Índice de Capítulo

    No primeiro dia vivendo no quilombo, Carlos passou o dia todo trabalhando na roça, cavando a terra sob um sol que queimava a nuca e plantando as mudas. Como não sabia nada sobre aquilo, parava a todo instante para perguntar aos outros ex-escravos do engenho. Precisava entender a profundidade exata dos buracos para as sementes, a distância certa entre elas e uma porção de outros detalhes. Até tinha um livro que conseguira do engenho sobre cultivo, mas era melhor perguntar aos colegas — além de aproximar-se deles, evitava sujar as preciosas páginas com a terra que gruda nos dedos.

    Muitos daqueles homens e mulheres traziam consigo o conhecimento de uma vida inteira, cultivando sua própria terra antes do cativeiro, e até plantando escondido do senhor em certos recantos. Infelizmente, essas roças clandestinas nunca duravam muito; sempre havia alguém que, por medo ou favor, corria a contar tudo ao senhor do engenho.

    Carlos notou que todos estavam infinitamente mais receptivos do que no tempo da senzala. É claro, ele havia matado o senhor e garantido a liberdade deles.

    Apesar de ser um trabalho duro, que deixava suas mãos calejadas e sujas de terra sob o sol inclemente, era bem melhor do que trabalhar no engenho com o chicote zunindo nas costas. Mas isso não significava que a vida ali fosse ideal — não pelo cansaço do corpo, mas pela crueza da existência. O mundo ali era desprovido do mais básico conforto. O banheiro, por exemplo, era uma casinha de madeira precária. Lá dentro, os dejetos caíam num poço escavado no chão, que se usava até transbordar, para então se abandonar e cavar outro. O poço atual estava quase cheio; dava para ouvir o zumbido baixo e insistente das moscas e sentir o cheiro doce e fétido da decomposição. Pior era quando o buraco estava à beira do transbordo, e era possível ver a massa branca de larvas se contorcendo no fundo, um espetáculo horripilante para os olhos e o estômago. E, para completar, não havia um mísero pedaço de papel higiênico.

    Pelo menos, no que se referia aos banhos, a situação era melhor. Perguntando aos guardas, descobriu que se banhavam num riacho de água fria que descia da montanha, cujo barulha era um convite à limpeza.

    — Odeio ter que catar um monte de folhas para me limpar — pensou, com nojo. — E não há um sabonete sequer. Pelo menos temos arroz e feijão; estava cansado de comer só feijão puro. Queria poder plantar tomates e repolho, mas ninguém aqui sabe o que é isso… nada de salada. E trigo, então? Nem pensar, o clima não deixa. Nada de pão, nada de bolo. Como é que se faz um café da manhã sem pão? E, mais importante ainda, sem café!

    Depois de descontar a frustração na enxada, foi sentar-se à sombra de uma árvore. Trouxera consigo todos os livros que pegara no engenho e começou a examiná-los. Já era entardecer; o sol, alaranjado e fraco, ainda insistia no céu, mas a maioria do pessoal já parara de trabalhar. O ar começava a esfriar, carregando o cheiro úmido e reconfortante de terra molhada.

    “Os livros que tenho são bons,” refletiu, passando os dedos pelas capas gastas e ásperas. “Tenho vários, mas os mais importantes são: ‘Plantas do Brasil e do mundo e como cultivá-las’, ‘Guns and History’, ‘1001 Inventions that changed the world’, ‘Guia das Riquezas Naturais e Minerais do Brasil’ e ‘Revolução Industrial: As Máquinas que Mudaram o Mundo’. Quando tentava explicar sobre as máquinas e invenções para o senhor do engenho, ele não acreditava que existiam de verdade. Eu nem me dava ao trabalho de convencê-lo; só dizia que devia ser um livro de invenções de algum maluco imaginativo.”

    “Os demais livros também são interessantes, só não têm utilidade para mim agora — falam de física, eletricidade, borracha, etanol… Sem dúvida serão úteis no futuro.”

    Depois de olhar os volumes mais uma vez, notou um fio condutor entre eles.

    “Esses livros são estranhos. Não os livros em si, mas a seleção. Se eu entrasse numa livraria ou biblioteca, não os encontraria facilmente juntos. No entanto, todos os livros que o diabo me deu são técnicos. Nenhum é de história, ficção ou aventura; todos falam sobre como fazer algo, para que serve e sua história. Nada de Harry Potter, Senhor dos Anéis ou Dom Casmurro. Não vou reclamar, porque é exatamente esse tipo de livro que preciso agora. Só acho estranho. Será que todos os livros que vêm para este mundo são assim? Os itens também… além das armas, tudo aqui tem um propósito prático: o isqueiro, o canivete, o relógio de pulso, a régua… A exceção sou eu, e a figura de anime. Por que vim parar aqui? Será que é porque tenho alguma utilidade? Infelizmente, não tenho como descobrir agora… Vou me focar em aprender e usar esse conhecimento.”

    “Vou começar pelas armas de fogo. Garantir a defesa do quilombo é essencial. Além disso, falei com os guardas e soube que há vários ferreiros aqui; no passado do meu mundo, eram eles que fabricavam as primeiras armas de fogo. Se as armas forem úteis, vão me dar mais ouvidos. Com isso, terei mais recursos e pessoas ao meu dispor, e poderei melhorar a vida daqui aos poucos. Infelizmente, uma arma é inútil sem pólvora, e tenho medo de que não tenhamos os materiais. Segundo ‘Armas e História’, preciso de salitre, enxofre e carvão. O último não é problema, mas enxofre só se encontra perto de áreas vulcânicas, o que não há no Brasil. Não sei se o quilombo conseguiria obtê-lo por comércio. Existem outras formas, mas são bem mais trabalhosas. O mesmo vale para o salitre.”

    “De qualquer forma, não adianta me preocupar agora. Só me resta esperar para ver se aceitam minha oferta de fabricar armas. Antes disso, preciso ser aceito pelo quilombo. Tomara que não demore; disseram que quem tem habilidades especiais é aceito mais rápido, que é o meu caso.”

    Enquanto Carlos estava imerso em seus pensamentos, não percebeu que Pedro estava de pé à sua frente, tentando chamar sua atenção.

    — Ei, Carlos! Tá me ouvindo?

    Carlos reagiu, e então Pedro estalou os dedos diante de seu rosto, fazendo-o dar um pulo.

    — Nossa, homem! Quer me matar do coração? — olhou para os lados e viu que a noite já havia caído por completo. — Já escureceu? Que horas são?

    — Ha ha ha, desculpa te assustar. Não sei que horas são, só sei que a comida já está pronta. Por isso vim te avisar.

    — Obrigado. — ele se levantou e começou a juntar os livros. Pedro se abaixou para ajudá-lo.

    — Sabe, queria pedir desculpas — disse Pedro, a voz carregada de um remorso sincero. — Nunca achei que você iria conseguir escapar, nem você nem ninguém. Por isso ajudava o senhor do engenho. Sinto muito por isso, mas vou te compensar. Sempre que precisar de ajuda, é só falar. Na verdade, conversei com as outras pessoas do engenho, e vamos te ajudar a fazer sua casa.

    Carlos terminou de juntar os livros.

    — Fica tranquilo, Pedro. A Tassi me contou que você fazia isso por causa do seu filho. Não guardo ressentimento. Mas não vou negar ajuda, não; não tenho a menor ideia de como se faz uma casa.

    Olhando para algumas famílias ao longe construindo suas casas, pensou: “Se fosse de tijolos e cimento, até saberia, já fiz bico como pedreiro na época da faculdade. Mas as casas daqui parecem ser feitas de barro. Não faço ideia de como se constrói uma casa dessas. Não deve ser tão complicado, mas é melhor receber ajuda de quem entende.”

    — Você é mesmo uma pessoa bem diferente — disse Pedro, balançando a cabeça com um sorriso tímido antes de se virar e ir embora.

    Carlos ficou olhando para suas costas, pensando: “Não é que eu seja diferente, é que bem você, me ajudou a escapar então posso te perdoar. Mas se eu tivesse no lugar da Tassi e dos outros… não sei se teria te perdoado.”

    No dia seguinte, Carlos foi mais produtivo na roça, mas ainda estava longe do ideal. Tassi também não se saía muito melhor; ela era boa em combate e magia, não em plantar. Aliás, usava o cajado com gemas de terra e grama todos os dias nas plantações. Por sorte, os capitães do mato apenas confiscavam armas mágicas e de fogo, mas ferramentas deixavam em paz. Graças aos poderes dela, dava para ver claramente as plantas crescendo rapidamente, um verde vibrante e saudável tomando conta do terreno, um espetáculo de vida que alegrava o coração.

    Já que as pessoas não precisavam cuidar tanto das plantas, graças à magia de Tassi, começaram a erguer suas casas. Várias vieram ajudar a construir a de Carlos. As moradias eram feitas de taipa, uma mistura de palha, barro e estrume, aplicada sobre uma estrutura de madeira. Em uma semana, sua casa estava pronta. Mas ele não estava exatamente feliz.

    “Agradeço pela ajuda do povo, mas uma casa de terra é o fim da picada,” refletiu, observando a estrutura rústica. “Como vou me sentir bem num lugar que parece um formigueiro gigante? É muito feia. No futuro, terei uma casa de tijolos, custe o que custar!”

    ───────◇───────◇───────

    No Mocambo da Serra, centro político e militar do Quilombo da Jabuticaba, Espectro estava em sua sala, sentado numa cadeira de madeira rústica, ouvindo o relatório de um de seus guardas. Atrás dele, diversas armas mágicas estavam encostadas na parede, suas gemas opacas à luz fraca e tremula da lamparina que espalhava sombras dançantes. À sua frente, sobre a mesa de madeira maciça, estavam as armas de Carlos.

    — Chefe, pelo que vimos, o grupo que veio do engenho do Seu Jorge estava falando a verdade. Nossos batedores foram até lá e não havia nenhum escravo ou capataz vivo. Só alguns capitães do mato vasculhando o local, tentando caçar algum fugitivo. Um dos nossos batedores, que é mestiço, conseguiu se aproximar e falar com um pescador do engenho. Ele disse que Jorge foi morto com algum tipo de arma diferente.

    Espectro ainda analisava as estranhas armas metálicas, frias ao toque.

    — Vou repassar essa questão para Ganga Zala. Ele decidirá o que será feito com o engenho. E quanto aos recém-chegados, notou alguma coisa estranha?

    O guarda balançou a cabeça.

    — Não, senhor. Todos estavam motivados, plantando e fazendo suas casas. Pelo visto, o senhor do engenho não os deixava cultivar nada, pois muitos tinham dificuldade para começar. Os que sabiam, ajudavam os outros. E já conseguiram colher a própria comida, graças à mulher com um ‘F’ na testa. Ela usa um cajado para deixar o solo mais fértil e fazer as plantas crescerem. O nome dela é Tassi.

    Espectro recostou a cabeça sobre o punho, os cotovelos apoiados na mesa, enquanto relembrava o rosto dos novos integrantes.

    — Pelo que me lembro, só ela e mais um homem sabem usar gemas mágicas, não é? Apesar de que, no momento, não temos nenhuma arma que use gema de gelo para dar a ele. De qualquer forma, os dois seriam bem-vindos no exército; sempre precisamos de bons guerreiros. Mas estou mais curioso com essas armas aqui. Elas não se parecem com nada que eu conheça. Eu nem consigo usá-las.

    O guarda, olhando para as armas com curiosidade contida, começou a explicar.

    — Chefe, pelo que as pessoas falaram, essa arma é muito mais potente que um arco. Dizem que o Carlos matou um usuário de duas gemas: a de defesa e a de defesa divina.

    Espectro balançou a cabeça, um ceticismo rouco em sua voz.

    — Você sabe como sempre exageram as histórias. Apesar disso, qualquer ajuda será bem-vinda. Temos que aproveitar este pouco tempo de paz, enquanto os portugueses se recuperam da guerra contra os holandeses, antes que retomem os ataques ao quilombo. Se pudermos conseguir mais um tipo de arma, seria excelente. Afinal, sempre é difícil conseguir armas mágicas.

    Ele olhou mais uma vez para as armas, sua superfície metálica refletindo a luz fraca, antes de começara guardá-las em uma caixa de madeira.

    — Amanhã vamos falar com o Carlos para ver como essas armas são usadas. Aí veremos se essas histórias não passam de exagero ou se são reais.

    Depois que seu guarda saiu, Espectro ficou sozinho, pensativo. O silêncio na sala era quebrado apenas pelo crepitar da lamparina.

    “Aqua disse que aquele homem é capaz de criar mais armas como essas. Infelizmente, não tenho muito interesse em armas não mágicas, ainda mais de longa distância. Duvido que sejam melhores que um arco. Mas não custa nada ver o poder dessas tais armas.”

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