Carlos estava no depósito que construíram olhando para a pirita que pegaram na Caverna do Fogo.

    “Conseguir enxofre através da pirita não é uma tarefa simples. Temos que aquecer e resfriar o minério repetidamente para separar o enxofre e no meio desse caminho, se oxigênio demais entrar, o enxofre se une com ele formando SO2 um gás extremamente tóxico e corrosivo que queima nossos pulmões e diminui o rendimento de enxofre.”

    “Por isso o forno em que a pirita vai ser aquecida tem que ser feito de cerâmica vitrificada, que é uma cerâmica que é capaz de conter a corrosão e suporta o calor intenso. Por sorte o oleiro do quilombo sabe como fazê-la, mas não vai ser um processo rápido, cada peça precisa ser moldada, secada e queimada com precisão. Seria tão mais fácil se a gente pudesse apenas minerar enxofre diretamente, pena que no Brasil não existe algum lugar para se conseguir enxofre facilmente, nem minas de enxofre, nem vulcões.”

    “De qualquer forma já pedi pro oleiro do mocambo fazer as coisas que precisamos, agora só resta esperar, até porque também precisamos que Nia faça os caldeirões de ferro para refinamos o salitre, e falta os filtros que estão sendo produzidos pelos tecelões do mocambo. Enquanto espero acho que posso fazer algo para levantar o ânimo de Quixotina…”

    A tarde Carlos e Tassi foram visitar Quixotina. Quando entraram na casa de Quixotina, notaram como era parecida com as demais casas feitas de  pau-a-pique e barro, apenas mais espaçosa e com uma cama de verdade, e em vez de móveis de barro, possuía cadeira e mesas de madeira rústicas mas sólidas, além de uma magnífica armadura de aço com peitoral em formato de seios pendurada na parede.

    Quixotina estava deitada na cama, meio pálida e com os olhos cansados, tomando uma sopa.

    Vendo que a Tia Vera estava lá, Carlos não pode deixar de ficar surpreso:

    — O que está fazendo aqui? Te deixam andar livremente?

    — Sim, o Zézinho virou muito amigo de Dulcinéia e implorou para a gente vê-la, e os guardas deixaram a gente visitá-la, afinal acho que uma velha e uma criança não vão destruir o quilombo não é mesmo. Além disso, alguém tinha que ajudar Quixotina enquanto ela se recupera.

    Quixotina olhou para Dulcinéia que estava brincando no chão com Zézinho e disse:

    — Estou agradecida. Minha Dulcinéia é tão tímida… ver ela brincando assim é me dá uma felicidade imensa. E a Tia Vera tem sido um anjo na minha recuperação.

    Carlos observou a cena, e um sentimento quente de realização brotou em seu peito. “Foi apenas sair do engenho que a Tia Vera passou a fazer amizades e a sorrir mais. Que bom, que bom que pude fazer a diferença.”

    Tassi olhou para Quixotina e perguntou:

    Tassi, que observava Quixotina com um olhar de quem conhece bem aquele estado, aproximou-se:

    — Como está se sentindo? — Perguntou, sua voz incomumente suave. 

    — Lembro-me perfeitamente das vezes em que minha magia se esgotava. Acordava com uma fome de leão e uma dor de cabeça implacável, como se meu crânio estivesse prestes a rachar… no seu caso, foi além. Você morreu, mesmo que por pouco tempo.

    Quixotina ofereceu um sorriso fraco.

    — Estou melhor, obrigada. A fome já passou, mas a cabeça… bem, ainda lateja um pouco, sim. É o preço que pagamos por empurrar nossos limites.

    Carlos vendo isso sorriu e não pode deixar de falar:

    — Nem parecem que são as mesmas que ficaram brigando a viagem toda. 

    As duas reviraram os olhos em perfeita união, vendo a reação das duas, continuou: 

    — Também trouxe um doce do meu mundo, acho que você vai amar.

    Quixotina ficou animada com a notícia, apesar de dizer que sua cabeça só doía um pouco, na realidade doía muito, e comer era algo que fazia esquecer da dor.

    — Sério, muito obrigada.

    — Seríssimo. 

    Em suas mãos havia um pote grande de argila, vedado com um pano e uma corda, o colocou na mesa, pegou umas colheres de madeira e com um gesto dramático abriu a tampa, dentro dele havia um creme pálido e espesso exalava uma névoa fria e sedutora.

    Todos se aglomeraram ao redor da mesa, curiosos. Dulcinéia e Zézinho abandonaram seus brinquedos, atraídos pelo mistério, até que Quixotina perguntou:

    — O que é isso?

    — Sorvete, uma maravilha gelada de meu mundo, normalmente seria impossível fazer algo assim nesse tempo, mas com a ajuda de Pedro e sua gema do gelo, e do filho do carpinteiro que me ajudou com seu poder a fazer tipo um liquidificador, que é um trem que mexe as coisas, e mais um pouco de tempo e experimentação consegui fazer sorvete.

    Enquanto falava, pegava pequenas tigelas da casa e colocava sorvete neles.

    — Tem sorvete de limão, canela, mangaba feitos com leite e adoçados com mel.

    — Mel! — Só de ouvir isso Quixotina já babava.

    — Tio! O que é isso!? — Perguntou Zézinho, com os olhos arregalados.

    — Sorvete, podem experimentar, tem que comer antes que derreta.– Disse enquanto entregava uma tigela para cada um.

    Quixotina foi a primeira a levar a colher à boca. Seus olhos se fecharam enquanto o sabor frio e cremoso da canela e do mel se espalhava por seu paladar, anestesiando momentaneamente a dor. 

    — Mais que delicia! Fazia tanto tempo que não saboreava uma sobremesa tão esplêndida!

    Logo todos começaram a experimentar o sorvete.

    — Menino! Tem que me passar a receita disso!

    — Vou passar, não se preocupe.

    Zézinho acabou comendo tão rápido que sentiu dor de cabeça.

    — Ai! Minha cabeça dói! — Gritou segurando a cabeça.

    — Ah, esqueci de avisar, não pode comer muito rápido senão ‘congela o cérebro’!

    — Não tá doendo nada tio! Isso pra mim não é nada, sou forte, até pode me entregar mais sorvete!

    — Isso não é justo, também quero! — Disse Dulcinéia.

    — Calma, calma, pode sim, tem mais um pouco pra todo mundo.

    Tassi se levantou e pegou mais um pouco para si mesma enquanto falava:

    — É gostoso mesmo, mas para a Quixotina você faz um doce maravilhoso desses e eu ganho uma simples pipoca? 

    — Quando você quase morrer e ficar de cama, vou fazer um balde inteiro só para você.

    — A mamãe quase morreu? —  A voz pequena e assustada de Dulcinéia cortou o ar. 

    — Ela me disse que só tinha tropeçado…

    Um silêncio constrangedor pairou sobre a sala. “Putz, falei demais”.

    Quixotina passou a mão na cabeça de Dulcinéia e disse:

    Quixotina, porém, agiu com uma serenidade materna que acalmou a situação. Puxou a filha para perto, passando a mão em seus cabelos. 

    — Eu te preocupei, não foi, meu amor? Perdoa-me. A mamãe encontrou um monstro muito mau, mas está tudo bem agora. Sobrevivi graças a este moço aqui, o mesmo que trouxe o sorvete.

    Ela olhou a filha com carinho e disse:

    — Aliás, não tens algo a dizer a ele?

    Dulcinéia, se aproximou mais de sua mãe, pegou seu braço e se escondeu atrás dele antes de se virar para Carlos e dizer com os olhos lacrimejando:

    — Obrigada, tio…

    — De nada, mas tenho que agradecer sua mãe que me salvou, realmente é uma verdadeira cavaleira.

    Carlos se abaixou até a altura de dulcinéia, pegou sua tigela e disse:

    — Vou pegar mais sorvete pra você que foi muito corajosa ao esperar sua mãe naquele dia.

    Se levantou e foi pegar mais sorvete quando uma mão forte, mas meio enfraquecida o puxou, era Quixotina.

    — Pega mais para mim também?

    — Claro.

    Zézinho vendo isso, se sentiu meio culpado, e disse.

     — Obrigado tio… Pega mais sorvete para mim também?

    — Claro.

    Depois de pegar mais sorvete para as meninas, se abaixou com o pote de Zézinho e disse:

    — Vai ser como agradecimento pelo cajus que você pegava.

    A Tia Vera, que observava a cena com o coração apertado, sentiu um onda de alívio e orgulho. “Nem precisei mandar, pensou, o menino está aprendendo a sentir gratidão de verdade.” Seu sorriso era tão largo que quase não cabia em seu rosto enrugado.

    Já Zézinho ficou sem jeito com o elogio direto e para fugir foi correndo em direção a sua avó, pegou a tigela dela e foi até Carlos:

    — Pega para minha vó também.

    Vendo tudo isso, Tassi acabou ficando com inveja deles, não havia nenhum familiar que a amasse em sua família. Também nunca comia doce nenhum, vivia fazendo canas de açúcar crescer no canavial, mas não podia nem tomar uma gota de guarapa, imagina ainda açúcar, mas logo se recuperou e sentiu vergonha por sentir inveja de crianças.

    Ela desviou o olhar para a parede, fingindo interesse pela textura do barro, enquanto sua mente mergulhava em um rio de pensamentos amargos. “Queria ter crescido num lugar assim. Num lugar onde um adulto te oferece um doce não como um prêmio por obedecer, mas simplesmente para te ver feliz. Meus próprios pais me entregaram como um pacote no palácio do rei. O destino de uma menina feia e forte: não serviria de concubina, então me jogaram no exército das Mino. Lá, fui obrigada a crescer. A trocar infância por espada, carícias por cicatrizes.”

    Seu punho cerrou involuntariamente ao lado do corpo. “Se tivesse crescido num lugar assim… seria uma pessoa diferente. Mais macia. Mais inteira…. Pena que essa pequena felicidade é tão frágil. É como uma flor desabrochando no meio de um campo de batalha. Há tantos querendo pisoteá-la, destruir este lugar… Talvez tenha sido bom ter crescido como cresci. Porque essa dureza que adquiri, essa frieza de quem sobreviveu, é o que me permite proteger essa flor. Mesmo que não esteja na linha de frente do exército do quilombo, posso defendê-lo de outras maneiras. Posso forjar as armas que os guardarão. Posso garantir que essas crianças tenham mais dias como este.”

    Tassi não era a única que estava perdida em pensamentos, Quixotina também refletia sobre seu passado:

    “Essa sobremesa me lembrou do meu tempo como nobre, tantos doces que eu podia comer, uma das poucas coisas boas daquela vida, talvez fosse a única coisa boa daquela vida, isso e meu tio…Sinto tanto sua falta,você, que me ensinou a segurar uma espada antes tanto quanto me ensinou a segurar uma pena para escrever, que me via como a pessoa que eu era, ão a dama que queriam que eu fosse. O que você diria se me visse agora? Uma fugitiva, uma foragida, vivendo em um quilombo…”, seu olhar baixou para Dulcinéia, que comia o sorvete com uma concentração feliz. “…Mas com a sua tão amada sobrinha-neta nos braços. Você adoraria ela. Acharia ela a mais perfeita e corajosa das cavaleiras. Queria tanto que você pudesse vê-la.”

    Uma lágrima teimosa, que não tinha nada a ver com a dor de cabeça, ameaçou escorrer. Ela a enxugou rapidamente com as costas da mão, disfarçando com outra colherada de sorvete.

    Logo todos saíram e se despediram, e este pequeno momento de felicidade acabou.

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