Índice de Capítulo

    A manhã nascia úmida e fresca sobre a planície onde se aglomerava um pequeno grupo. O ar carregava o cheiro doce de grama queimada pelo sol e o aroma terroso de madeira recém-cortada. Em meio aos tocos de árvores que pontilhavam o terreno – a mesma área onde Carlos havia testado suas primeiras armas -, reuniam-se Espectro, dois guardas de expressão cética, Aqua com seu olhar analítico, Tassi com os braços cruzados, Carlos tentando disfarçar a ansiedade, Quixotina ainda pálida mas ereta, e Nia, curiosa.

    Espectro quebrou o silêncio, sua voz grave cortando o ar matinal:

    — Pelo que entendi, a arma de fogo não está pronta. Então por que nos chamou aqui?

    Carlos deu um passo à frente, um sorriso confiante nos lábios.

    — Porque a pólvora, por si só, é capaz de fazer uma grande explosão. Acho que poderia ser bem útil para montarmos uma emboscada e matarmos o Boitatá.

    Espectro franziu a testa pensando. “Está maluco, não existe arma nesse mundo capaz de matar uma fera daquele tamanho.” Mas antes que pudesse falar, Quixotina interveio, sua voz ainda um pouco fraca mas carregada de emoção:

    — Você me viu lutando contra aquele monstro! Nenhum humano é capaz de matar aquilo! Minha magia mais poderosa apenas arrancou algumas escamas!

    Carlos manteve a calma, enquanto suas mãos suavam ligeiramente.

    — Justamente por ter visto sua luta é que sei que somente uma explosão controlada de pólvora poderia matá-lo.

    Quixotina abriu a boca para protestar, mas Carlos continuou, apontando para longe:

    — Apenas esperem e vejam. A uns trezentos passos de distância, coloquei vários potes de argila cheios de pólvora. Esse pó não serve apenas para armas de fogo – ele próprio já é uma arma. Agora vou demonstrar seu poder. Por favor, permaneçam aqui.

    Ele trocou um olhar com Nia, que entendendo o sinal, colocou em sua mão a gema de fogo já ativada. Carlos partiu em corrida, seus pés batendo forte no solo seco. Nunca havia corrido tão rápido na vida – sabia que tinha tempo calculado, mas o coração martelava em seu peito. Ao alcançar os potes, colocou a gema com cuidado em um deles e voltou correndo, chegando ofegante diante do grupo.

    — Todos se abaixem e protejam os ouvidos! — ordenou, deitando-se no chão e tapando as próprias orelhas.

    Apenas Tassi obedeceu imediatamente, lembrando-se do barulho das armas de fogo. Os outros trocaram olhares céticos. Espectro, Aqua e os guardas, embora conhecessem o som das armas de fogo, não julgavam necessárias tantas precauções para uma mera demonstração. Quixotina sequer imaginava o que testemunharia. Todos mantiveram os olhos fixos nos potes distantes.

    Os segundos seguintes se arrastaram numa tensão silenciosa. Então…

    Os potes brilharam num vermelho alaranjado intenso que se transformou numa fumaça branca e expansiva. Simultaneamente, uma onda de choque invisível atingiu o peito de todos, seguida por um estrondo ensurdecedor que pareceu rasgar o próprio ar. O chão tremeu sob seus pés. Quixotina, pega de surpresa, caiu de bunda no chão. Estilhaços de argila e terra voaram em todas as direções – um deles voou em direção a Espectro, que com reflexos felinos desviou no último instante.

    Quando a poeira começou a baixar e os fragmentos a chover no solo, um silêncio atordoado pairou sobre o grupo. Todos, exceto Carlos e Tassi, estavam com os ouvidos zunindo, boquiabertos, com expressões de incredulidade e um medo primitivo estampado no rosto. Até Tassi, que se considerava uma guerreira corajosa, sentiu um desejo irracional de se esconder, suas mãos tremendo ligeiramente.

    Carlos também estava surpreso – nunca testemunhara uma explosão real daquela magnitude. Levantou-se, poeira cobrindo suas roupas.

    — Senhor, peço desculpas. Não imaginei que a explosão seria tão forte a essa distância.

    Espectro, ainda recuperando a audição, fitou-o com um novo respeito.

    — Não. A culpa foi nossa. Você nos disse exatamente o que fazer e ainda assim o ignoramos. Na próxima vez, faremos o que mandar sem questionar.

    Aliviado, Carlos dirigiu-se a Quixotina e estendeu a mão para ajudá-la a levantar. Seus olhos encontram os dela, agora bem abertos.

    — Então? — perguntou ele, suavemente. — Ainda acha que humanos como nós não podem matar uma besta daquelas?

    Quixotina balançou a cabeça, sem palavras, ainda atordoada. Espectro respondeu por ela, sua voz agora carregada de convicção:

    — Sem dúvida podemos matar aquele monstro com isso. E podemos fazer armadilhas para qualquer invasor. Esta pólvora negra é excelente. Vou designar trabalhadores para você – ensine-lhes como produzi-la. Eles assumirão essa tarefa, para que você possa se concentrar em produzir mais armas e… outras inovações que julgar necessárias.

    Aqua, que se recuperava aos poucos, acrescentou:

    — Você está dispensado do trabalho na roça. Designarei alguém para cuidar de suas plantações. Daqui em diante, qualquer coisa de que precise, venha falar comigo.

    Um calor de realização percorreu Carlos. Finalmente, o reconhecimento.

    — Senhora, neste caso, peço o mesmo tratamento para Tassi. Ela me auxiliou em todo o processo. E, se possível, gostaria que lhe concedessem os braceletes com as gemas de terra e grama.

    Espectro nem pestanejou.

    — Claro. — Concordou prontamente pois sabia que as armas e invenções de Carlos valiam bem mais que alguns braceletes. E ajudar Tassi era ajudar Carlos.

    — Antes que me esqueça — Carlos virou-se para Quixotina —, chamei-a aqui não apenas para testemunhar o poder da pólvora, mas porque já idealizei um plano para matarmos o Boitatá.

    ───────◇───────◇───────

    Sob um céu noturno sem lua, Quixotina mantinha-se imóvel na floresta. Sua armadura completa reluzia fracamente, exceto pelo capacete, que deixava seus cabelos loiros caírem sobre os ombros. A espada estava fincada no solo, sua mão repousando no punho que ostentava uma pequena gema branca da luz. Na cintura, uma bolsa de couro.

    A floresta, normalmente vibrante com sons noturnos, estava profundamente silenciosa – um sinal de perigo. O ar frio da noite carregava apenas o cheiro de árvores e folhas se decompondo. Então, ela sentiu – uma presença pesada e antiga observando-a das profundezas escuras. Seus olhos escrutinaram a escuridão, mas nada discerniu além de sombras. Um frio percorreu sua espinha, mas ela permaneceu firme.

    Até que pairaram diante dela, surgindo do nada, dois grandes olhos vermelhos como brasas, fixando-a com intensidade predatora. Imediatamente, ela arrancou uma gema da luz de sua bolsa e, com a força ampliada por sua gema de força, lançou-a para o alto. A gema subiu trinta metros e explodiu num clarão ofuscante que iluminou a clareira como dia – o sinal combinado.

    Sem hesitar, Quixotina girou nos calcanhares e disparou em direção ao quilombo. Por trás, o Boitatá emergiu das trevas, seu corpo serpentino incandescente com chamas sobrenaturais que não queimavam a vegetação ao redor, mas irradiavam calor intenso. A terra tremeu com seu peso colossal enquanto ele se lançava em perseguição.

    Quixotina corria veloz como um cavalo, mas a fera era mais rápida. O rugido das chamas e o estrondo de árvores sendo esmagadas aproximavam-se. Enquanto corria, seus olhos buscavam ansiosamente as marcas que fizera nas árvores. Ao avistar a última marca, arriscou um olhar para trás – o monstro estava a apenas dez passos, seu hálito de fogo quase queimando suas costas. Muito perto.

    Despejando mana em suas pernas, ela acelerou num surto final, escalando uma pequena colina. O Boitatá, cego pela caça, seguiu-a até o topo… para encontrar… nada. Sua presa havia desaparecido. Confuso, a fera parou, sua língua bifurgada sibilando no ar, tentando localizar o rastro. Logo captou e rapidamente se aproximou de sua origem, que parecia vir da terra, até que.

    — BOOOOOM!

    O mundo explodiu. O chão sob o Boitatá desintegrou-se numa erupção de terra, fogo e fragmentos. O corpo colossal da serpente foi rasgado em dois, lançado em direções opostas – a cabeça e parte do torso voando em direção ao quilombo, o resto da cauda retorcida sendo arremessado de volta para a mata. As chamas que o envolviam morreram instantaneamente. A cauda, separada, ainda se debateu por alguns momentos antes de ficar imóvel.

    Quando o último eco da explosão se dissipou, um silêncio sobrenatural tomou conta da noite. Aos poucos, um monte de terra e folhas camuflado no alto da colina começou a se mover. De dentro do abrigo subterrâneo emergiram Tassi, Quixotina, Okoro e Nia, todos cobertos de poeira e com os ouvidos ainda zunindo.

    Quixotina respirava ofegante, apoiando-se na espada, o rosto pálido pelo esgotamento de mana. O plano exigira tudo dela.

    A armadilha havia sido uma obra-prima de coordenação. Enquanto Quixotina servia de isca, os outros três já estavam posicionados no esconderijo subterrâneo, diretamente abaixo do local por onde o Boitatá passaria. Quando a fera colossal se aproximou, seu peso fazendo a terra tremer sobre suas cabeças, Nia não perdeu um segundo. Com gestos precisos, ela arremessou várias gemas de fogo através de pequenas aberturas, acertando os sacos de pólvora estrategicamente enterrados.

    No mesmo instante, Tassi, com os braços tensos e os dentes cerrados, canalizou toda a sua força através do bracelete de terra. Ela fez o chão sob a pólvora se elevar violentamente, um pilar de terra e fogo que carregou a explosão diretamente para o ventre exposto do monstro. Imediatamente após, ela desviou todo o seu poder para erguer e sustentar uma parede maciça de terra ao redor do grupo, um escudo contra o impacto.

    Por fim, Okoro completou a defesa. Enquanto os estilhaços e a onda de choque se chocavam contra a parede de Tassi, ele levantou seu escudo, e uma barreira de energia escura e translúcida irrompeu, encapsulando os quatro. O choque da explosão contra a barreira fez seus músculos tremerem, mas a proteção manteve-se firme, impedindo que o abrigo desabasse sobre eles.

    Só quando a última pedra parou de rolar e a poeira começou a baixar é que Tassi e Okoro baixaram suas defesas, ofegantes. Nia, com um sorriso selvagem de satisfação, olhou para os céus agora visíveis através da poeira.

    Ao testemunhar os pedaços inanimados do monstro espalhados pela colina devastada, uma exclamação de triunfo escapou dos lábios de Nia. O sucesso não era de um, mas de todos.

    Tassi olhou ao redor, incrédula. Só quando seus olhos pousaram sobre os pedaços inanimados do monstro é que a realidade a atingiu. Uma exclamação de triunfo escapou de seus lábios. Não estava sozinha – Espectro, Aqua e os guardas escondidos nas proximidades irromperam da vegetação, vozes elevadas em celebração.

    Carlos observava tudo com um sorriso tranquilo. “Isto é apenas o começo”, pensou, seus olhos scanando o horizonte. “No meu mundo, quase todos os quilombos foram destruídos. Mas este será diferente. Vou transformar este Brasil. Não sei por que estou aqui, mas sei que não é para repetir a história. Não deixarei que continue sendo um país pobre, exportando apenas açúcar, café, soja e milho. Mas uma coisa de cada vez… Primeiro, as armas. Depois, eliminar todas as ameaças ao quilombo. Precisamos de ferro… muito ferro para canhões e armas. Já sei qual será nosso próximo produto para angariar fundos… Roupas.”

    Na manhã seguinte, a notícia da morte do Boitatá espalhou-se como fogo pelo quilombo. Aqua, sorridente, anunciou um festival para celebrar a vitória – não apenas sobre a fera, mas também a integração completa do povo do engenho de Seu Jorge, agora finalmente aceito como parte da comunidade.

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