Índice de Capítulo

    O ar no depósito era pesado e morno, carregado do cheiro terroso da madeira crua e do pó metálico do minério. Carlos observava as amostras de pirita, que cintilavam com falsos reflexos dourados à luz fraca que entrava pelas frestas. O contato áspero e frio da rocha em suas mãos era um lembrete do desafio que tinha pela frente.

    “Conseguir enxofre através da pirita não é uma tarefa simples”, pensou, sua mente percorrendo os intricados processos alquímicos. “Temos que aquecer e resfriar o minério repetidamente para separar o enxofre. E no meio desse caminho, se oxigênio demais entrar, o enxofre se une com ele, formando SO₂, um gás extremamente tóxico e corrosivo que queima nossos pulmões e diminui o rendimento de enxofre.”

    Ele suspirou, esfregando a nuca. “Por isso o forno em que a pirita vai ser aquecida tem que ser feito de cerâmica vitrificada, que é uma cerâmica capaz de conter a corrosão e suportar o calor intenso. Por sorte, o oleiro do quilombo sabe como fazê-la, mas não vai ser um processo rápido. Cada peça precisa ser moldada, secada e queimada com precisão.” Sua voz era um sussurro cansado no silêncio do galpão. “Seria tão mais fácil se a gente pudesse apenas minerar enxofre diretamente… Pena que no Brasil não existe algum lugar para se conseguir enxofre facilmente, nem minas de enxofre, nem vulcões.”

    Abandonando a pirita sobre uma tábua áspera, ele se levantou, estalando as juntas. “De qualquer forma, já pedi pro oleiro do mocambo fazer as coisas que precisamos. Agora só resta esperar, até porque também precisamos que Nia faça os caldeirões de ferro para refinarmos o salitre, e faltam os filtros que estão sendo produzidos pelos tecelões do mocambo.” Um pensamento mais leve cruzou sua mente, trazendo um ligeiro sorriso aos seus lábios. “Enquanto espero, acho que posso fazer algo para levantar o ânimo de Quixotina…”

    No final da tarde, Carlos e Tassi se dirigiram até a casa de Quixotina. O sol já começava a se pôr, lançando longas sombras pelo quilombo e pintando o céu com tons alaranjados e púrpuras. Ao entrarem, notaram que a casa era semelhante às outras, construída em pau-a-pique e barro, mas era mais espaçosa. O cheiro doce e úmido da terra batida misturava-se ao aroma de ervas secas penduradas no teto. Em vez de móveis de barro, possuía cadeiras e mesas de madeira rústicas, mas sólidas ao toque. Na parede, uma magnífica armadura de aço com peitoral em formato de seios pendia, reluzindo fracamente na penumbra.

    Quixotina estava deitada na cama, seu rosto marcado por uma palidez que contrastava com seus traços normalmente vigorosos. Os olhos, outrora cheios de fogo, agora estavam pesados e cansados. Ela levava uma colher de sopa morna à boca com movimentos lentos.

    E para sua surpresa Tia Vera estava ali também.

    — Tia Vera? O que está fazendo aqui? Te deixam andar livremente?

    — Sim, meu filho — respondeu a idosa, com um sorriso tranquilo. — O Zézinho virou muito amigo de Dulcinéia e implorou para a gente vê-la. Os guardas deixaram a gente visitá-la; afinal, acho que uma velha e uma criança não vão destruir o quilombo, não é mesmo? Além disso, alguém tinha que ajudar Quixotina enquanto ela se recupera.

    Quixotina olhou para Dulcinéia, que brincava no chão com Zézinho com um boneco de palha, e uma expressão de terna gratidão suavizou seus traços.

    — Estou agradecida — disse, sua voz um pouco rouca. — Minha Dulcinéia é tão tímida… Ver ela brincando assim me dá uma felicidade imensa. E a Tia Vera tem sido um anjo na minha recuperação.

    Carlos observou a cena, e um sentimento quente de realização brotou em seu peito. “Foi apenas sair do engenho que a Tia Vera passou a fazer amizades e a sorrir mais. Que bom, que bom que pude fazer a diferença.”

    Tassi, que observava Quixotina com um olhar de quem conhece bem aquele estado, aproximou-se da cama.

    — Como está se sentindo? — perguntou, sua voz incomumente suave.

    — Lembro-me perfeitamente das vezes em que minha magia se esgotava. Acordava com uma fome de leão e uma dor de cabeça implacável, como se meu crânio estivesse prestes a rachar… No seu caso, foi além. Você morreu, mesmo que por pouco tempo.

    Quixotina ofereceu um sorriso fraco, um fio de força em meio ao cansaço.

    — Estou melhor, obrigada. A fome já passou, mas a cabeça… bem, ainda lateja um pouco, sim. É o preço que pagamos por empurrar nossos limites.

    Carlos, vendo a interação, sorriu e não pôde deixar de brincar:

    — Nem parecem que são as mesmas que ficaram brigando a viagem toda.

    As duas mulheres reviraram os olhos em perfeita união, e vendo a reação delas, ele continuou, seu sorriso se alargando:

    — Também trouxe um doce do meu mundo. Acho que você vai amar.

    Quixotina ficou visivelmente animada com a notícia. Apesar de dizer que a cabeça só doía um pouco, a dor era uma batida constante e incômoda nas suas têmporas, e a promessa de algo doce era tentadora.

    — Sério? Muito obrigada.

    — Seríssimo — garantiu Carlos.

    Em suas mãos, ele trouxe à tona um pote grande de argila, vedado com um pano preso por uma corda. Colocou-o sobre a mesa de madeira, pegou algumas colheres e, com um gesto dramático, removeu a tampa. De dentro do pote, um creme pálido e espesso exalava uma névoa fria e sedutora, cujo aroma sutil de canela e limão pairava no ar.

    Todos se aglomeraram ao redor da mesa, atraídos pela curiosidade. Dulcinéia e Zézinho abandonaram seus brinquedos no chão de terra, seus pequenos pés fazendo um ruído suave ao se aproximarem.

    — O que é isso? — perguntou Quixotina, seus olhos refletindo o creme esbranquiçado.

    Carlos encheu as tigelinhas de madeira que pegou da dispensa.

    — Sorvete. Uma maravilha gelada de meu mundo. Normalmente seria impossível fazer algo assim nesse tempo, mas com a ajuda de Pedro e sua gema do gelo, e do filho do carpinteiro que me ajudou com seu poder a fazer tipo um liquidificador — que é um trem que mexe as coisas —, e mais um pouco de tempo e experimentação, consegui. Tem sorvete de limão, canela e mangaba, feitos com leite e adoçados com mel.

    — Mel! — exclamou Quixotina, e só de ouvir a palavra, pareceu que sua boca já se encheu de água.

    Zézinho puxou a barra da calça de Carlos, seus olhos arregalados.

    — Tio! O que é isso!?

    — Sorvete, Zé. Podem experimentar, mas tem que comer antes que derreta — disse ele, enquanto entregava uma tigela para cada um.

    Quixotina foi a primeira a levar uma colherada cheia à boca. Seus olhos se fecharam instantaneamente enquanto o sabor frio, cremoso e intenso da canela e do mel se espalhava por seu paladar, anestesiando momentaneamente a dor latejante em seu crânio.

    — Mas que delícia! — ela exclamou, uma explosão de genuíno prazer em sua voz. — Fazia tanto tempo que não saboreava uma sobremesa tão esplêndida!

    Logo, todos começaram a experimentar. O som de colheres raspando contra as tigelas encheu o ambiente.

    — Menino! — disse Tia Vera, lambendo os lábios. — Tem que me passar a receita disso!

    — Vou passar, não se preocupe — riu Carlos.

    Zézinho, porém, acabou comendo tão rápido que, de repente, levou as mãos à cabeça com um grito agudo.

    — Ai! Minha cabeça dói!

    — Ah, esqueci de avisar! — disse Carlos, tentando conter uma risada. — Não pode comer muito rápido senão ‘congela o cérebro’!

    Zézinho, tentando disfarçar a dor pontiaguda, endireitou as costas com esforço.

    — Não tá doendo nada, tio! Isso pra mim não é nada, sou forte! Até pode me entregar mais sorvete!

    — Isso não é justo! — choramingou Dulcinéia, segurando sua tigela vazia. — Também quero!

    — Calma, calma — acalmou Carlos, levantando as mãos. — Pode sim, tem mais um pouco pra todo mundo.

    Tassi se levantou e se serviu de outra porção, comentando com um tom de brincadeira que não escondia totalmente uma ponta de ciúme:

    — É gostoso mesmo, hein? Mas para a Quixotina você faz um doce maravilhoso desses, e eu ganho uma simples pipoca?

    — Quando você quase morrer e ficar de cama, Tassi, eu prometo: farei um balde inteiro só para você — ele retrucou, brincalhão.

    Foi então que a voz pequena e assustada de Dulcinéia cortou o ar, carregada de um tremor que silenciou a todos:

    — A mamãe quase morreu? Ela me disse que só tinha tropeçado…

    Um silêncio pesado e constrangedor pairou sobre a sala. Carlos sentiu um nó se formar em seu estômago. “Putz, falei demais.”

    Quixotina, porém, agiu com uma serenidade materna que acalmou a situação instantaneamente. Puxou a filha para perto, passando a mão em seus cabelos macios.

    — Eu te preocupei, não foi, meu amor? Perdoa-me. A mamãe encontrou um monstro muito mau, mas está tudo bem agora. Sobrevivi graças a este moço aqui — ela disse, acenando com a cabeça em direção a Carlos. — O mesmo que trouxe o sorvete.

    Ela olhou a filha com carinho e, baixando ainda mais a voz, sussurrou:

    — Aliás, não tens algo a dizer a ele?

    Dulcinéia, ainda se agarrando ao braço da mãe, escondeu o rosto por um instante antes de se virar para Carlos. Seus olhos grandes estavam lacrimejantes.

    — Obrigada, tio…

    — De nada, Dulcinéia — respondeu Carlos, suavemente. — Mas tenho que agradecer à sua mãe, que me salvou. Ela realmente é uma verdadeira cavaleira.

    Ele se abaixou até a altura da menina, pegou sua tigela vazia e disse:

    — Vou pegar mais sorvete pra você, que foi muito corajosa ao esperar sua mãe naquele dia.

    Enquanto se levantava, uma mão forte, mas um pouco enfraquecida, puxou suavemente sua manga. Era Quixotina.

    — Pega mais para mim também? — pediu ela, com um sorriso esperançoso.

    — Claro que sim — ele concordou.

    Zézinho, vendo a cena, sentiu uma pontada de culpa por sua gula anterior.

    — Obrigado, tio… — ele murmurou, envergonhado. — Pega mais sorvete para mim também?

    — Claro, Zé — disse Carlos, acenando com a cabeça.

    Depois de encher as tigelas das meninas, ele se abaixou com o pote ao lado de Zézinho.

    — Essa é como agradecimento pelos cajus que você pegava para mim, hein?

    A Tia Vera, que observava a cena com o coração inicialmente apertado pela gafe anterior, sentiu uma onda de alívio e orgulho tão forte que suas faces se aqueceram. “Nem precisei mandar”, pensou, um sorriso largo e desdentado estampando seu rosto enrugado. “O menino está aprendendo a sentir gratidão de verdade.”

    Já Zézinho ficou sem jeito com o elogio direto. Para fugir daquele constrangimento doce, correu em direção à avó, pegou a tigela dela e foi até Carlos.

    — Pega para minha vó também! — disse, empurrando a tigela para as mãos do jovem.

    Vendo toda aquela troca de afeto e gratidão familiar, Tassi sentiu uma inveja amarga e repentina lhe corroer as entranhas. Não havia nenhum familiar que a amasse em sua família. Também nunca comera doces; vivia fazendo canas-de-açúcar crescer no canavial, mas não podia nem tomar uma gota de guarapa, imagine então provar açúcar puro. Logo, porém, a onda de vergonha por sentir inveja de crianças a atingiu. Ela desviou o olhar para a parede, fingindo um interesse súbito pela textura irregular do barro, enquanto sua mente mergulhava em um rio de pensamentos amargos.

    “Queria ter crescido num lugar assim. Num lugar onde um adulto te oferece um doce não como um prêmio por obedecer, mas simplesmente para te ver feliz. Meus próprios pais me entregaram como um pacote no palácio do rei. O destino de uma menina feia e forte: não serviria de concubina, então me jogaram no exército das Mino. Lá, fui obrigada a crescer. A trocar infância por espada, carícias por cicatrizes.”

     Seu punho cerrou involuntariamente ao lado do corpo, as unhas cravando-se na palma da mão. “Se tivesse crescido num lugar assim… seria uma pessoa diferente. Mais macia. Mais inteira… Pena que essa pequena felicidade é tão frágil. É como uma flor desabrochando no meio de um campo de batalha. Há tantos querendo pisoteá-la, destruir este lugar… Talvez tenha sido bom ter crescido como cresci. Porque essa dureza que adquiri, essa frieza de quem sobreviveu, é o que me permite proteger essa flor. Mesmo que não esteja na linha de frente do exército do quilombo, posso defendê-lo de outras maneiras. Posso forjar as armas que os guardarão. Posso garantir que essas crianças tenham mais dias como este.”

    Tassi não era a única perdida em seus pensamentos. Enquanto saboreava a última colherada de sorvete, Quixotina também se deixava levar pelas memórias. “Essa sobremesa me lembrou do meu tempo como nobre… Tantos doces que eu podia comer. Uma das poucas coisas boas daquela vida. Talvez fosse a única coisa boa daquela vida, isso e meu tio… Sinto tanto sua falta. Você, que me ensinou a segurar uma espada antes tanto quanto me ensinou a segurar uma pena para escrever. Você que me via como a pessoa que eu era, não a dama que queriam que eu fosse. O que você diria se me visse agora? Uma fugitiva, uma foragida, vivendo em um quilombo…”

    Seu olhar baixou para Dulcinéia, que lambia a tigela com uma concentração feliz, totalmente absorta naquele momento de doçura. “…Mas com a sua tão amada sobrinha-neta nos braços. Você adoraria ela. Acharia ela a mais perfeita e corajosa das cavaleiras. Queria tanto que você pudesse vê-la.” Uma lágrima teimosa, que não tinha nada a ver com a dor de cabeça, ameaçou escorrer. Ela a enxugou rapidamente com as costas da mão, disfarçando o gesto com uma colherada final de sorvete, agora mais líquido.

    Logo depois, as tigelas foram lavadas, as despedidas foram ditas com abraços e promessas de novas visitas, e todos saíram, retornando às suas vidas. Aquele pequeno e precioso momento de felicidade coletiva, perfumado de canela e mel, havia chegado ao fim, deixando para trás apenas um eco de sorrisos no ar tranquilo da casa.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota