para dar um fim ao capataz.
“Pelo visto, Pedro finalmente escolheu um lado”, refletiu Tassi, aliviada. “Embora eu sempre soubesse que seu coração estava conosco. Ele só queria uma vida melhor para o Juquinha e não acreditava que a liberdade era possível. Agora, acho que não há como negar a realidade cruel que se impõe.”
Sem perder tempo, Tassi começou a eliminar os capatazes restantes um a um. Percebendo que alguns se dirigiam aos estranhos artefatos, correu em direção às armas, recolheu-as com cuidado e juntou-se novamente à luta, seu corpo suado e dolorido respondendo aos reflexos treinados.
Passado algum tempo, a luta havia acabado. O pátio, outrora um lugar de trabalho árduo, agora era um cenário de libertação. Ela se dirigiu a Carlos, que estava sentado, respirando fundo e se recuperando.
— Você realmente não é um guerreiro — disse ela, a voz carregada de uma admiração profunda —, mas mesmo assim matou eles. Cumpriu o que prometeu: libertou todos nós! Serei eternamente grata por isso. Agora, vá até o padre e peça que ele passe alguma pomada. Tenho certeza de que vai ajudá-lo com esses ferimentos.
Carlos sentia uma dor latejante no braço. Levantou o olhar para o rosto de Tassi, para aqueles olhos verdes como esmeraldas, e disse, com a voz rouca pelo cansaço:
— Ainda não somos livres. Precisamos sair daqui. Podem aparecer capitães do mato ou algo pior. Além disso, não quero que os escravos libertos descontem seu ódio em pessoas inocentes, como os homens livres ou a mulher do senhor do engenho.
Tassi animou-se e respondeu com determinação:
— Entendo, mas não se preocupe, eu cuido disso. Sei como a Alice sofria nas mãos daquele verme. Também falo com a Tia Vera, ela saberá acalmar os ânimos. A maioria daqui sabe muito bem quem merece direcionar seu ódio. Claro, nem todo mundo é perfeito. Agora, vá se tratar!
Carlos, ainda com dor, murmurou:
— Obrigado. Tenho mais um pedido: vá à casa do senhor do engenho e pegue todos os artefatos e livros que encontrar. E cuide dessas armas para mim.
Tassi confirmou com um aceno de cabeça.
— Farei isso. Agora pode ir.
Sem demora, Carlos dirigiu-se à capela. Tassi, por sua vez, começou a recolher as armas e munições, juntando tudo sob a sombra de uma árvore. Em seguida, aproximou-se de Pedro, que parecia perdido, olhando para o vazio.
— Agora você não tem mais escolha — disse ela, firmemente. — Vai ter que nos ajudar a sair daqui.
Pedro balbuciou, confuso:
— É que… foi tudo tão repentino. Quando vi, meu corpo agiu por conta própria. Não sei se fiz o certo. Ajudei a matar uma pessoa. Será que um homem de Deus deveria ter feito isso?
Tassi respondeu com uma calma que soava quase maternal:
— Infelizmente, não posso responder a isso. Mas agora você deve se preocupar é com seu filho. Aqui não há mais futuro para ele. Venha conosco para o quilombo. Lá, seu filho terá uma vida boa.
Pedro suspirou profundamente, como se um peso fosse retirado de seus ombros.
— Tudo bem. O que preciso fazer?
Tassi apontou para o monte de armas e munições debaixo da árvore.
— Apenas cuide para que ninguém mexa naqueles artefatos do diabo. Apesar de que, suspeito, só o Carlos deve saber como usá-los.
Depois de dizer isso, Tassi entrou na casa-grande. Lá dentro, o ar era pesado e cheirava a cera e medo. Encontrou a senhora Alice encolhida num canto da cozinha, o rosto pálido e os olhos arregalados de terror. Tia Vera estava ao seu lado, e ao ver Tassi entrar, perguntou, sua voz um fio de ansiedade:
— O que foram aqueles barulhos altos? O que aconteceu lá fora?
Tassi, impassível, declarou:
— Carlos matou o senhor do engenho e vários capatazes. Os que sobraram, nós mesmos terminamos. Com todos os capatazes mortos, somos livres agora!
Alice ouviu as palavras, e em seu rosto era possível ver uma tempestade de emoções: alívio, ansiedade, medo, uma centelha de felicidade. Mas, entre todas essas sensações, não havia um pingo de tristeza.
Ela olhou para Tia Vera e disse, a voz trêmula:
— O que eu vou fazer agora? — Mal terminou a pergunta e começou a chorar, lágrimas silenciosas escorrendo por seu rosto.
Tia Vera, sem saber o que dizer, apenas a abraçou forte. Tassi, porém, não estava para sentimentalismos.
— Chorar não vai adiantar nada! — disse, sua voz firme ecoando na cozinha silenciosa. — Agora você é livre também. Aposto que o velho devia ter algum dinheiro guardado. Pegue o que é seu, saia daqui com seu filho e nunca mais compre outro escravo!
Após falar isso, nem esperou por uma resposta. Virou-se e começou a subir as escadas, mas, antes de chegar ao segundo andar, voltou-se.
— Ah, quase me esqueci — disse, seu tom era de aviso, não de pedido. — Vamos levar várias coisas desta casa. Digamos que será o nosso pagamento por tanto trabalho durante todos estes anos. E Tia Vera, nem pense em ir com ela. Você tem um neto e também merece trabalhar menos. — Sem aguardar réplica, continuou sua subida, deixando as duas mulheres sozinhas com seus pensamentos.
Tia Vera olhou para sua patroa e, com uma brandura que contrastava com a frieza de Tassi, disse:
— Ela tem razão, minha senhora. Você pode pegar o dinheiro e ir morar com um de seus filhos na cidade.
Alice parou de chorar, enxugou as lágrimas com as costas da mão.
— Tem razão. E posso vender este lugar imundo.
Ela abriu a boca para dizer algo mais, mas hesitou. Ficou em silêncio por um momento, um silêncio carregado de anos de sofrimento e submissão, antes de abraçar Tia Vera com uma força desesperada.
— Obrigada por tudo o que você fez por mim, Vera. Cuide do seu neto. Seja livre, porque eu também serei.
Tia Vera não conseguiu responder. As palavras morreram em sua garganta, substituídas por lágrimas silenciosas. Alice soltou o abraço e, com uma determinação recém-descoberta, começou a subir as escadas para o seu quarto. Seu filho de dez anos estava lá, absorto em seu mundinho, brincando com uns brinquedos no chão. Era uma criança caseira, que sempre encontrara refúgio em sua imaginação, especialmente quando o caos e a violência do marido perturbavam a casa.
Tassi, entretanto, havia enchido um saco pesado com os livros do escritório de Jorge. Ao descer, viu Tia Vera ainda parada na cozinha, imóvel.
— Não fique aí parada — ordenou Tassi, um fio de irritação na voz. — Me ajude a levar estas coisas para onde o Pedro está.
Tia Vera, ainda atordoada, respondeu, olhando para as próprias mãos:
— É que… nunca imaginei que este dia chegaria. Se ao menos tivesse chegado quando era mais nova… Agora nem sei o que fazer.
Tassi retrucou, impaciente:
— Como já disse, me ajude com estas coisas. Estes livros são pesados, e há muitos deles.
A firmeza de Tassi pareceu quebrar o feitiço de incredulidade que prendia Vera.
— Ha ha ha — ela riu, um som cansado mas genuíno. — Você é sempre tão prática, não é mesmo? Tem razão. Vou te ajudar.
Ambas saíram da casa-grande e se depararam com uma cena de caótica euforia. Uma multidão se aglomerava ao redor do pátio. Alguns ex-escravos dançavam capoeira, seus corpos suados se movendo ao ritmo contagiante dos berimbaus. Outros gritavam de alegria, enquanto muitos simplesmente caíam de joelhos no chão batido, chorando de emoção. No entorno, os homens livres observavam a cena com preocupação estampada no rosto, mantendo uma distância prudente.
Quando Tassi surgiu na porta, um dos escravos que trabalhava na moenda se aproximou.
— Tassi, foi você quem matou o seu Jorge? Seremos todos livres, então?
Tassi olhou para ele, um tanto confusa com a pergunta, e falou em voz alta, para que todos ouvissem:
— Quem matou Jorge foi o Carlos! E graças a ele, seremos todos livres!
A confirmação ecoou pela multidão. Alguns ex-escravos soltaram gritos de “Finalmente, liberdade!”, enquanto outros, esgotados pela emoção, desabavam em prantos. A euforia era palpável, um calor humano que contrastava com o medo frio que pairara sobre o lugar por tanto tempo. Os homens livres, embora apreensivos, não ousavam interferir.
Pouco depois, Alice apareceu na porta, segurando malas em uma mão e a mão do filho na outra. Seu rosto, outrora sempre abatido, agora mostrava um vislumbre de determinação. Ao avistar os homens livres ao longe, gritou, sua voz clara e firme cortando o alvoroço:
— Preciso que alguém me arrume uma carroça para me levar à cidade! Vou pagar bem!
A súbita autoridade em sua voz surpreendeu a todos. Nunca a tinham ouvido falar daquela maneira. Infelizmente, alguns dos ex-escravos lançaram olhares carregados de rancor e mágoa na direção de Alice, o que não passou despercebido por Tassi.
— Ouçam bem! — sua voz soou como um chicote, restabelecendo a ordem. — Carlos foi quem nos deu a liberdade, e me disse que qualquer um que fizer algo contra a Alice ou contra qualquer homem livre terá o mesmo fim que Jorge!
Ela fez uma pausa, deixando as palavras ecoarem.
— Além disso, ainda não estamos totalmente seguros. Precisamos nos preparar para sair daqui antes que os capitães do mato apareçam. Vamos para o Quilombo da Jabuticaba, onde poderemos viver sem ser perseguidos!
Alice ficou surpresa com a defesa inesperada. Um sentimento de culpa e gratidão misturou-se em seu peito.
— Obrigada — disse ela, sua voz mais baixa agora, mas ainda firme. — E sinto muito… sinto muito por nunca ter impedido meu marido de fazer as coisas horríveis que ele fez a vocês.
Tassi ignorou o pedido de desculpas. Para ela, algumas feridas eram profundas demais para serem curadas com palavras. Voltou ao trabalho, seu foco agora era na sobrevivência e na fuga.
Enquanto isso, na capela, Carlos era tratado pelo padre Antônio, que aplicava uma pomada de cheiro forte no ferimento do braço. O padre estava visivelmente chocado com os eventos, mas, em seu coração, não condenava Carlos. Para ele, lutar contra um tirano não era pecado, mas um ato de justiça. Era uma convicção que o tornava único entre os de sua ordem, embora soubesse que, em algum lugar da cidade sagrada, a própria papisa talvez compartilhasse de seu pensamento.
Quando Carlos saiu, Antônio o acompanhou, decidido a falar com Alice. Ao se aproximarem do pátio, viram que ela já quase terminara de carregar a carroça com suas coisas. Tassi, por sua vez, havia reunido todos os artefatos e itens solicitados.
Ao verem Carlos, os ex-escravos não conseguiam contê-lo. Agradeciam, choravam, tentavam tocar seu manto. A comoção o deixou sem jeito, um rubor subindo-lhe ao rosto. Ele se recompôs e se aproximou de Tassi.
— Pegou tudo? — perguntou, sua voz ainda um pouco fraca.
— Sim — respondeu Tassi, com um aceno de cabeça decisivo.
Carlos então pensou, um pouco arrependido: “Eu deveria ter pedido para pegar mais coisas além dos artefatos. Deve haver muita coisa útil naquela casa”.
— E aqueles frascos… para verificar se uma pessoa é capaz de usar gemas mágicas? — perguntou ele, tentando lembrar do nome.
— Está falando dos testes de proficiência mágica? Peguei — respondeu Tassi, de forma direta e eficiente.
— É, havia esquecido o nome. Obrigado por pegar. E quanto ao seu cajado mágico? Ele é muito útil.
— Peguei ele, assim como o chicote do Jairo. Também peguei comida para a viagem. Está tudo certo. Só me ajude a carregar tudo para podermos sair daqui logo. Também peguei roupas para usarmos no lugar destes trapos velhos, e a Tia Vera pegou bastante açúcar e outras coisas da cozinha. Ela e a Alice dividiram o que havia — enumerou Tassi, praticamente.
— Que bom que você é esperta — disse Carlos, visivelmente aliviado. — E obrigado por me ajudar na luta contra o Jairo.
Enquanto isso, um pouco afastado da multidão, o padre Antônio conversava com Alice, que ajustava as últimas amarras na carroça.
— O que você vai fazer agora, minha filha? — perguntou ele, com sua voz calma e paternal.
— Vou sair daqui — respondeu ela, com uma voz pesada pela emoção, mas com uma centelha de vida renovada nos olhos. — Não existe mais nada para mim nesta terra.
— Entendo. Que bom que você está decidida. Mas seria bom eu ir com você. A estrada é perigosa, e ninguém se atreveria a mexer com um padre por estas bandas — insistiu Antônio, com um sorriso tranquilizador.
— Obrigada, padre. Mas não precisa fazer isso se for atrapalhar o seu trabalho — disse Alice, sua voz ainda cansada, mas agora com uma vitalidade recém-descoberta.
— Não se preocupe com isso. As pessoas que mais precisavam de mim estão partindo. E eu também preciso ir à cidade sagrada para relatar o ocorrido. Apesar de achar a ação deles justa, sou membro da igreja e tenho minha obrigação. Mas não tema, a papisa é uma pessoa bondosa e compreensiva. Ela entenderá a situação, e nada de mal acontecerá a estas pessoas — explicou o padre, tentando acalmar seus receios.
— Não me importo com o que vai acontecer com eles — disse Alice, seu olhar se dirigindo para onde Tia Vera organizava seus pertences. — Só me importo com a Tia Vera. Espero que ela seja feliz.
Não muito tempo depois, sob um céu que parecia mais aberto e esperançoso, o grande grupo começou a se mover. Ex-escravos, uma senhora libertada de suas correntes douradas, um padre e um forasteiro de outro mundo. Cada um carregando seus próprios fardos, seus traumas e suas esperanças, partiam juntos em busca de um novo amanhecer, deixando para trás os horrores do engenho, rumo a uma vida que, finalmente, lhes pertencia.
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