Índice de Capítulo

    A madrugada ainda envolvia o mundo em um manto úmido e frio quando Carlos recuperou a consciência. A primeira sensação foi uma dor latejante na cabeça, seguida pela descoberta de que suas mãos estavam firmemente amarradas por videiras resistentes. Ele estava sendo arrastado pelo cavalo de Joãozinho, seu corpo raspando contra a vegetação rasteira. À frente, Tassi caminhava com os braços presos por um cipó vivo que pareça contrair-se a cada movimento, seguida de perto por Sebastião, montado em seu cavalo e vigilante.

    No horizonte, sob a copa de uma árvore solitária, uma fogueira crepitava. Ao seu redor, viam-se figuras acorrentadas e capitães do mato em vigilância. Ao avistar a cena, Tassi sentiu um nó se formar em seu estômago. “Não… Achei que pelo menos alguns tivessem conseguido escapar…”

    Sebastião, embora não visse seu rosto, imaginou perfeitamente sua expressão. Um sorriso satisfeito surgiu em seus lábios rachados.

    — Achô que esses neguinho iam fugir, hein? Hahaha! — sua voz ecoou, áspera, no silêncio da madrugada.

    — Até que é esperta pra uma preta… Mandô todo mundo pro lado contrário! Claro que a gente ia atrás de você, vale mais que tudo essa ruma de negro junto! Mas achô mesmo que eu ia mandá tropa toda? Só eu e o piá aqui já bastô pra te pegar!

    Tassi, apesar da fúria e tristeza que a consumiam por dentro, manteve o rosto impassível. Ela se virou lentamente, seu olhar fixando-se na ferida exposta na sobrancelha de Sebastião — um corte profundo onde era possível vislumbrar o branco ossudo sob a carne dilacerada. Outro corte, ainda sangrento, marcava sua bochecha, e suas mãos estavam roxas e inchadas. Sem proferir uma palavra, seu olhar disse tudo: o preço de sua captura havia sido alto.

    Sebastião engoliu em seco, a raiva fervendo em seu peito, mas não retrucou. A captura dela havia sido, de fato, mais difícil do que o esperado — desde a perseguição inicial, onde ela coordenava o grupo e os atacava com pedras certeiras, até a separação tática e o encontro fortuito com o escravo de roupas estranhas.

    Logo se juntaram ao grupo principal de escravos. Todos estavam com as mãos atadas, vigiados por mais três capitães do mato. Estes, ao verem o estado de Sebastião, trocaram olhares curiosos, mas nenhum ousou questionar. O importante era que todos os fugitivos estavam capturados, e a recompensa seria paga ao amanhecer. Agora, podiam descansar, revezando-se na vigia.

    Joãozinho desceu do cavalo e, com a ajuda de outro capitão, depositou o corpo inerte de Carlos no chão. Percebendo a curiosidade mista com apreensão no olhar de seus homens, Sebastião resolveu explicar:

    — Esse corno aqui ajudô essa puta a me bater — anunciou, apontando para Carlos com desdém. 

    — Mas prendi os dois e dei uma pedrada na caveira dele pra vê se aprende. Se morrer, ótimo! Se não, a gente vende pro sinhô do engenho e o dinheiro também vai me deixar felizão!

    Tassi lançou um olhar para Carlos, e uma pontada de culpa misturou-se à sua própria dor. “Seu idiota… Você poderia ter fugido. Apenas tentei te salvar por tê-lo colocado nessa enrascada, mas você não precisava retribuir.” Seus olhos percorreram seu corpo imóvel. “Por favor, não morra.”

    ───────◇───────◇───────

    O sol da manhã trouxe consigo uma dor pulsante que arrancou Carlos da inconsciência.

    “Ai, minha cabeça…”

    Instintivamente, tentou levar a mão à fonte da dor, mas as videiras que amarravam seus pulsos o impediram. A realidade da situação atingiu-o como um balde de água gelada.

    “Não acredito… Então não foi um pesadelo. Foi tudo real.”

    Seus olhos, ainda turvos, percorreram o ambiente. Em volta dele, outras figuras jaziam amarradas, não com videiras, mas com cordas ásperas. Suas roupas — ou a falta delas — eram farrapos de algodão cru, calças largas e camisas rasgadas que mal cobriam corpos magros e marcados. Eram, inegavelmente, escravos.

    “Isto não pode estar acontecendo. Eu queria uma segunda chance, mas não… não assim.” Ele respirou fundo, lutando contra o pânico. “Preciso me acalmar. Talvez haja uma explicação… Não, pelo tratamento que recebemos… Eles não nos veem como humanos.” Sua mente correu para a mulher. “E ela, como está?”

    Ansioso, ele vasculhou o grupo com os olhos até encontrá-la — a única mulher, não era difícil. Um olho roxo e inchado marcava seu rosto, um testemunho silencioso da violência que sofrera, mas ela estava viva. Carlos sentiu um pequeno alívio.

    “Está viva. Machucada, mas viva.”

    Com esforço, conseguiu se sentar. Viu os capitães do mato comendo e rindo em volta dos restos da fogueira.

    — Não é que você tá vivo mesmo? — a voz de Sebastião cortou o ar, carregada de um humor perverso. — Que pena… Mas pelo menos vou ganhar uns trocados pra comprá uma cachaça boa. Não tá tão ruim, não!

    Carlos virou a cabeça lentamente. O rosto de Sebastião, marcado pelos cortes e hematomas que ele próprio ajudara a infligir, encheu-o de uma raiva impotente. Seu olhar deve ter transparecido seu ódio, pois o capitão do mato riu baixo.

    — Se ficá me encarando desse jeito, te dou logo um sumiço em vez de comprar cachaça.

    A ameaça era clara. Carlos baixou os olhos, a raiva dando lugar a um desespero profundo. “O que vai ser de mim? Vou virar um escravo de verdade…”

    Sebastião pareceu se deliciar com a submissão.

    — É isto que gosto de vê — disse, erguendo-se e se espreguiçando. 

    — Tô até animado pra pegar logo o pagamento por você. 

    Ele então gritou para o grupo: 

    — Acorda, seus negos fujões! Hora de voltá pro tronco e levá couro! Até pensei em deixá vocês dormindo enquanto eu comia meu angu, mas melhor logo se livrá de vocês. Tô com vontade de comer puta e beber cachaça na cidade!

    Aos berros, os escravos foram se levantando — catorze ao todo, incluindo Carlos. Seu corpo doía, e a noite no chão duro lhe rendera olheiras profundas e uma fadiga que ia além do físico.

    Enquanto se punha de pé com dificuldade, sua mente tentava processar a situação.

    “Brasil Colonial ou Imperial? Eles falam português, mas não arcaico… Um sotaque caipira, mas compreensível. E a magia… Aquele arco de fogo, essas videiras vivas… Não há outra explicação.”

    “Vim parar em outro mundo, mas não na fantasia heróica que imaginei. Não serei o herói que derrota o rei demônio com poderes secretos e uma linda elfa ao meu lado. Caí num mundo que pode ser pior que o meu.”

    Enquanto se perdia em seus pensamentos, o grupo começou a se mover. Sob o olhar vigilante de Sebastião, Carlos se incorporou e começou a caminhar.

    Tassi, uma das últimas a se levantar, observou o homem de roupas estranhas. Um sentimento de culpa e gratidão conflitante surgiu em seu peito. 

    “Ele está vivo. Que alívio… Mas sua captura é minha responsabilidade. Espero poder compensá-lo de alguma forma, algum dia.”

    A caminhada prosseguiu. Os cinco capitães do mato, montados, flanqueavam o grupo, formando uma prisão móvel. Sebastião liderava à frente. Um silêncio pesado pairava sobre os escravos, quebrado apenas pelo som de passos arrastados e o rangido das selas. O medo dos capitães era palpável, mas mais profunda ainda era a resignação abatida de quem sabe que um castigo terrível aguarda.

    Carlos observou seus companheiros de infortúnio. “Todos tão magros… subnutridos. E apenas uma mulher no grupo. Foi ela quem me alertou. Se eu tivesse reagido mais rápido… talvez… E ela foi capturada por tentar me ajudar.” 

    Seu olhar voltou-se para a figura à frente. “Ele disse que estamos indo para um engenho. Brasil Colonial, então. Açúcar, senhor de engenho, trabalho escravo… É tudo o que me lembro das aulas de história. Ironia do destino: segui exatas para ter uma vida melhor, e agora meu conhecimento de humanas pode ser a única coisa que pode me ajudar.”

    Após cerca de uma hora de caminhada, o engenho surgiu à sua frente. Um trabalhador livre, ao avistar o grupo, correu para avisar o senhor. Os capitães do mato, aliviados, dirigiram-se para a sombra de uma árvore para descansar.

    Minutos depois, o senhor do engenho apareceu. Era um homem branco na casa dos quarenta anos, com uma barba grisalha mal cuidada e um sorriso que revelava a falta de um dente. Atrás dele, homens mais jovens e robustos brandiam chicotes com familiaridade sinistra.

    Sebastião e seu grupo desmontaram.

    — Bom dia, Seu Jorge! — anunciou o capitão do mato, com uma vênia exagerada. 

    — Trouxe os treze ratos que fugiram, como o sinhô pediu.

     Gesticulou em direção aos escravos, parando em Tassi. 

    — E pegamo a cabra que botô ideia na cabeça dos outros. Tá toda inteirinha, igual no dia que o sinhô comprou.

    O senhor Jorge, Seu Jorge, percorreu os cativos com um olhar carregado de ódio e desprezo, detendo-se especialmente em Tassi. Ao se voltar para Sebastião, sua expressão suavizou-se ligeiramente.

    — Você é mesmo tão bom quanto dizem. Como combinamos, são trinta mil réis por escravo, e duzentos e quarenta mil por ela.

    Jorge fez um sinal, e um de seus capatazes aproximou-se com um pesado saco de moedas. Foi então que seus olhos pousaram em Carlos.

    — Espera um pouco. Tem um escravo a mais aqui.

    Por um breve instante, uma centelha de esperança iluminou o peito de Carlos. Mas ela se apagou rapidamente.

    — Ah, ia me esquecendo! — exclamou Sebastião, com um sorriso desdentado. 

    — Achamo mais um zé-ninguém perdido no mato. Tá meio acabado, mas ainda rende uns anos de serviço!

    Ao ouvir isso Jorge abriu um leve sorriso revelando seu dente faltando.

    — Que bom, realmente preciso de mais uma mão. Mas não tenho dinheiro extra. Posso pagar em açúcar ou cachaça, se o senhor quiser.

    — Tá bão, pode ser cachaça memo!

    Enquanto um capataz entregava o saco de moedas a Sebastião — que o abriu avidamente para contar seu conteúdo —, outro foi buscar o pagamento em cachaça. Uma carroça chegou, carregada de garrafas de barro. Sebastião contou duzentos e quarenta moedas de prata, cada uma valendo 2.500 réis — o dobro do salário anual de um homem livre. Satisfeito, ele apertou a mão de Seu Jorge.

    — Foi bão demais esse negócio! Se precisá, é só chamá. — Sua voz baixou, conspiratória.

     — Mas se fosse o sinhô, eu acabava com essa vadia logo. Ela só vai dá problema e fazê os outros fugi!

    — Obrigado pela preocupação, Sebastião. Um homem menos paciente já teria mandado essa vadia para a cova.

    — Então por que não manda, sinhô? Negro bom é negro quieto, e essa daí só dá trabalho.

    — Trabalho que vale ouro, meu caro — retrucou o senhor de engenho, seus olhos brilhando com ganância calculista. — Sabe quanto custa uma escrava que é adepta das gemas de terra e grama como ela? Mais de três milhões de réis. É o que ela me faz ganhar em açúcar por ano.

    Sebastião assobiou baixo, impressionado. — Três milhões? Por essa preta?

    — Pois é. O vendedor nem desconfiava. Só descobri porque gastei uma pequena fortuna em itens para testar a aptidão dos negros novos. 

    Seu olhar voltou-se para Tassi, frio e possessivo. 

    — A sorte é que ela já pariu. Só preciso aguentar a mãe até o filhote crescer e ter mana suficiente para assumir o lugar dela.

    “Agora entendi porque pagô uma fortuna nela! Se soubesse que valia tudo isso, tinha cobrado o dobro!”

    — Que bom que a aposta do senhor deu certo. Boa sorte pro sinhô! Agora vou vazá, já tá na hora do meu gole!

    Os capitães do mato montaram e partiram em direção à cidade, seu barulho gradualmente se dissipando.

    Assim que se foram, o senhor do engenho ordenou que todos os escravos — os fugitivos e os que haviam permanecido — fossem levados para o pelourinho, erguido diante da senzala. Ordenou que trouxessem chicotes, uma máscara de ferro e um ferro de marcar, que foi logo colocado para aquecer nas brasas de uma fogueira recém-acesa.

    Carlos observou os preparativos, seu sangue gelando nas veias. “Não preciso ser um historiador para saber o que nos espera. Gostaria de poder dizer que enfrentarei isso com coragem, mas não posso. Nem consigo imaginar a dor de uma única chibatada, muito menos o que está por vir.”

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