Capítulo 23 - Duelo
O sol ainda não havia nascido quando Carlos se levantou de sua cama de barro e palha. O colchão de palha seca farfalhava a cada movimento, e ele esticou os braços com um gemido baixo. Não era exatamente confortável, mas pelo menos ficava acima do nível do solo — um luxo comparado ao chão de terra batida da senzala.
“Acordei cedo demais, como sempre. Mas também tenho dormido muito cedo. Pelo menos vou poder ver o sol nascer… seria bom tomar um cafézinho enquanto isso, mas nem isso tem.” Ele esfregou os olhos, ainda pesados de sono. “O café teve origem na Etiópia e, se não me engano, os portugueses só conseguiram as mudas por volta de 1700, mandando um espião para roubá-las. Não vou encontrá-lo por aqui. Mas talvez eu encontre alguma planta para fazer chá… tenho um livro que pode me ajudar com isso.”
Assim que o sol começou a colorir o céu com tons alaranjados e dourados, ele saiu para caminhar pela região. O ar da manhã era fresco e úmido, carregando o cheiro de terra molhada e vegetação. Não demorou muito para encontrar pés de erva-cidreira, alguns até cultivados em pequenas hortas pelo pessoal do quilombo.
“Com essas ervas, posso finalmente ter algo quente para beber de manhã. Agora só preciso decidir o que vou comer no café da manhã.”
Enquanto voltava para casa, colhendo alguns ramos de cidreira, encontrou-se com Tassi, que vinha em sua direção com passo decidido.
— Era você que eu estava procurando! — ela disse, cruzando os braços. — Estou morta de fome, e você me disse que faria algo gostoso com milho.
Carlos não pôde evitar um sorriso amarelo. “Já me arrependi de ter dito isso. Pelo visto, ela vai vir aqui todo dia para comer.”
— Claro, claro — respondeu ele, acomodando os ramos aromáticos no seu braço. — Até já sei o que vou fazer para você. Só me traz sua panela de ferro.
Ele pensou consigo mesmo: “Não tô a fim de preparar nada muito complexo, até porque nem tenho os ingredientes. Vou fazer uma pipoquinha. Numa panela faço o chá e na outra a pipoca. Aliás, já sei o que poderia fazer para meus cafés da manhã: um bolinho de fubá com chá de cidreira ficaria perfeito. Até sei fazer bolo de fubá… o problema é que aqui não tem fubá pronto para vender, e nem sei como se faz fubá. Depois falo com a Tia Vera sobre isso; ela deve saber.”
Em sua casa, acendeu o fogão a lenha. Colocou água e as folhas de cidreira em uma panela de barro, que logo começou a exalar um aroma cítrico e calmante. Na outra panela, de ferro, colocou óleo e os grãos de milho para pipoca que separara antes.
Tassi se aproximou, franzindo a testa ao observar os preparativos.
— Ué, não vai pôr água dessa vez? — perguntou, apontando para a panela do milho. — E o milho já estava fora da espiga… não vai me fazer comer apenas milho de novo, vai? — Ela fez uma careta. — Olha que enjo rápido!
Carlos riu, sacudindo a cabeça.
— Pior que também gostaria de algo diferente. Tô com vontade de comer um bolo de fubá. E acho que você iria gostar.
Os olhos de Tassi se iluminaram com curiosidade.
— Tem razão — ela concordou, puxando um banco para se sentar. — Acho que vou dar uma chance para aquele bolo. Temos que pedir para a Tia Vera.
Não demorou muito para os primeiros estalos ecoarem na panela de ferro, como pequenos trovões em miniatura. Tassi pulou levemente em sua cadeira, olhando surpresa para a panela e depois para Carlos, que apenas sorriu com divertimento.
— O que está acontecendo aí dentro? — ela perguntou, inclinando-se para frente com os olhos arregalados. — Não me diga que aquele milho era uma arma do seu mundo, porque o barulho tá igual!
— Ha ha ha, tá maluca? — ele riu, o som dos estouros aumentando. — Esse barulho é o milho estourando e virando pipoca.
Tassi balançou a cabeça, incredulidade estampada no rosto.
— Como assim, ‘estourando’? Desde quando comida estoura?
Carlos começou a gesticular enquanto explicava, animado.
— Basicamente, a água dentro do grão esquenta e vira vapor, criando pressão — ele disse, fazendo um movimento de expansão com as mãos. — Quer dizer, o vapor quer sair e empurra o milho de dentro para fora, até que a casca não aguenta mais e… estoura!
Tassi ficou em silêncio por um momento, processando a informação com uma expressão pensativa.
— O vapor tem poder tão grande assim para fazer coisas estourarem? — ela perguntou, visivelmente impressionada.
— Você nem imagina — Carlos respondeu, entusiasmado. — No meu mundo, máquinas a vapor mudaram tudo. Podiam carregar centenas de pessoas, operar máquinas gigantes de ferro, mover fábricas inteiras…
Tassi, com seus olhos de esmeralda, parecia incrédula, mas fascinada.
— Não acredito nisso! — ela exclamou, balançando a cabeça lentamente.
Carlos sorriu, respondendo com convicção:
— Pois acredite, porque um dia vou fazer uma máquina dessas por aqui.
O ritmo dos estouros foi diminuindo gradualmente. Carlos, então, tirou a panela do fogo e, por força do hábito, tentou por um segundo “desligar” o fogão até perceber que não havia como desligar um fogão a lenha. Ele sacudiu a cabeça, rindo de si mesmo, enquanto retirava também a panela do chá, cujo aroma agora dominava o ambiente.
Colocou as duas panelas sobre uma mesinha de barro que ele mesmo fizera no centro da casa, cercada por bancos de madeira rústicos.
“Ugh, pipoca não é café da manhã… e não tem café. Vai ter que ser chá de cidreira mesmo. Seria bom ter pelo menos umas galinhas para fazer ovo frito… Apesar de que, tô quase babando por causa de uma simples pipoca.”
Lentamente, ele tirou a tampa da panela, revelando a pipoca branca e fofa. Tassi arregalou os olhos ao ver a transformação, inclinando-se para frente com admiração. Carlos salpicou um pouco de sal e ofereceu a tigela.
— No meu mundo, a gente comia isso vendo filme — explicou ele, empurrando a tigela em sua direção. — É tipo uma peça de teatro… a pipoca é mais um petisco.
Tassi não perdeu tempo e começou a experimentar, pegando punhados com as mãos e examinando os flocos brancos antes de colocá-los na boca.
“Nossa, o milho ficou totalmente diferente. Não só a aparência, mas o gosto e a textura. Mas ele comia isso no teatro? Já ouvi falar… nobres europeus vendo pessoas fantasiadas fingindo ser outras. Os nobres sempre tiveram gostos estranhos. Pelo menos o rei do meu reino tinha gostos compreensíveis: um harém de mulheres para servi-lo. Aliás, será que ele era da nobreza no mundo dele, para assistir peças? Não, não parece. E ele disse que não são peças, só se parecem… são ‘filmes’.”
— E aí, o que achou? — Carlos perguntou, observando sua reação.
Tassi mastigou pensativamente antes de responder.
— Gostei, mas não amei — ela disse, pegando mais um punhado. — É uma comida bem exótica. Na próxima, quero provar o tal bolo de fubá.
— Eu também gosto muito — Carlos respondeu, servindo o chá. — E comer com café seria ótimo, mas como não tem, vamos tomar com esse cházinho.
Ele serviu o chá em copos de argila. O líquido amarelo-pálido fumegava, e ele soprou suavemente antes de provar.
Tassi pegou seu copo com cuidado, cheirando o aroma cítrico antes de experimentar.
— Que bebida interessante — comentou ela, tomando um gole cauteloso. — Na minha terra não tinha nada assim. Tudo isso é coisa do Brasil do futuro? Pelo menos, nunca vi ninguém comer pipoca no engenho.
Carlos balançou a cabeça, engolindo seu gole de chá antes de responder.
— Na verdade, não. Os nativos do Brasil já comiam pipoca — ele corrigiu. — A palavra ‘pipoca’ vem do tupi e significa ‘pele estourada’. A cidreira também é uma erva medicinal que os nativos conheciam; usavam para fins medicinais, mas dá para tomar como chá sem problemas. O milho também era consumido pelos indígenas. Por influência portuguesa, as pessoas começaram a fazer farinhas, como fazem com o trigo, só que com milho por ser mais barato, e daí acabou surgiu o bolo de fubá. Basicamente, a comida do futuro no Brasil será muito boa porque todo mundo traz um pouco da sua culinária, e tudo acaba se misturando.
Tassi ficou séria por um momento, olhando para o fundo de seu copo.
— Falando assim, até parece algo bom… — ela disse, com uma ponta de amargura na voz. — Mas esse processo todo foi forçado.
Carlos baixou os olhos, repentinamente constrangido. “Esqueci com quem estou falando. Não estou no meu tempo, onde podemos empurrar as partes feias da história para debaixo do tapete.”
Vendo Carlos ficar cabisbaixo, Tassi suspirou, e sua expressão se suavizou.
— Mas não vou reclamar de comer comida boa — ela acrescentou, com um meio sorriso. — Sem contar que não posso trazer nada do meu país. A comida do exército não era lá essas coisas, e, apesar de ter andado por muitos lugares, nunca fui livre para conhecer as pessoas e suas cozinhas.
Depois de conversarem mais um pouco, os dois saíram da casa. Logo na saída, depararam-se com Aqua acompanhada de uma figura impressionante: uma pessoa totalmente coberta por uma armadura de cavaleiro medieval, que reluzia intensamente sob a luz do sol. A armadura era completa, sem brechas, e parecia incrivelmente pesada. O que mais chamava a atenção, porém, era o peitoral, que tinha formato de seios. A figura segurava uma espada longa fincada no chão.
Carlos parou abruptamente, seus olhos se arregalando. “Meu Deus, parece aquelas armaduras femininas de MMO-RPG! Só que esta cobre o corpo todo, diferente das dos jogos, que pareciam sutiãs e calcinhas de metal.”
— Bom dia — cumprimentou Aqua, com seu tom calmo habitual. — Está aqui, de armadura, é Quixotina, a maior cavaleiro do mocambo. Por conta disso, conhece muito bem a Mata da Onça e as cavernas da região. Agora, se me dão licença, tenho outros assuntos a tratar.
Antes de ir embora, Aqua virou-se para Quixotina com um olhar significativo.
— Por favor, não assuste os novatos — ela disse, com um misto de advertência e resignação.
Assim que Aqua se afastou, uma voz ecoou de dentro da armadura, mais aguda do que se esperaria.
— Você é o Carlos que requisitou minha ajuda? Sou a Cavaleira da Luz, Quixotina de La Mancha.
Carlos piscou várias vezes, tentando processar a cena. “Bem, o Espectro e a Aqua avisaram que ela era excêntrica… mas poderiam ter enfatizado o quanto. E esse nome é igualzinho ao Dom Quixote. Por acaso, esse livro também existe neste mundo? Seria uma coincidência muito grande. Por que haveria coisas tão semelhantes aqui, e outras completamente diferentes? Mas isso não importa agora. O que importa é que ela pode me ajudar.”
— Sim, sou eu, senhorita cavaleira — ele respondeu, fazendo uma pequena reverência. — Muito obrigado por sua ajuda.
Quixotina esperava olhares de confusão — estava acostumada a isso. Carlos, porém, apenas pareceu levemente desconcertado por um instante antes de se recompor. Já sua companheira, a guerreira com um “F” marcado na testa, permanecia com uma expressão de perplexidade total, a boca ligeiramente aberta.
— Então você é o cavaleiro que libertou várias pessoas da escravidão, não é? — a voz metálica ecoou novamente, com um tom desafiador. — Foi uma ação valente. Porém, ainda tenho que ver se é digno da minha ajuda. O teste é bem simples: apenas me responda… você concorda que a Dulcinéia é a menina mais nobre e fofa deste mundo?
Carlos quase engasgou com sua própria saliva. “Então ‘Quixotina’ vem de ‘Dom Quixote’ mesmo! Por sorte, gosto muito de ler e tinha lido esse livro pouco antes de vir para cá. Só espero que ela não seja tão maluca quanto o Dom Quixote, que batia em todo mundo que não concordava que Dulcinéia era a mais linda… Pensando nisso, é melhor concordar.”
— Concordo — ele disse rapidamente, acenando com a cabeça. — Não há menina mais fofa e nobre que Dulcinéia.
Quixotina ficou atônita, seu elmo inclinando-se levemente para o lado em um gesto de confusão visível. Ninguém jamais concordava! Era a justificativa perfeita para um duelo — e ela estava muito interessada em duelar. Afinal, ele devia ser forte, para ter matado o senhor do engenho e seus capatazes sozinho. Algo digno de um cavaleiro! Mas a resposta dele arruinou seus planos, deixando-a sem palavras.
Tassi também ficou surpresa, virando-se para Carlos com os olhos arregalados.
— Por que você respondeu isso? — ela sussurrou, puxando sua manga. — Nem conhece a menina!
Carlos se inclinou para perto dela, falando em voz baixa:
— É porque conheço um Dom Quixote, personagem de um livro que fazia a mesma pergunta. Se a pessoa dissesse ‘não’, ele duelava com ela. Aposto que ela está fazendo um tipo de ‘cosplay’. De qualquer forma, precisamos da ajuda dela, e não quero a doidinha do mocambo como inimiga.
Tassi não entendeu a parte do “cosplay”, mas o resto sim — e isso a deixou animada, um sorriso malicioso surgindo em seus lábios. Era uma boa oportunidade para enfrentar um oponente forte; ela estava se sentindo enferrujada.
— Eu discordo! — ela declarou, em voz alta, dando um passo à frente. — A menina mais fofa e nobre deste mundo era eu, quando mais nova. Dulcinéia não passa de uma feiosa perto de mim!
Carlos esfregou o rosto, exasperado.
— Idiota! Para que irritar a mulher?
— O quê?! — a voz de Quixotina tornou-se aguda como metal rangendo. — Retire o que disse! Caso contrário, teremos que duelar para ver quem está certa!
— Tassi, peça desculpas! — Carlos insistiu, puxando seu braço. — Se ela não for tão maluca quanto o Quixote, vai te perdoar.
— Eu não! — Tassi respondeu, sacudindo-o de si. — Quero duelar mesmo! Ajudei pouco na luta contra o senhor do engenho, e na penúltima vez fui capturada. Estou enferrujada! — Ela apontou para Quixotina. — Essa Quixotina parece uma boa oponente para treinar… apesar de que mal deve conseguir se mexer com essa armadura pesada.
Quixotina ouviu e respondeu imediatamente, batendo a espada no chão com força.
— Se queria um duelo, conseguiu! Farei você pagar pelo que disse!
— Claro! — Tassi respondeu, com um sorriso confiante. — Mas tem que ser um duelo justo. Não ligo se você continuar com a armadura; só preciso de uma arma.
— Nada de arma de fogo! — Carlos interveio, colocando-se entre elas. — Quer matá-la?
— Claro que não! — Tassi revirou os olhos. — Só preciso de uma espada. Ela pode até ficar de armadura; com minha experiência, me garanto contra alguém assim.
— Não se preocupe — Quixotina cortou, erguendo a espada. — Um cavaleiro jamais luta de forma desonrada. Pode usar minha espada. Eu não preciso de arma. Pode vir até com essa arma de fogo; consigo derrotar qualquer um que fale mal de Dulcinéia, independente da arma!
Tassi riu, balançando a cabeça com desdém.
— Mas se você estiver desarmada, isso pode ser considerado um duelo? De qualquer forma, aceito. Mas não aqui — vamos para um lugar mais afastado.
Ela pensou consigo mesma: “Essa mulher acha que vai me vencer na base do soco? Pode ter uma armadura excelente, mas deve ser muito lenta com ela. Com minha agilidade, poderei derrotá-la facilmente.”
Carlos suspirou profundamente, percebendo que a situação estava fugindo ao seu controle.
— Será que dá para as duas pararem com isso?
Apesar dos apelos de Carlos, Tassi manteve a decisão, seguindo Quixotina com determinação. As duas se afastaram para uma clareira mais distante das casas, e Carlos, relutantemente, aceitou ser o juiz, correndo atrás delas.
— No ‘um’, vocês começam! — ele anunciou, com voz resignada. — Três… dois… um… Comecem!
Para surpresa total de Tassi, a mulher de armadura não era lenta. Muito pelo contrário: movia-se com uma velocidade sobrenatural, tão rápida que uma pessoa comum mal a veria. Mas Tassi não era comum — seus olhos acompanharam Quixotina, que fechou a distância mais rápido que um cavalo em galope. Em segundos, ela já estava diante de Tassi.
“Isso é impossível! É muito rápida!”
Tassi usou toda sua força para desferir um golpe com a espada, mas foi como se estivesse se movendo na água. Quixotina agarrou-a pela cintura e a arremessou ao ar como se fosse uma pena. Tassi nem teve tempo de pensar — o impacto contra o chão foi seco e dolorido. Antes que pudesse reagir, sentiu o peso metálico de uma bota em seu peito.
— Desista! E retire o que disse sobre Dulcinéia!
Tassi largou a espada e tentou, em vão, empurrar o pé que a imobilizava, ofegante e atordoada.
— Isso é trapaça! — ela gritou, com voz rouca. — Você está usando a gema da força! Só assim para correr assim com uma armadura dessas!
— Não é trapaça! — a voz ecoou, inflexível. — Em duelos de cavaleiros, armas mágicas são proibidas. Porém, eu não estava usando uma arma mágica, e sim um amuleto da força! E amuletos são permitidos! Dito isso, agora diga: quem é a menina mais fofa e nobre deste mundo?
Tassi debateu-se por um momento, mas finalmente baixou a cabeça em derrota.
— Ugh… Dulcinéia! — ela cuspiu as palavras. — Dulcinéia é a mais fofa e nobre deste mundo!
Ao ouvir isso, Quixotina finalmente retirou o pé, fazendo uma reverência triunfante.
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