Capítulo 21 - Demonstração das Armas
A conversa entre Carlos e Nia foi interrompida pela chegada do guarda, que viria levá-los a uma área isolada para a demonstração das armas de fogo usadas contra Jorge. Tassi, ao avistá-los, aproximou-se silenciosamente e se juntou ao grupo sem cerimônia.
Caminharam por alguns minutos até alcançarem uma clareira afastada no mocambo, onde apenas mato baixo e tocos de árvores cortadas testemunhavam a atividade humana. O ar carregava o cheiro de terra molhada e folhas secas. Lá, já os aguardavam Espectro, o líder militar do quilombo, e Aqua, a chefe do Mocambo do Tatu. Dois guardas gêmeos, de rostos quase idênticos e postura rígida, completavam o grupo. Ambos empunhavam lanças e escudos similares, distinguindo-se apenas pela gema incrustada no centro de cada proteção: uma branca e leitosa, outra negra e opaca.
— Boa tarde. Então você deve ser o famoso Carlos, não é mesmo? — perguntou Espectro, sua voz um baixo profundo que ecoava levemente na clareira.
— Sim, senhor. — Carlos optou pela formalidade, incerto da etiqueta local. Como o homem não demonstrou reação, assumiu que acertara.
— E eu sou a Tassi, chefe — disse a guerreira, erguendo o queixo. — Lamento ter recusado seu convite para o exército, mas tenho uma dívida com o Carlos. Enquanto ele precisar de mim, vou ajudá-lo. Claro, se o quilombo sofrer um ataque, estarei na linha de frente. Sou apta com as gemas de terra e grama e tenho treinamento militar.
— Normalmente, a recusa não seria aceita — respondeu Espectro, cruzando os braços. — Mas, como estamos em período de paz, faremos uma exceção desta vez.
— A chefe Aqua e os guerreiros Okoro e Amadi vão acompanhar o teste — continuou ele, gestando para os gêmeos. — Um deles pode invocar a defesa divina, o outro, a defesa física. Veremos se suas armas são capazes de rompê-las.
— Há também um atirador com um arco de fogo apontado para você, caso tente algo contra nós — acrescentou Espectro, sua voz serena contrastando com a mensagem. — Não leve a mal. É apenas uma precaução.
— Entendo — Carlos assentiu, sentindo um frio na espinha. — Mas, com todo o respeito, alguém experiente com essas armas poderia matar todos aqui facilmente. No meu caso, ainda não sou hábil. Na próxima, sugiro mais cautela.
Espectro franziu a testa. “Ele matou dois usuários de gemas e capatazes, e agora alega inexperiência? Ou as armas são formidáveis, ou ele é humilde demais, ou a história foi exagerada. Veremos. E se acha que alguém nos venceria tão facilmente, subestima nossos guerreiros. Até Aqua, com sua idade, é uma força com uma arma mágica.”
— Agradeço o conselho, mas acho que está nos subestimando — retrucou o líder.
— Com licença, chefe — interveio Tassi, seu tom plano, porém firme. — Lutei em guerras na minha terra natal, e também testemunhei o poder dessas armas e posso confirmar que são mais poderosas que qualquer arma que vi em uma guerra. Nem é preciso muita habilidade para causar estrago. Um guerreiro, por mais experiente, pouco pode fazer contra esses projéteis. Seu arqueiro seria atingido por várias balas antes mesmo de lançar sua flecha mágica. E, se algum atirador mais treinado as empunhasse… — Ela apontou para um ponto específico na mata, onde apenas folhagem densa era visível. — …miraria ali e eliminaria a única ameaça. Facilmente.
Espectro conteve uma reação. “Ela apontou exatamente onde o arqueiro está. Está muito bem camuflado… Será que tem sentidos aguçados ou foi um palpite?”
“Nossa, ensinei ‘projétil’, ‘atirador’, ‘munição’ e ela decorou na hora — pensou Carlos, impressionado. — Falo do meu mundo e ela esquece, mas sobre armas, vira uma esponja.”
As palavras de ambos foram recebidas com olhares de ceticismo e desdém. Amadi, o guerreiro do escudo branco, não conseguiu conter a irritação.
— Não venham se achando só porque mataram um velho gordo que nunca saiu do seu engenho! — vociferou, os nós dos dedos brancos ao cerrarem a lança. — Nós, do Quilombo da Jabuticaba, fazemos expedições todo ano, matamos senhores e libertamos escravos!
— E quantos homens vocês levam para essas expedições? — contra-atacou Tassi, impassível. — O Carlos matou o senhor sozinho. O velho usava gemas de defesa e defesa divina. Quanto ao capataz, que tinha um chicote com gema de vento, precisou de ajuda, mas bastou eu e mais um que Carlos matou ele facilmente.
— Você não sabe de nada! — gritou Okoro, o irmão com a gema negra, avançando um passo.
— Parem! — a voz de Aqua cortou o ar, firme e calmante. — Os dois, acalmem-se. Vamos começar os testes. A verdade virá com os resultados.
— A chefe tem razão — concordou Espectro, recuperando a compostura. — Vamos aos fatos. Primeiro, veremos se sua arma rompe escudos mágicos. Amadi e Okoro, posicionem-se. Você atirará naquele toco entre eles. Eles levantarão suas defesas e veremos se a bala as atravessa.
Carlos olhou para o toco, depois para os arredores, e não pôde evitar uma pontada de preocupação.
— Senhor, só quero confirmar… Não há ninguém nesta direção, certo? Uma bala perdida pode matar a uma distância considerável.
— Não se preocupe — Aqua garantiu, com um gesto tranquilizador. — Como chefe deste mocambo, conheço este lugar como a palma da minha mão. Antigamente vinham buscar lenha, mas desde que um homem foi picado por uma jararaca, ninguém mais se aventura por aqui. Os guardas do Espectro já vasculharam a área. Está desabitada.
— Que bom. Então podemos começar — disse Carlos, mais aliviado.
Espectro entregou-lhe o saco com as armas e a munição. Carlos pôs-se a trabalhar com cuidado, enchendo os carregadores enquanto explicava o processo.
— Estou colocando as balas nos carregadores. Nem todas funcionam assim. Este revólver, por exemplo, é carregado diretamente no tambor…
Terminou o carregamento, inseriu os cartuchos nas armas e preparou-se.
“O processo é bem demorado,” observou Espectro, mentalmente. “Melhor que sejam realmente potentes.”
— Quero ver o impacto na defesa divina primeiro. Amadi, levante seu escudo e proteja a si mesmo e o tronco. Okoro, fique perto do alvo para o próximo teste.
Carlos mirou no tronco, a cerca de dez metros de distância.
— Tudo bem. Mas é perigoso. Não confio plenamente na minha mira, embora tenha estado mais ou menos a esta distância quando matei o senhor. Essas armas, porém, têm um alcance muito maior.
“Que bom que estão longe do alvo — pensou, aliviado. — Seus escudos são maiores que os do Jorge. E, pelo que lembro, as balas não ricocheteiam em defesas mágicas; ou as perfuram ou caem inofensivas.”
— Vou atirar! — alertou. — O barulho é alto. Não se assustem.
Tassi tapou os ouvidos com as mãos, um sorriso quase imperceptível nos lábios. “Poderia dizer que o escudo divino é inútil, mas é melhor deixar a surpresa falar por si.”
Pum!
O estampido ecoou pela clareira, violento e seco, espantando pássaros nos arredores. A bala atingiu o toco quase instantaneamente. Carlos, querendo deixar claro o poder de fogo, disparou mais cinco vezes em rápida sucessão. O que deixou todos boquiabertos, porém, foi o fato de nenhuma bala ter sido repelida pelo brilhante escudo branco de Amadi. As balas simplesmente o ignoraram, como se não existisse.
“Ele disse que não havia magia… mas é difícil acreditar até ver,” pensou Aqua, observando atentamente.
Amadi estava pálido, seus lábios entreabertos em choque mudo.
Assim que os tiros cessaram, Espectro correu até o toco. Inspecionou os buracos profundos, onde a madeira estava estilhaçada, sem sinal das balas no fundo. Seus olhos, pela primeira vez, mostravam incredulidade.
Carlos permitiu-se um sorriso discreto de satisfação, ofuscado pelo sorriso aberto e triunfante de Tassi, que inflou o peito com orgulho.
“Ei, por que você está tão orgulhosa? Quem atirou fui eu! — pensou Carlos, divertido. — Você só veio assistir e causar confusão.”
“As histórias não eram exageradas — ponderou Espectro, recompondo-se. — Se fizeram isso com a madeira, o que fariam com carne? Tassi pode ter razão. Alguém com essas armas poderia dizimar-nos. Posso ficar invisível, não intangível. Se atirarem na minha direção… Mas, calma. Talvez a barreira física de Okoro resista.”
Depois de Espectro voltar a seu lugar, olhou para Carlos.
— Pode atirar — ordenou o líder, e Okoro entendendo o que deveria fazer, ergueu sua barreira negra e translúcida.
Carlos descarregou as balas restantes do carregador. Pum! Pum! Pum! Pum! Cada tiro estilhaçou a defesa com facilidade, marcando o tronco mais uma vez.
“A barreira do Jorge foi mais resistente — refletiu Carlos. — Talvez o artefato dele fosse de melhor qualidade, ou ele tivesse mais mana. Ou talvez escudos maiores sejam mais frágeis.”
Novo choque tomou conta do grupo, mas Okoro não se deu por vencido.
— É claro que a essa distância quebra! — protestou, a voz carregada de frustração. — Temos de testar a uma distância maior!
Espectro considerou a sugestão.
— Okoro tem um ponto. Gostaria de ver o desempenho a maiores distâncias.
— Tudo bem, senhor. Mas não garanto a precisão. A bala pode desviar.
Seguiram-se mais testes, com distâncias progressivamente maiores, focando na barreira física de Okoro, já que a divina se mostrara inútil. Carlos repetiu seus avisos sobre o perigo de tiros errantes, mas a confiança na defesa de Okoro persistia — até ser quebrada, vez após vez. O guerreiro, teimoso, insistia em aumentar a distância. Sua mana, porém, definhava a cada barreira destruída, forçando-o a reduzir o tamanho do escudo.
Aos cinquenta metros, como sempre, o escudo estilhaçou-se. Desta vez, porém, uma bala por erro de Carlos, raspou a perna de Okoro.
— Aaai!
O grito foi mais de susto e terror do que de dor. Okoro caiu para trás, sentando-se no chão com um baque surdo. A ferida era superficial, pouco mais que um arranhão sangrento, mas o impacto psicológico era profundo. Quando Espectro se aproximou, ouviu o guerreiro murmurar, os olhos vidrados no vazio:
— Meu escudo… foi inútil. Inútil…
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