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    O sol já começava a declinar, lançando sombras longas sobre a área de testes. O ar ainda carregava o cheiro acre de fumaça de pólvora, misturado com o aroma doce da terra molhada e da grama pisada. Enquanto Carlos e Tassi recolhiam os materiais utilizados na demonstração — os cartuchos de pano vazios, as varetas e as ferramentas de limpeza —, Quixotina e Nia observavam, conversando baixo perto dos alvos de madeira destruídos.

    Nia olhou para Carlos, que tentava limpar a fuligem do mosquete, e não conseguiu conter um riso abafado.

    — Sabe de uma coisa? Aceito ser sua quinta esposa, vossa alteza — disse ela, fazendo uma reverência exagerada. — Apenas espero que você não morra de medo do Espectro até lá!

    Imediatamente, ela e Quixotina se entregaram a uma risada contagiosa. Tassi, que estava ao lado de Carlos, também soltou uma gargalhada, cobrindo a boca com a mão.

    Carlos revirou os olhos, sentindo o calor subir em seu rosto.

    “Claro que me caguei de medo! O cara tem o dobro do meu tamanho, é general e serve ao rei. Aposto que, numa corte europeia, teria sido decapitado na hora. Ainda bem que aqui são mais lenientes…”

    Quixotina, aos poucos, conseguiu controlar a risada. Enxugou uma lágrima do canto do olho e falou, com um tom mais sério:

    — Falando sério agora, fiquei realmente surpresa que você virou um nobre. Na minha terra, você poderia ser considerado um duque, talvez. Fiquei impressionada com a forma como proclamou sua lealdade. Parecia um cavaleiro de verdade… mesmo que suas maneiras de plebeu ainda precisem de algum polimento.

    — Muito engraçada — respondeu Carlos, secamente. — Aliás, o que você veio fazer aqui? Não lembro de ter te convidado. Este quilombo é mesmo muito liberal.

    — Como uma cavaleira como eu poderia perder a oportunidade de ver essas armas magníficas? — retrucou Quixotina, erguendo o queixo. — E, respondendo à sua segunda questão, a senhora Aqua, a ex-chefe do mocambo, me concede certas… liberdades.

    — Ex-chefe, isso mesmo — Carlos corrigiu, cruzando os braços. — E, como novo chefe, acho que vou repassar todas essas ‘liberdades’ que você tem.

    Quixotina ficou momentaneamente sem palavras, mas Tassi entrou na conversa, seu rosto ainda iluminado por um sorriso malandro.

    — Eu também fiquei muito surpresa com sua nomeação. Mas você… você nem pestanejou. Aquele discursinho saiu tão naturalmente, parecia que já estava ensaiado.

    Carlos viu a chance de virar o jogo e parar de ser o alvo das piadas. Um sorriso confiante surgiu em seus lábios.

    — É porque estava, de fato, preparado para algo assim. Claro, não esperava que fosse acontecer tão cedo.

    Nia arregalou os olhos, genuinamente espantada.

    — Como assim? Você esperava por isso?

    — Sim — afirmou Carlos, parando de limpar a arma. — Basta pensar. Olhem as armas que ajudei a criar. A pólvora, o mosquete, a granada… Não há como negar minha utilidade para eles.

    Tassi o interrompeu, seu tom ficando mais sério.

    — Utilidade não é tudo. É preciso lealdade. No meu reino, um estrangeiro como você só teria esse reconhecimento depois de anos de serviço comprovado.

    — Mas eu sou leal — ele contra-atacou, olhando para cada uma delas. — A primeira coisa que fiz foi entregar minhas armas. Ajudei a defendê-los. Respondi a todas as perguntas que me fizeram. Não guardei segredos, a não ser meus livros, que até emprestei. Acho que já demonstrei lealdade mais que suficiente.

    Tassi ficou em silêncio por um momento, absorvendo suas palavras.

    “Desde o início… ele já estava planejando se estabelecer, ganhar influência. Ele não é apenas um sobrevivente, é um estrategista.”

    Seu respeito por Carlos aumentou consideravelmente. Num movimento meio de brincadeira, meio sério, ela imitou o gesto que ele havia feito para o Ganga Zala: ajoelhou-se, colocou uma mão no joelho e baixou a cabeça.

    — Eu, Tassi Hangbé, prometo ser sua leal guerreira, serva, trabalhadora e o que mais você precisar, até o fim! — declarou, antes de irromper em risadas novamente, puxando Quixotina e Nia na mesma hilaridade.

    Assim que a risada arrefeceu, Nia respirou fundo, olhando em direção ao mocambo.

    — Infelizmente, tenho que ir. A oficina não para, e agora tenho ainda mais trabalho. Ah, e quero mais aprendizes, chefinho — disse, com um piscar de olhos.

    Ela se virou para sair, mas não sem antes dar uma rebolada exagerada e lançar um olhar provocante por sobre o ombro, para ver se Carlos estava olhando.

    Ele estava.

    “Tem quatro maridos e ainda quer mais um? E pelo que o Espectro falou, isso é normal… Bom, não vou reclamar de ter uma visão dessas de vez em quando.”

    Tassi, vendo a cena, bufou com desdém.

    — Homens…

    Quixotina também não perdoou.

    — Não é muito cavalheiresco da sua parte, senhor.

    Carlos, pego no flagra, encolheu os ombros com um sorriso desconcertado.

    — Ora, ser um cavaleiro não é também sobre apreciar a beleza à distância? Estou apenas fazendo isso. E a Nia fez questão de ser apreciada. Desviar o olhar seria um insulto à… à performance dela, não concorda?

    Tassi suspirou, profundamente decepcionada.

    — Você tinha acabado de ganhar um pouco do meu respeito, e já o perdeu. — Ela fechou os olhos por um segundo e depois os fixou em Quixotina. — Mas, deixando isso de lado, há algo mais importante que quero saber. Algo que diz respeito à nossa amiga cavaleira.

    Quixotina, ouvindo aquilo, deu meia-volta e começou a se afastar rapidamente em direção ao mocambo.

    — Pode voltar aqui, Quixotina! — chamou Carlos, sua voz ecoando no campo vazio. — Também me lembro muito bem da sua promessa. Você disse que me diria seu nome verdadeiro depois de ver a arma de fogo em ação. Eu pretendia mostrar as armas de fogo á você em outro momento, mas já que veio bisbilhotar aqui,,,

    Quixotina parou, seus ombros afundaram. Ela se virou lentamente e retornou, arrastando os pés.

    — Sabe… ‘arma de fogo’ é um nome péssimo — disse, tentando desviar o assunto. — Acho que ‘Trovão de Aço’ seria melhor. E ‘pólvora negra’? Sem graça. Que tal ‘Pó da Morte’? E a granada… deveria se chamar ‘Laranja de Ferro Explosiva’. Não acham?

    — Não adianta inventar nomes horríveis para fugir do assunto — Carlos respondeu, ainda sorrindo. — Pode falar, senhorita.

    Vendo que não havia escapatória, Quixotina assumiu uma postura solene. Repetiu o gesto de ajoelhar-se, mas com uma graça e uma nobreza que faltaram nas tentativas anteriores. Ficou de joelhos, uma mão sobre o joelho, a cabeça levemente inclinada.

    — Eu, Luíza Esterhazy de Viseu — declarou, sua voz clara e firme, sem vestígio de brincadeira — prometo ser sua fiel cavaleira e lutarei por você até o fim.

    Então, ela se levantou com a mesma elegância, e um sorriso triste tocou seus lábios.

    — Luíza Esterhazy de Viseu. Esse é meu nome. E para um cavaleiro, uma promessa é uma dívida de honra. Aqui estou, quitando a minha. — Ela fitou o horizonte. — Saibam que, desde que cheguei a este novo mundo, deixei esse nome para trás.

    Tassi, curiosa, aproximou-se.

    — Por que faria isso? É um nome tão bonito…

    Luíza olhou para as próprias mãos, como se buscasse respostas nas linhas da palma. Permaneceu em silêncio por um tempo que pareceu eterno, até suspirar levemente.

    — É uma longa história… — sussurrou.

    — Não tem problema — Carlos encorajou, seu tom agora suave. — Pode falar.

    Ela suspirou mais uma vez, desta vez mais profundamente. Sem dizer uma palavra, começou a caminhar lentamente em direção a uma grande pedra lisa à sombra de uma gameleira, na borda da mata. Sentou-se nela e esperou que Carlos e Tassi se aproximassem e se acomodassem no chão, à sua frente. O canto dos sabiás preencheu o silêncio enquanto ela reunia suas lembranças.

    Finalmente, começou a falar, sua voz baixa e distante.

    — Desde que me entendo por gente, sabia quais eram meus dois únicos deveres na vida. Minha família não me deixava esquecer. O primeiro dever era casar com o Duque Afonso de Viseu, um homem vinte anos mais velho que eu. Minha existência inteira se resumia a isso: um casamento arranjado para estreitar os laços entre duas famílias poderosas. O segundo dever, como mulher, era gerar um herdeiro. De preferência, um que pudesse usar as Gemas da Força e da Luz. Toda a minha vida foi meticulosamente planejada para esses fins. 

    Ela fez uma pausa, fechando os olhos por um momento. 

    — Assim que o noivado foi firmado, comecei a ser treinada em etiqueta portuguesa. Até meu nome de batismo foi mudado. Eu não me chamava Luíza, mas o Duque achou meu nome original ‘difícil de pronunciar’ e exigiu que fosse alterado.

    Carlos sentiu uma onda de nojo e raiva percorrer seu corpo. Tassi, embora mais acostumada com as realidades duras daquele mundo, também parecia perturbada.

    — E… qual era seu nome? — Tassi perguntou, hesitantemente.

    Luíza abanou a cabeça, seus olhos um tanto vidrados.

    — Eu não sei. Era tão nova quando mudaram… nem me lembro mais.

    A revelação caiu como uma pedra. Tassi e Carlos trocaram um olhar de incredulidade e pena. Como alguém poderia roubar o próprio nome de uma criança?

    Quixotina — ou Luíza — enxugou uma lágrima teimosa com as costas da mão e continuou.

    — Minha vida já estava escrita. Um roteiro com começo, meio e fim perfeitamente demarcados. Toda a minha família trabalhava para garantir que eu cumprisse meu papel… 

    Sua voz falhou por um instante. 

    — Mas havia uma pessoa que era a exceção. Meu tio, Frederico. Um verdadeiro nobre, que havia lutado em campanhas no norte da África. Era respeitado por muitos, mas minha família o desprezava. Ele era a luz na minha escuridão. Sempre que podia, vinha brincar comigo, ou me contava histórias de suas aventuras. Ensinava-me coisas ‘inúteis’ para uma futura duquesa, como ler e escrever. Minhas únicas memórias verdadeiramente felizes daquela época são de eu sentada no colo dele, ouvindo histórias de cavaleiros enfrentando dragões e resgatando donzelas.

    — Um dia, depois de uma dessas histórias, cheia de coragem e sonhos, olhei para ele e disse: ‘Tio, quero ser uma cavaleira! Quero ter aventuras heróicas!’. 

    A voz de Luíza embargou. — O rosto dele se transformou. A expressão de alegria se dissolveu numa tristeza tão profunda que ele… ele chorou. Eu nunca o tinha visto chorar. Ele saiu do meu quarto sem dizer uma palavra, e eu fiquei lá, achando que a culpa era minha, que meu sonho era algo errado e feio.

    — No dia seguinte, ele e meus pais tiveram uma briga feia. Ouvia os gritos ecoando pelos corredores, e o meu nome sendo falado com raiva. Na época, pensei que estivessem bravos comigo. Só anos depois entendi que meu tio estava lutando por mim, tentando me dar uma chance de ser mais do que um instrumento. Quando a gritaria acabou, ele veio ao meu quarto. Eu estava encolhida na cama, chorando. ‘Desculpa, tio’, eu gemia, ‘desculpa por querer ser uma cavaleira’. Ele me abraçou com uma força que quase me partiu ao meio e sussurrou no meu ouvido: ‘Nunca, jamais, peça desculpas por sonhar, minha pequena Luíza’.

    — Ele nunca me disse que eu poderia ser uma cavaleira, mas, depois daquele dia, passou a dedicar ainda mais tempo a mim. Deu-me uma espada de madeira e começou a me ensinar os fundamentos da esgrima. Dizia que eu precisava me defender de ‘monstros’. Eu era a pessoa mais feliz do mundo durante aquelas lições, mesmo sob os olhares reprovadores do resto da família.

    — Essa foi a minha vida, até que me tornei ‘adulta’ aos doze anos de idade. — Ela cuspiu a palavra com desprezo. — A casa inteira estava em polvorosa. Enfim, eu poderia cumprir meu ‘dever supremo’. Todos estavam eufóricos. Todos, exceto meu tio Frederico, que parecia carregar o peso do mundo nos ombros.

    — No dia da minha partida, ele não estava em lugar nenhum. Eu estava desolada, certa de que nunca mais o veria. Mas, quando já estava entrando na carruagem, ele apareceu. Meus pais ficaram lívidos, mas um único olhar dele os fez recuar. Seus olhos estavam vermelhos e inchados. Os meus também. Ele segurava um livro. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele me puxou para um abraço apertado. ‘Luíza’, ele sussurrou, e eu senti suas lágrimas molhando meu cabelo, ‘infelizmente, não posso te dizer que você pode ser o que quiser. Mas ouça: você pode continuar sonhando. E no dia em que achar que não é mais capaz, quero que leia isto’. Ele então me entregou o livro. Na capa, lia-se: ‘Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes’.

    — Entrei na carruagem, e a longa jornada até meu ‘novo lar’ começou. A viagem foi um borrão. Passei dias em carruagens e depois num navio, olhando para o mar infinito, tentando me convencer de que aquela era uma grande aventura. Quando finalmente chegamos ao ducado e desci da carruagem, a primeira pessoa que vi foi meu marido. — Ela fechou os olhos, como se para bloquear a imagem. — Os retratos que me mostravam eram de um homem jovem e elegante. O homem à minha frente… não era. Tinha a pele marcada, feições grosseiras e uma barriga que pendia sobre o cinto. Ele sorriu ao me ver, e todos ao seu redor também sorriam. A cerimônia de casamento foi realizada no mesmo dia. Tudo estava preparado. Ele parecia ter uma pressa… desesperada. Na época, não entendi o porquê. Hoje, sei.

    Quixotina — Luíza — suspirou profundamente. Uma máscara de pura angústia cobriu seu rosto, e ela pareceu encolher-se sobre a pedra. Carlos e Tassi permaneceram em silêncio, seus próprios corações apertados, prevendo o que estava por vir. O ar ao redor deles pareceu ficar mais pesado, mais frio.

    — Após o casamento — ela continuou, sua voz agora pouco mais que um sussurro rouco — fiquei a sós com ele em seus aposentos. As velas cintilavam, lançando sombras dançantes que não conseguiam iluminar a escuridão do lugar… nem a que crescia dentro de mim. E ali… naquela cama… tive que cumprir meu ‘dever’ como esposa. — Ela tremeu, envolvendo os braços em torno do próprio corpo. — Odiei. Cada. Segundo. Daquilo.

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