Índice de Capítulo

    O boitatá se afastou e desapareceu na escuridão da floresta, deixando para trás um silêncio pesado. Tassi e Carlos respiraram aliviados — até que viram o corpo de Quixotina desabar no chão. Tassi correu até ela, ajeitando-a com cuidado enquanto procurava por um pulso.

    — Não tem… — disse ela, a voz trêmula. — O pulso parou. Provavelmente exauriu toda a mana do corpo. Já perdi muitas companheiras assim…

    Carlos não perdeu tempo. Ajoelhou-se ao lado de Quixotina, confirmou a ausência de batimentos e, com mãos firmes, retirou o colar com a gema vermelha que ela usava no pescoço e começou a fazer massagem cardíaca.

    — O que você está fazendo? — perguntou Tassi, assustada.

    — Tentando salvar a vida dela. Por favor, afaste-se e me deixe trabalhar.

    Ele comprimiu com força o tórax de Quixotina, fazendo o peito afundar uns cinco centímetros a cada pressão. Sabia que poderia quebrar costelas, mas preferia isso a perdê-la para sempre.

    — É inútil — insistiu Tassi, a voz carregada de desespero. — Quando a magia abandona o corpo de alguém, não há volta.

    Carlos ignorou as palavras e continuou. A cada trinta compressões, inclinava a cabeça dela para trás e fazia respiração boca a boca. Tassi calou-se ao ver a determinação absoluta em seus olhos.

    Após um minuto interminável, os dedos de Quixotina se moveram levemente. Carlos parou imediatamente e verificou novamente seu pulso e respiração — ambos haviam voltado, fracos, mas presentes. Ele caiu sentado no chão, ofegante, enquanto Tassi também se aproximou para confirmar.

    — Não acredito… — sussurrou Tassi, com lágrimas nos olhos. — Funcionou…

    Carlos sorriu, aliviado, mas a expressão logo se apagou.

    — Se eu soubesse disso quando estava no exército… — disse Tassi, a voz embargada. — Poderia ter salvo tantas companheiras… Pode me explicar o que fez?

    — Claro — respondeu ele, ainda recuperando o fôlego. — Mas primeiro vamos sair daqui. Não quero encontrar outro monstro do folclore brasileiro. Imagina se damos de cara com um chupacabra, lobisomem ou uma mula sem cabeça?

    Olharam ao redor. A floresta estava completamente escura, com apenas o brilho tênue da lua filtrando-se entre as árvores.

    — Devemos estar perto do mocambo — ponderou Tassi —, mas só a Quixotina conhece o caminho. Talvez tenhamos que passar a noite aqui.

    Carlos teve uma ideia. Revirou as coisas de Quixotina até encontrar as pedras que ela usara para acender a tocha. Rapidamente, juntou galhos e folhas secas e fez uma fogueira.

    — Assim, os guardas podem nos ver — explicou. — Eles devem saber que saímos durante a tarde.

    — É um bom plano — concordou Tassi. — Agora, me explique: onde aprendeu isso? Também é conhecimento do seu mundo?

    — Sim. Na minha época de faculdade, trabalhei como salva-vidas em um hotel. Ficava observando a piscina para evitar afogamentos e, se necessário, fazia os primeiros socorros. O que você viu faz parte desse treinamento. Não sabia se funcionaria, mas precisei tentar. Ela estava aqui por nossa causa, carregando nossas coisas. Não entendo muito de magia, mas imagino que levantar tanto peso deve consumir muita mana.

    Os dois ficaram em silêncio por um tempo, Carlos com dificuldade conseguiu fazer a fogueira, ambos apenas observavam as chamas dançando.

    Depois de um tempo Tassi engoliu seco, lembrando-se do duelo desnecessário que forçara Quixotina a gastar energia preciosa.

    — A culpa talvez seja mais minha — admitiu. — Por causa daquele duelo inútil…

    Nesse momento, uma voz fraca interrompeu a conversa:

    — A culpa não é de nenhum dos dois. Fui eu que exagerei hoje. A gema da luz consome muito mais mana do que a da força… por isso só a uso em momentos críticos.

    Carlos e Tassi viraram-se surpresos.

    — Você está viva! — disseram quase em uníssono.

    Quixotina permanecia deitada, os olhos fechados.

    — Estou… mas esta enxaqueca me faz querer estar morta.

    — Nem pense nisso! — exclamou Tassi. — Você deveria agradecer por estar apenas com dor de cabeça! Porque você morreu, e foi o Carlos que a salvou.

    — O quê? — Quixotina abriu os olhos, confusa. — Morri? Só me lembro de tudo escurecendo… Como me salvou?

    Antes que Carlos pudesse responder, um homem surgiu entre as árvores, gritando:

    — Estão aqui!

    ───────◇───────◇───────

    Não muito longe dali, uma garotinha branca, de olhos e cabelos castanhos, baixinha e rechonchuda, observava a floresta com os olhos cheios de preocupação. Já era noite fechada, e as luzes das casas do Mocambo do Tatu cintilavam atrás dela, mas à frente, na mata, só havia escuridão.

    A menina estava tão concentrada que não percebeu a chegada de um amigo — um menino que recentemente se mudara para o quilombo e já se tornara seu companheiro de brincadeiras.

    — Não se preocupe — disse o garoto. — Meu pai disse que a Tassi é muito forte, e o Carlos é esperto. Eles logo chegam. Vem comer com a gente enquanto isso! A Tia Vera fez bolo.

    A garotinha ia responder quando viu figuras saindo da mata. Reconheceu a mãe no meio delas e saiu correndo. Porém, ao ver Quixotina sendo carregada por duas pessoas, seu coração apertou.

    — Mãe! — ela gritou, abraçando as pernas de Quixotina. — Você está bem?

    A menina estava à beira das lágrimas.

    — Estou bem, filha — respondeu Quixotina, com voz fraca. — Só estou cansada. Não se preocupe. Esses guardas vão me levar para casa para eu descansar.

    Aliviada, a garota não conseguiu conter as lágrimas e chorou enquanto acompanhava a mãe e os guardas.

    Carlos observou a cena, confuso. “Como assim ‘filha’? Essa menina deve ter uns dez anos, e a Quixotina não parece ter mais que vinte e cinco…”

    Um menino correu na direção de Carlos e Tassi.

    — Tio Carlos! Tia Tassi! O que aconteceu com a mãe da Dulcinéia?

    Carlos quase riu. “Não me diga que ela deu à filha o nome da personagem de Dom Quixote… Pelo menos é mais bonito que Quixotina. E explica por que ela sempre pergunta quem é a menina mais fofa do mundo.”

    Pedro apareceu atrás do garoto.

    — Zézinho, eles estão cansados. Depois respondem suas perguntas. Agora está escuro, volte para casa e peça para fazerem mais comida — orientou. Em seguida, olhou para Carlos e Tassi. — Vocês devem estar exaustos. Venham para minha casa; ainda sobrou janta, e a Tia Vera fez bolo.

    — Claro — aceitou Carlos. — Só precisamos guardar o que conseguimos.

    Antes de armazenarem o salitre, porém, tiveram que relatar o ocorrido aos guardas que os resgataram. Ao mencionarem o boitatá, os guardas pareceram assustados e saíram correndo para avisar Aqua.

    Carlos estava exausto e faminto, mas primeiro guardou o salitre em sua casa, junto com Tassi. Ainda não tinham um armazém adequado — mais um projeto para o futuro.

    Já na casa de Pedro, o cheiro reconfortante de comida encheu o ar.

    — Boa noite, Tia Vera — cumprimentou Carlos.

    — Podem se sentar — respondeu ela, sorridente. — Aposto que estão cansados e com fome. Enquanto esquento a comida, me contem o que aconteceu.

    Os dois narraram os eventos em detalhes. Zézinho, normalmente irrequieto, ficou em silêncio, ouvindo atentamente. Ao final, Carlos acrescentou:

    — Hoje não fui muito útil. Não esperava encontrar criaturas mitológicas neste mundo… Me pergunto que outros monstros existem por aí.

    Um arrepio percorreu sua espinha. Tassi também parecia perturbada. “Não acredito que caí daquele jeito e ainda deixei a arma cair no pior momento…”

    Foi então que Carlos notou as mãos de Tassi, marcadas por queimaduras.

    — O que aconteceu com suas mãos? Foi o boitatá?

    Ela escondeu as mãos, constrangida.

    — Ah, não é nada… Só que o revólver esquentou muito durante o confronto.

    Tia Vera, que terminara de esquentar a comida e servia os pratos, interveio:

    — Nada disso, mocinha. Você precisa ver a benzedeira do mocambo para tratar essas feridas.

    Carlos sorriu internamente. “Não estamos aqui há um mês, e ela já sabe de tudo. Deve ser daquelas tias que ficam na esquina cuidando da vida alheia…”

    Após a refeição, Tia Vera trouxe um pequeno bolo de chocolate.

    — Pelo visto a senhora gostou da nega maluca — comentou Carlos.

    Pedro e Tassi olharam confusos, enquanto Zézinho ficou vidrado no bolo.

    — Ha ha ha, adorei! — riu Tia Vera. — Pena que logo vai acabar o cacau, e não temos como comprar mais.

    Tassi olhou para Carlos, intrigada.

    — Não me diga que esse bolo também é do seu mundo?

    — Mas é claro! — respondeu ele, orgulhoso. — É uma delícia.]

    Em pouco tempo, o bolo sumiu — todos adoraram, exceto Carlos, que pensou: “Pena não ter leite condensado para a cobertura…”

    Pedro ficou impressionado. “Ele nos libertou, salvou aquela mulher e ainda deu uma receita incrível para minha mãe. O que mais será que sabe?”

    Após a janta, todos se despediram. A caminho de casa, Carlos refletiu: “Só quero um banho e dormir, mas como tomar banho no escuro? E temos que ir até o riacho… Melhor não arriscar encontrar outra aberração. Vou ter que dormir fedendo a guano mesmo. Pelo menos não vou sujar nada — não tenho cobertas, só uma cama de palha que vive me pinicando.”

    Chegando em casa, deitou-se e adormeceu instantaneamente, vencido pelo cansaço.

    No dia seguinte, acordou cedo e foi direto ao riacho para tomar banho. O local era usado principalmente pelo pessoal que chegara com Carlos, por ser mais perto de suas casas. A água escorria montanha abaixo, formando um riacho raso — até que os ex-escravos escavaram um buraco no leito, criando uma lagoa artificial funda o suficiente para banhos. A água caía em uma pequena cascata, e o lugar, cercado por árvores, oferecia uma vista tranquila da natureza. Um caminho até lá estava em construção.

    A água da lagoa fluía para outro poço, lamacento e não utilizado para banho. Alguns moradores ainda coletavam água do riacho mais acima, evitando o local de banho.

    Como era cedo e não havia ninguém, Carlos tirou a roupa e mergulhou — e imediatamente se arrependeu.

    — Meu Deus, que água gelada! Devia ter entrado devagar…

    Normalmente, ele tomava banho mais tarde, para evitar aglomerações — primeiro as mulheres, depois os homens —, mas agora temia encontrar o boitatá no escuro.

    — Sinto-me como uma criança com medo do boitatá — resmungou. — Daqui a pouco vão me dizer que existem Saci Pererê, mula sem cabeça, Curupira… Alguns até seriam legais, como um dragão. Já me imagino como um cavaleiro lutando contra um com uma espada… Nah, seria devorado na hora.

    Pensando melhor, concluiu: — Melhor tentar explodir o dragão com pólvora enquanto ele dorme. Aliás, talvez funcione com o boitatá. Preciso terminar a pólvora. Tomara que dê certo — afinal, agora sei que não são só os portugueses que ameaçam o quilombo; os monstros também… Cada dia que passa me convence mais de que pólvora e armas são essenciais.

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