Capítulo 30 - Pólvora Parte I
O calor úmido da forja contrastava com o ar mais fresco do depósito onde Carlos aguardava. Finalmente, depois de alguns dias, o oleiro entregou os fornos e recipientes de cerâmica vitrificada. As peças tinham um brilho escuro e uma superfície lisa e gelada ao toque, exalando um leve cheiro de barro queimado.
O processo para extrair o enxofre começou. Primeiro, a pirita foi triturada até se transformar num pó granulados e metálico que cinturava sob a luz. Carlos supervisionou cada etapa com cuidado meticuloso.
— Primeiro, vamos aquecer o minério entre 100° e 300° para retirar toda a umidade — explicou ele para Tassi, que observava com ar cético.
O forno, alimentado pela magia controlada de um adepto da gema do fogo, ganhava vida. O ar em volta ondulava com o calor, e um cheiro seco e quente, como de pedra aquecida ao sol, impregnava o ambiente. Quando a temperatura subiu para entre 500° e 700°, a pirita (FeS₂) começou a sua transformação, libertando um vapor amarelado e sulfúrico que fazia arder ligeiramente as narinas.
— O forno tem que estar parcialmente vedado — Carlos lembrou, ajustando uma tampa de cerâmica. — Se entrar oxigênio demais, esse vapor vira dióxido de enxofre, um gás que pode acabar com os nossos pulmões.
O gás de enxofre era canalizado por um tubo que serpenteava para dentro de um barril de água fria. O contato do vapor quente com a água gelada produzia um sibilo constante e uma névoa espessa. Dentro do barril, cristais amarelos e brilhantes de enxofre puro começavam a se formar, precipitando como um pó dourado no fundo.
— É só coletar isso — disse Carlos, visivelmente satisfeito, apontando para o pó.
O que sobrava no forno era o sulfeto de ferro II (FeS), um resíduo escuro e pesado. Carlos sabia que ainda continha enxofre, mas extraí-lo a temperaturas mais altas traria problemas — o ferro se ligaria ao oxigênio, formando óxidos e mais daquele gás tóxico.
— Por enquanto, vamos guardar este sulfeto — decidiu, examinando o material residual. — Pode ser útil no futuro, na metalurgia.
Dias se passaram num ritmo acelerado, graças à eficiência quase mágica dos artesãos do quilombo. Os caldeirões de ferro encomendados a Nia ficaram prontos rapidamente, seus fundos espessos e negros prometendo resistência ao fogo. Carlos e Tassi não perderam tempo e iniciaram imediatamente o refinamento do salitre.
A sorte estava com eles: o salitre da caverna de guano era notavelmente puro, o que simplificou o trabalho. Mesmo assim, o processo era delicado. No primeiro caldeirão, o salitre foi dissolvido em água e aquecido, libertando impurezas que subiam à superfície como uma espuma escura e de cheiro pungente. A água salitrada, agora mais limpa, era então filtrada através de um pano fino para outro caldeirão, onde a fervura lenta e constante fazia a água evaporar, deixando para trás belos cristais brancos de nitrato de potássio puro (KNO₃). Por fim, os cristais eram espalhados em esteiras de palha sob o sol tropical para secarem completamente, cintilando como diamantes opacos.
Com o salitre e o enxofre em mãos, faltava apenas o carvão. Seguindo as instruções de Carlos, buscaram madeiras moles e leves na mata densa que cercava o quilombo. O cheiro doce e amadeirado da lenha recém-cortada encheu o ar enquanto preparavam a carbonização.
Num claro aberto na floresta, Carlos pediu a Tassi:
— Precisamos de um galpão aqui, para ser nossa oficina de pólvora. Algo simples, mas coberto.
Com a ajuda dos seus braceletes de gemas mágicas, Tassi manipulou a terra e a madeira com uma destreza impressionante. Em pouco tempo, uma estrutura rústica, mas funcional, estava erguida, sombreada pelas copas das árvores.
Dentro da nova oficina, Carlos revelou a receita.
— A pólvora negra leva salitre, enxofre e carvão. Na proporção de 75% de salitre, 15% de carvão e 10% de enxofre.
Os três ingredientes em pó foram misturados com cuidado numa grande tigela de madeira. A mistura era então umedecida com uma solução de água e um pouco de aguardente, formando uma pasta escura e grumosa que cheirava a enxofre e terra.
— A umidade evita que exploda enquanto a gente mexe — Carlos explicou, vendo a expressão dúbia de Tassi.
O trabalho seguinte era exaustivo. A pasta úmida era socada por horas a fio com um pilão de madeira, depois prensada para compactar, triturada novamente e, por fim, peneirada para obter grãos uniformes. Os grãos eram então postos para secar em bandejas rasas ao ar livre.
O processo era tão trabalhoso que Carlos acabou por pedir ajuda a Pedro e a outros do engenho de Seu Jorge. Como haviam sido libertados por ele, mostraram-se dispostos a colaborar. Carlos pediu permissão a Aqua, que, após algumas considerações, autorizou a ajuda, mantendo os recém-libertos sob observação.
Após algumas semanas de trabalho árduo, tinham produzido pólvora suficiente para encher vários potes de argila. Carlos fazia testes de qualidade num local isolado, longe dos olhares curiosos. O estrondo surdo e a nuvem de fumaça que se seguiam confirmavam o sucesso. Ele deliberadamente não levou Tassi a esses testes.
— Finalmente! — exclamou ele, pó de carvão escurecendo suas mãos. — Temos pólvora suficiente para uma boa demonstração. Acho que podemos mostrar ao Espectro. Tenho certeza que ele vai ver a utilidade nisto. E estava pensando… podemos usar isto para fazer uma armadilha para aquele Boitatá que nos atacou.
Tassi observava o pó negro com ceticismo. Não via grande perigo naquela substância granular, apesar de todas as precauções de Carlos — trabalhar apenas com a pólvora úmida, evitar ferramentas de metal para não criar faíscas.
Ela franziu a testa, desconfiada.
— E a explosão que isso faz… é mesmo tão forte assim?
— Você vai ver — respondeu Carlos, um sorriso confiante nos lábios. — Fiz uns testes às escondidas. Esta pólvora é de boa qualidade. Vai ser uma bela de uma explosão! Vamos chamar o Aqua e o Espectro. E a Quixotina, já que nos ajudou. E seria bom ter alguém que usa gema de fogo, como a Nia. Aposto que ela vai ficar interessada.
Tassi esboçou um sorriso malicioso.
— Aposto que você só quer se exibir para ela, né? Está mesmo querendo ser o quinto marido dela, não é?
— Mas de jeito nenhum! — ele protestou, corando ligeiramente. — E pelo menos ela consegue alguém! E você? Tem tanto homem solteiro por aqui, arranjar um marido devia ser fácil, mas ainda está ‘solteirona’, não é? Eu até tenho a desculpa de que não sou daqui.
Tassi irritou-se com o comentário, mas não o demonstrou, limitando-se a retorquir com frieza:
— Não quero ter rabo preso, não. Mas não é por isso que não vejo ninguém. Pelo menos, já peguei mais gente que você!
Carlos ficou surpreso com a franqueza, mas recuperou rapidamente a compostura.
— É claro! A competição por qualquer mulher aqui é muito alta. Sem contar que, não sou do mesmo mundo que as mulheres daqui. Não sei bem como chegar a elas. Enfim, chega de papo furado. Vai lá avisar o Aqua e o pessoal sobre a demonstração da pólvora, amanhã à tarde. Eu vou preparar tudo. Ah, e tenho de falar com a Nia, para ver se ela consegue fazer algo com as gemas de fogo.
Tassi sorriu de novo, com malícia.
— Claro. Eu chamo toda a gente, e você chama a Nia.
Carlos revirou os olhos e saiu para preparar a pólvora para a demonstração. Com todo o cuidado, encheu um grande pote de argila com os grãos negros. Depois, dirigiu-se à oficina da ferreira.
O som ritmado da bigorna ecoava pela clareira. Ele bateu na porta de madeira. Momentos depois, Nia abriu, o rosto brilhante de suor e o cabelo preso de qualquer jeito. O calor intenso da forja envolveu-o como um manto.
— Boa tarde, Nia. No outro dia, vi que você jogou umas gemas de fogo embaixo do forno e, depois de um tempo, elas se ativaram. Preciso da tua ajuda para amanhã, quero mais dessas gemas. Consegue preparar umas gemas para fazer uma explosão a distância com a pólvora?
Nia limpou as mãos num trapo sujo, estudando-o.
— Eu até reclamaria por você vir atrapalhar o meu trabalho, mas… que interessante. Teve essa ideia só por me ver jogar as gemas no forno? Realmente, consigo fazer com que se ativem depois de um tempo. Aliás, dá para fazer isso com qualquer gema, mas cada uma precisa de um entalhe específico para o mesmo efeito. E outras gemas não são tão fáceis de trabalhar como a de fogo. De qualquer forma, quanto tempo precisa para a ativação?
— Então é assim que funciona? Que interessante — Carlos maravilhou-se. — Mas não entendo a lógica por trás disso. Como é que algo talhado na gema pode alterar o poder que ela exibe?
— Apenas os Orixás devem saber o porquê disso — respondeu Nia, com um encolher de ombros.
— Entendo… acho que se ela puder ativar depois de cinco minutos seria perfeito.
— Cinco minutos? Quanto tempo é isso?
— Ah, desculpe. É um padrão de tempo do meu mundo. Digamos… tempo suficiente para andar com calma uma boa distância e voltar para me esconder.
— Hmmmm, certo— murmurou Nia, olhando para ele com uma desconfiança renovada, mas também com um brilho de curiosidade nos olhos.
A desconfiança da ferreira deixou Carlos um pouco frustrado. “Todo mundo me acha maluco por dizer que sou de outro mundo. Acho que devia ter escondido essa informação. É uma pena que sou péssimo em mentir… Mas vão ver! Haverá um dia em que trarei tantas mudanças a este mundo que será inegável que venho de outro lugar. E a primeira coisa que vai transformar tudo será a pólvora.” — Sobre a gema — continuou em voz alta
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