Índice de Capítulo

    O sol matinal já castigava, e o ar úmido da mata pesava sobre os três exploradores. Carlos, Tassi e Quixotina adentravam a floresta conhecida como Mata da Onça, onde o canto estridente dos cigarras e o zumbido insistente dos mosquitos formavam uma sinfonia incômoda. Os insetos dançavam em nuvens espessas ao redor deles, aproveitando-se da pele suada dos desventurados.

    As duas mulheres, à frente, lutavam contra a comichão das picadas com igual determinação, cada uma tentando mostrar mais resistência que a outra. Seus passos acelerados criavam uma competição silenciosa, enquanto Carlos seguia atrás, já lamentando profundamente sua vinda.

    “Se soubesse que seria transportado para outro mundo, teria trazido um repelente”, pensou, sentindo outra picada em seu pescoço. “Já devo ter perdido um litro de sangue para esses vampiros minúsculos, e nem chegamos na metade do caminho.”

    Carregando facas e cestos para coletar o salitre, o grupo avançava com dificuldade. Quixotina brandia sua espada com vigor, talhando a vegetação cerrada, enquanto Tassi mantinha a mão próxima ao revólver que ganhara, sentindo seu peso familiar na cintura.

    — Lembre-se de usar essa arma apenas em extrema necessidade — advertiu Carlos, observando seu movimento. — Temos pouquíssimas munições, e pode ser impossível conseguirmos mais.

    — Eu sei, não se preocupe — respondeu Tassi, ajustando a arma. — Contei cada bala: são 107 no total. Até eu esgotá-las, você certamente terá desenvolvido novas armas.

    — Tomara que você esteja certa.

    Quixotina observava o revólver com curiosidade mista com ceticismo. Embora tivesse apenas uma semana desde a chegada do grupo do Engenho do Seu Jorge, todos no Mocambo do Tatu já comentavam sobre a arma milagrosa.

    — Essa é a arma que usou para eliminar o senhor do engenho? — perguntou, franzindo o cenho. — Não parece tão formidável.

    — As aparências enganam — retrucou Tassi, com um sorriso confiante. — Com esta em minhas mãos, nosso duelo teria tido um resultado diferente.

    — Então podemos revidá-lo quando retornarmos! Adoraria repetir minha vitória.

    — Melhor não — interveio Carlos. — Esta arma é letal nas mãos certas. Com sua agilidade, você até poderia escapar se eu tivesse com a arma, mas se Tassi estiver com ela, acho que você morreria..

    Tassi inflou o peito, orgulhosa, enquanto Quixotina revirava os olhos. As duas mergulharam em uma discussão acalorada enquanto o grupo se aprofundava na mata fechada. A vegetação se tornava mais densa a cada passo, até que apenas folhagens e troncos antigos os rodeavam. O ar carregado cheirava a terra molhada e decomposição, enquanto o coro da floresta – insetos, aves e macacos distantes – criava uma atmosfera opressiva.

    Com a gema da força brilhando em seu colar, Quixotina abria caminho sem esforço, suas lâminas cortando cipós e folhagens. Tassi, acostumada aos exercícios rigorosos, mantinha o ritmo facilmente. Carlos, no entanto, já respirava com dificuldade, sua roupa colada ao corpo pelo suor, mas teimando em não ficar para trás.

    Quando começaram a subir a encosta íngreme, a respiração de Tassi tornou-se mais ofegante, embora seus passos não vacilassem. Carlos estava prestes a pedir misericórdia quando Quixotina surpreendentemente sugeriu:

    — Pelo sol, deve ser meio-dia. E minha barriga não me deixa mentir — disse, esfregando o estômago. — Adiante há um pé de mangaba. Podemos descansar e comer algo. Há também uma nascente próxima para matar a sede.

    “Graças a Deus!” pensou Carlos, aliviado. “Não sei o que é mangaba, mas já estou feliz por descansar. “Isso é uma mangaba? Como sou do Paraná, não conheço bem as frutas daqui.”

    Seguindo adiante, encontraram a árvore de cerca de dez metros, carregada de frutos amarelo-alaranjados. O aroma adocicado das frutas maduras permeava o ar. Carlos desabou à sombra da árvore, examinando uma das frutas caídas. Tassi, curiosa, colheu uma diretamente do galho.Ao morder a fruta, seu rosto se contorceu imediatamente.

    — Que fruta horrível!

    — Ha ha ha! — riu Quixotina. — As do pé ainda estão verdes. Precisa pegar as caídas no chão.

    — Mas metade está cheia de formigas! — protestou Tassi, indignada.

    — As formigas dão um gostinho especial — brincou Carlos, mordendo uma fruta que cuidadosamente escolhera sem insetos. — E fazem bem para a vista.

    “Nossa, que sabor diferente!” pensou, surpreso. “Parece manga misturada com maracujá!”

    Logo todos se deliciavam com as frutas doces, até ficarem cheios, exceto Quixotina, que continuou a comer muito depois dos outros terem parado. Seu apetite insaciável atraiu olhares curiosos.

    — Não gosto desses olhares — resmungou, finalmente. — Não sou gulosa! É um efeito colateral da gema da força – aumenta enormemente minha fome.

    — Sério? — perguntou Tassi, interessada. — Nunca conheci um usuário da gema da força no exército, apenas lutei contra alguns.

    “Interessante,” pensou Carlos. “Algumas gemas têm desvantagens. Esta não seria ideal para cercos ou batalhas prolongadas.”

    Retomando a caminhada, Carlos notou que Quixotina mantinha o ritmo acelerado. Decidiu puxar conversa para ver se a fazia desacelerar.

    — Então, Cavaleira Quixotina, qual seu nome verdadeiro?

    Tassi olhou surpresa: — Espere, esse não é seu nome real? Como sabia?

    — Dom Quixote é um personagem de livro – um cavaleiro maluco perdido no tempo. É famoso na Espanha desta época, e no meu mundo ficou conhecido globalmente. — explicou Carlos. — Mas duvido que alguma mãe em sã consciência nomearia sua filha de Quixotina. Primeiro por ser um personagem excêntrico, segundo por ser… bem, um nome horrível! Concluo que ela mesma escolheu este nome, por ser fã do Dom Quixote.

    — O que há de errado com Quixotina? — defendeu-se a cavaleira, ferida. — É um nome bonito! E Dom Quixote não era maluco, era um sonhador no tempo errado, como eu! Nasci num mundo cinza onde valores cavalheirescos morreram, onde a Igreja que combatia a escravidão agora a apoia, onde os fortes oprimem os fracos. Recuso-me a viver nesse mundo assim com Quixote se recusará! Acho isso nobre.

    — Cada um tem sua interpretação — concedeu Carlos. — Mas duvido que esse mundo idealizado já tenha existido, mesmo na era dos cavaleiros.

    — Talvez não — admitiu Quixotina. — Mas não é loucura lutar por ele.

    “Ela é tão idealista, mesmo neste mundo,” pensou Carlos, com uma pontada de inveja. “Para mim, não existem mais heróis ou vilões. Sei que nem todos no quilombo são santos, mas é nossa melhor opção.”

    Tassi compartilhava do sentimento. “Houve um tempo em que acreditava que minha luta traria um futuro melhor para meu povo. Descobri que o mundo não é preto no branco, mas cinza. Mesmo ajudando Carlos e lutando pelo quilombo, não vejo um futuro promissor. Talvez tudo acabe em destruição, ou este rei se corrompa como o meu fez.”

    O silêncio pairou entre eles, quebrado apenas pelos sons da floresta e do mato sendo cortado. Finalmente, Carlos perguntou:

    — Mas então, qual seu nome verdadeiro?

    — Abandonei meu nome antigo quando vim para o Brasil. Poucos o conhecem. Posso revelá-lo, se provarem ser dignos.

    — E como provamos isso?

    — Fabricando essa tal arma e mostrando seu poder. Se realmente puder ajudar a causa do quilombo, lhes direi meu nome.

    — Trato feito! — concordou Carlos.

    O silêncio retornou até que, finalmente, avistaram a caverna. Parecia uma ferida aberta na montanha, sua entrada encoberta por trepadeiras. A luz do sol iluminava apenas os primeiros metros, além dos quais a escuridão absoluta engolia tudo. Enquanto a floresta vibrava com vida, a caverna permanecia assustadoramente silenciosa.

    Carlos engoliu seco, lembrando-se dos perigos das explorações cavernosas. Tassi, embora corajosa, sentiu um frio na espinha.

    — Não há… monstros morando aí, certo? — perguntou, olhando para Quixotina.

    “Monstros não existem,” pensou Carlos. “O perigo real são buracos, armadilhas naturais e gases tóxicos. Pelo menos o que procuro deve estar perto da entrada.”

    — Nunca vi monstros — respondeu Quixotina. — Mas muitos têm desaparecido da floresta recentemente. Não explorei profundamente, porém sei que há morcegos. Uma vez, ouvi um barulho ensurdecedor e uma nuvem deles saiu voando. Se o que procuram não estiver aqui, outras cavernas mais distantes podem tê-lo.

    — Está com medo? — provocou Quixotina, embora ela própria sentisse um temor ancestral pelo lugar. Só voltara porque estava acompanhada.

    Tassi manteve-se em silêncio, temendo que sua voz traísse seu nervosismo. Carlos, embora apreensivo, convenceu-se de que eram histórias para assustar Tassi.

    Quixotina tirou uma tocha de sua bolsa de couro e duas pedras especiais – uma amarela e outra cinza.

    — O que é essa pedra amarela? — perguntou Tassi.

    — Ha! Pensou que era ouro? — riu Quixotina. — É ouro de tolo, pirita. Conseguimos com Nia, da caverna de fogo do Mocambo do Tatu, onde também obtemos gemas de fogo.

    Carlos folheou seu livro de minerais até encontrar a página correspondente.

    — Incrível! Temos pirita no mocambo! — exclamou, animadíssimo. — Com ela posso obter enxofre para a pólvora! Só nos falta o salitre!

    Seu entusiasmo dissipou momentaneamente seus medos. Quixotina fez faíscas com as pedras até acender a tocha.

    — Vamos! — anunciou, erguendo a chama.

    O grupo adentrou a escuridão, o cheiro de urina tornando-se mais forte a cada passo. As duas mulheres sofriam em silêncio, muito orgulhosas para reclamar, enquanto Carlos se animava – aquele odor amoniacal significava guano de morcego, e onde havia guano, podia haver salitre.

    Poucos metros adiante, encontraram a fonte do fedor.

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