Índice de Capítulo

    Na manhã seguinte, Carlos foi visitar Quixotina, que ainda se recuperava no leito, pálida e com olheiras profundas. O esgotamento mágico a deixara tão fraca que mal conseguia segurar um copo d’água.

    — Como você está se sentindo? — perguntou ele, preocupado.

    — Como se tivesse sido atropelada por uma carroça — respondeu ela, com voz rouca. — Mas estou viva, graças a você. Aqua me contou o que fez… chamou aquilo de “ritual de ressurreição”.

    Carlos suspirou, imaginando os rumores que já deviam estar circulando pelo quilombo.

    “Parece que estou praticando magia negra em vez de fazer uma simples massagem cardíaca.”

    — Não foi nenhum ritual — explicou pacientemente. — São apenas técnicas de primeiros socorros do meu mundo.

    Depois de garantir que Quixotina estava em boas mãos, Carlos passou a manhã ensinando os procedimentos básicos de reanimação aos guardas do quilombo. Mostrou como verificar pulsos, fazer compressões torácicas e respiração boca a boca, sob olhares que variavam entre o ceticismo e a admiração.

    Ao meio-dia, encontrou Tassi perto do riacho, lavando a sujeira das mãos.

    — Então, qual é o nosso próximo passo? — perguntou ela, secando as mãos na roupa.

    Carlos esfregou o rosto, cansado. O cheiro de terra molhada e folhas secas enchia o ar.

    — Agora que conseguimos o salitre, precisamos purificá-lo para a produção da pólvora negra. O livro que tenho sobre a história das armas de fogo explica como faziam isso no passado.

    Ele abriu o livro gasto, mostrando os diagramas para Tassi.

    — Precisamos de tanques de argila grandes para misturar o salitre com água. As impurezas vão para o fundo, e aí filtramos a água. Vamos pedir ao oleiro do mocambo para fazer os tanques. Para o filtro, precisamos da tecelã, e para ferver a mistura, de uma panela de ferro — teremos que encomendar à Nia. Enquanto isso, construímos um local adequado para a purificação.

    — Nossa, quanto trabalho — comentou Tassi, olhando os desenhos complexos. — Mas valerá a pena se conseguirmos mais armas. Certo, vamos fazer isso!

    Depois de encomendarem os materiais aos artesãos, os dois começaram a construir o galpão para a purificação do salitre. A estrutura seria de barro com telhado de palha, como a maioria das construções do quilombo. O sol quente castigava suas costas enquanto trabalhavam.

    — Sabe — disse Tassi, parando para enxugar o suor da testa —, poderiam nos emprestar algum artefato mágico com gemas da terra e de plantas. Mesmo sendo armas, serviriam para construir este galpão. Quando estava no exército das Mino, era responsável por construir acampamentos. Agora que viram que você sabe coisas além de armas, como aquele… ritual de ressurreição, talvez nos deem mais apoio.

    Carlos quase riu da confusão entre medicina e magia.

    — Mas não dá para usar seu cajado?

    — Não, ele só faz as plantas crescerem — explicou Tassi, balançando a cabeça.

    — Entendi. Vamos falar com Aqua agora. Com a aprovação dela, conseguimos os artefatos e a permissão para construir.

    Com a autorização de Aqua, receberam dois braceletes prateados — um com gema verde, outro com gema marrom. Um guarda foi designado para acompanhá-los, e Aqua orientou que construíssem o galpão afastado, perto dos tocos de árvores onde haviam testado as armas anteriormente.

    Ao chegarem no local, Carlos observou a planície coberta de mato e tocos, já imaginando a área no futuro como uma zona industrial em potencial.

    Tassi escolheu um ponto próximo à floresta.

    — Por que aqui? — perguntou Carlos, confuso.

    — Logo você verá por que precisa ser perto das árvores — respondeu ela, misteriosa.

    Colocou os braceletes e pisou fortemente com o pé esquerdo no chão, enquanto socava o ar com a mão fechada. Imediatamente, uma parede de terra lisa e sólida ergueu-se do chão. Carlos observou, maravilhado, enquanto ela repetia o movimento para formar as outras paredes e uma coluna central.

    Em seguida, Tassi aproximou-se de uma árvore envolta por cipós. Com seu cajado do crescimento em uma mão e tocando os cipós com a outra, a gema verde em seu bracelete brilhou intensamente. Os cipós começaram a subir em direção ao telhado, multiplicando-se e entrelaçando-se como serpentes verdes, até cobrirem completamente a estrutura, bloqueando toda a luz externa. O que levaria semanas estava pronto em menos de uma hora.

    Tassi olhou para Carlos e o guarda, ambos boquiabertos, e sentiu uma onda de orgulho.

    “É nessas coisas que sou boa. Se tivesse uma arma mágica decente, aquela cobra não teria tido chance. Quando era guerreira, era uma das melhores.”

    Suas pernas tremeram levemente, e uma dor de cabeça surgiu.

    “Droga, usei mana demais. Mas valeu a pena para deixá-los impressionados. E estou com fome…”

    — Agora que o galpão está pronto, podemos ir almoçar, né? — disse, tirando os braceletes e entregando-os ao guarda ainda pasmo.

    Carlos demorou a se recompor.

    — Sim… vamos almoçar.

    “Se até o guarda ficou assim, o que ela fez deve ser realmente extraordinário. Como eu queria ter poderes assim…”

    Após o almoço, levaram as cestas de salitre para o galpão. Como ainda não tinham as ferramentas para refiná-lo, deixaram tudo armazenado ali.

    No dia seguinte, Carlos ponderou sobre quem poderia guiá-los na caverna de pirita. Originalmente pensaram em Quixotina, mas ela ainda se recuperava. Desta vez, porém, não precisariam de alguém com poderes mágicos, pois a caverna ficava dentro do mocambo, não na mata perigosa. Aqua lhes contara que o quilombo se formara justamente porque as pessoas vinham buscar gemas de fogo naquela caverna.

    Decidiram pedir à Aqua um guia, mas primeiro precisavam de ferramentas de mineração. Foram até a oficina de Nia, a ferreira.

    O local estava quente e barulhento, com quatro aprendizes trabalhando vigorosamente. Um deles martelava um cano de mosquete ainda irregular.

     Nia, perto da fornalha, jogou algumas gemas de fogo sob ela, que, após alguns segundos, incendiaram-se.

    Nia estava tão imersa em seu trabalho que nem percebeu a chegada dos visitantes. Seus movimentos eram precisos e fluidos, como se dançasse com o fogo. Com luvas especiais adornadas por pequenas gemas de fogo e ferro, ela segurou firmemente uma barra de ferro incandescente que brilhava com um vermelho intenso na fornalha.

    O que se seguiu parecia magia pura: o ferro começou a se contorcer e se modificar sozinho, como se tivesse vida própria. Nia mantinha as mãos firmes no cabo, mas era o metal que parecia estar se moldando por vontade própria, assumindo formas complexas e precisas sob seu comando suave. O ar ao redor deles estremecia com o calor, e o cheiro de metal quente impregnava a oficina.

    Só depois de vários minutos, quando a peça começou a tomar sua forma definitiva, que Nia finalmente ergueu os olhos e percebeu Carlos e Tassi parados na entrada, ambos com expressões de completo espanto diante de sua habilidade de manipular o ferro incandescente com tal maestria.

    — Bom dia — cumprimentou ela. — No que posso ajudá-los? Estou bem ocupada para novos pedidos.

    Carlos ficou fascinado com as gemas de ativação retardada e também com a manipulação de ferro.

    “Se podemos controlar o tempo de ignição, seria perfeito para bombas com pólvora! Muito mais prático que um rastro de pólvora… Além disso, tamanho controle sobre o ferro pode permitir fazermos máquinas mais complexas! Talvez até máquinas a vapor, vou poder trazer a revolução industrial!”

    Tassi, vendo-o distraído, respondeu por ele:

    — Viemos buscar algumas picaretas de ferro. Precisamos coletar um mineral na mina do mocambo.

    Nia sorriu.

    — Se é só isso, chegaram na hora certa. Não só tenho as picaretas como vou com vocês. Preciso de uma boa pedra de pirita para a pederneira da arma.

    Carlos animou-se com a notícia.

    — Pirita é exatamente o que precisamos! E adoraríamos ter sua ajuda para identificar as veias.

    Nia limpando o suor da testa sorriu.

    — Excelente! Vou pegar o equipamento. Também estou curiosa sobre o que fará com essa pirita.

    Enquanto Nia saía, os quatro aprendizes fixaram olhares intensos em Carlos. Ela logo retornou com três picaretas e um martelo numa cesta de palha.

    Saindo da oficina, seguiram para a mina, subindo a encosta da montanha.

    — Acho que seus aprendizes não gostam muito de mim — comentou Carlos. — Ficaram me encarando depois que você saiu.

    Nia riu.

    — Ha ha ha, não ligue! Devem estar com ciúmes porque saí com outro homem. Acham que vou fazê-lo meu novo marido.

    Tassi arregalou os olhos.

    — Espera, quer dizer que todos são seus maridos?

    — Exatamente! Lindos e musculosos, não são? — Nia fez uma pausa e olhou maliciosamente para Carlos. — Mas também me importo com a personalidade. Se a pessoa for interessante, inteligente e extraordinária, ganha muitos pontos comigo.

    Carlos sentiu o rosto esquentar.

    “Não, não, o que estou pensando? Tudo bem que estou na seca desde que cheguei, mas isso não significa que queira casar e compartilhar minha mulher… Deve ter alguma solteira por aqui.”

    — Vamos focar no trabalho — disse, constrangido. — Não quero ganhar quatro inimigos.

    “Não acredito que recusei uma mulher. Acho que nunca uma mulher deu em cima de mim tão descaradamente.”

    Mudando de assunto, perguntou:

    — As gemas de fogo que você usou incendiaram-se depois de um tempo.

    — Ah, isso! São as únicas gemas que conseguimos talhar aqui sem um artesão mágico. Aqua tem algum conhecimento sobre gemas de fogo e nos ensinou. Conseguimos fazer isso, mas não muito mais.

    “Isso já seria uma arma letal com pólvora!”

    Chegando à caverna, adentraram a mina, menor que a que haviam visitado antes, com vigas de madeira sustentando o teto e suportes para tochas. Cada um carregava uma tocha, seguindo Nia. Em uma bifurcação, ela explicou:

    — À esquerda, veias de gemas de fogo — por isso se chama Caverna do Fogo. À direita, o mineral que vocês querem.

    Seguindo à direita, encontraram veias brilhantes nas paredes. Carlos reconheceu a pirita por seu brilho dourado — entendendo agora por que a chamavam de “ouro dos tolos”. Qualquer um sem experiência poderia confundi-la com ouro verdadeiro.

    — Chegamos! Vou ajudá-los a coletar — disse Nia. — Preciso de uma boa pirita para a pederneira. Como você disse, precisa fazer uma boa faísca para acender a pólvora.

    — Lembrou direitinho. Aliás, como anda a produção da arma?

    Nia suspirou antes de responder.

    — Está demorando, o ferro que temos não é de boa qualidade — explicou Nia. — Temos que martelá-lo muito para melhorar. Além disso, peças como o cão e o friso são complexas, com partes mais espessas e finas.

    Carlos pensou que, no futuro, os ferreiros talvez não fossem mais necessários para tais peças, especialmente para produção em massa, mas guardou seus pensamentos.

    Começaram a trabalhar, usando as picaretas para extrair a pirita e colocá-la nas cestas. Nia ocasionalmente batia em um pedaço com seu martelo para testar as faíscas. Para uma arma de pederneira, quanto mais faíscas, melhor. Logo encontrou uma pirita adequada, mas continuou ajudando.

    Após meio dia de trabalho, o grupo saiu da caverna, exausto e faminto.

    — Sabe, esta pirita é composta de ferro e enxofre — explicou Carlos. — Infelizmente, não temos como extrair o ferro puro agora, mas só o enxofre já será útil.

    — Sério? — Nia pareceu surpresa. — Pensei que só servia para faíscas! Se conseguir ferro para nós, ficarei muito agradecida. Sempre falta ferro aqui. Comercializamos alimentos com pessoas da região em troca de ferro e outros itens — eles não são donos de escravos, por isso negociamos com eles, mas mesmo assim têm recursos limitados. Qualquer fonte adicional de ferro ajudaria muito.

    Ao descerem a montanha, Nia entregou sua cesta de pirita, ficando apenas com a pedra para a pederneira. Tassi e Carlos levaram o restante para o galpão, onde refinariam o salitre e extrairiam o enxofre da pirita.

    “Agora vem a parte difícil,” pensou Carlos, olhando para as cestas cheias. O trabalho verdadeiro estava apenas começando.

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