Capítulo 35 - Quixotina Parte II
Quixotina ficou em silêncio por um longo momento, seus olhos perdidos em alguma memória distante. O crepúsculo começava a pintar o céu de tons alaranjados, e o primeiro cri-cri dos grilos anunciava o fim do dia. Carlos trocou um olhar preocupado com Tassi.
— Você… está bem? — perguntou ele, suavemente.
— Não precisa continuar se não quiser — acrescentou Tassi, colocando uma mão confortadora no ombro da amiga.
Quixotina respirou fundo, como se emergisse de águas profundas, e enxugou uma lágrima teimosa com as costas da mão.
— Estou bem. Já superei isso, ou pelo menos aprendi a viver com essas cicatrizes. Na verdade, me preparei para contar minha história hoje. Venho me preparando desde o dia em que vocês mataram o Boitatá. — Ela fitou o horizonte. — Esta é a segunda vez que conto tudo. A primeira foi para a Aqua. Enfim… continuando.
Ela fechou os olhos por um instante, reunindo forças.
— No dia seguinte, eu me senti… suja. Por dentro e por fora. Um nojo profundo de mim mesma e daquele homem que chamava de marido. Chorei até não ter mais lágrimas. Minha mãe sempre me dissera que me sentiria assim, que toda mulher se sentia assim após a primeira vez, e que era nosso dever divino satisfazer o homem. Então… aguentei. Por semanas. — Sua voz embargou. — Estava tão consumida pela tristeza que havia me esquecido completamente do presente do meu tio. Até que um dia, não aguentando mais, subi até o ponto mais alto da mansão. Olhei pela janela, para o pátio de pedra lá embaixo, e pensei em pular. Pensei que seria o fim de todo aquele sofrimento.
Ela fez uma pausa, e Carlos pôde quase sentir o frio na nuca dela naquela janela alta.
— Foi então que me lembrei das palavras do meu tio. “Nunca peça desculpas por sonhar”. Aquela lembrança foi como um fio de esperança. Desci as escadas correndo, quase tropeçando no meu próprio vestido, e fui direto para o meu quarto. Enfim, peguei o livro e comecei a ler.
Um sorriso amargo surgiu em seus lábios.
— E, para ser sincera, me decepcionei profundamente. Aquilo não era um livro de cavaleiros! Era uma sátira, uma zombaria dos livros de cavaleiros. O protagonista era um velho louco que combatia moinhos de vento pensando que eram gigantes! E as mulheres… as mulheres do livro eram muito mais capazes e espertas do que qualquer donzela em perigo das histórias que eu adorava. Eu estava odiando cada página… até chegar ao final.
Seu olhar se suavizou.
— Na última página, havia um colar. Um colar de ouro, com uma gema de um vermelho-vinho profundo. E uma mensagem do meu tio, breve e direta:
“Minha querida Luíza, se está lendo isto, é porque parou de sonhar. Não pare. O mundo está a seus pés. Meus únicos arrependimentos são não ter podido ajudá-la mais e não ter respondido ‘sim’ quando me perguntou se poderia ser uma cavaleira. Digo-lhe agora: você pode. Mas terá que lutar muito por isso. Este colar contém a Gema da Força. Você é uma adepta. Basta canalizar sua magia para sentir seu corpo se fortalecer. Com ela, poderá derrotar qualquer dragão ou monstro em seu caminho. Lembre-se de tudo que lhe ensinei. E saiba que… alguns monstros usam forma humana. E, ao lutar contra monstros, pode-se lutar um pouco sujo.”
Quixotina então olhou para Carlos e Tassi, seus olhos agora secos e determinados.
— E então? O que vocês acham que eu fiz, após ler aquela carta e segurar aquele colar nas mãos?
Ela não esperou pela resposta.
— Nada. Absolutamente nada. Guardei o livro e o colar e fiquei sentada, mais confusa e perdida do que nunca. Ainda era uma criança, no fim das contas. Não entendia completamente o que ele queria dizer. Mas… a vontade de pular daquela janela havia ido embora. Decidi que aguentaria mais um pouco, até descobrir a resposta.
— A vida continuou. Além dos meus ‘deveres conjugais’, eu tinha que acompanhar meu marido em eventos sociais. Saíamos da mansão em carruagem e percorríamos seu ducado. A mansão era suntuosa, cheia de ouro e tapeçarias, mas o ducado… era um lugar de pobreza. Pessoas magras, vestindo trapos, olhos vazios. Diziam que a colheita tinha sido ruim, mas na mansão a comida era tanta que sobrava, e o excedente era jogado fora. — Ela cerrou os punhos. — Nos bailes da nobreza, a mesma hipocrisia. Lembro-me de uma empregada que derrubou uma taça de cristal sem querer. Foi um escândalo. Gritaram com ela, chamaram-na de imunda, de inútil. Meu marido foi um dos que mais gritou. A senhora da empregada a bateu com um pedaço de madeira, ali mesmo, e todos riram. Riram! Eram tão diferentes dos nobres das histórias… mas, pensando bem, eram exatamente iguais à minha própria família.
— Foi aí que entendi. Finalmente. A nobreza que eu via era a real. Não existiam cavaleiros nobres e justos. E as donzelas… bem, as donzelas tinham que se salvar sozinhas. Então me lembrei da carta: “monstros também assumem formas humanas”. Tudo fez sentido. E o livro também. Dom Quixote não era um tolo por sonhar, era um herói por insistir em sonhar num mundo que havia esquecido os sonhos! Ele era louco porque acreditava num ideal que não existia, mas lutava por ele assim mesmo. E essa se tornou a minha verdade. Se Quixote era louco, então eu também seria. Não seria mais Luíza, um nome que me impuseram. Eu seria a cavaleira Quixotina de La Mancha!
— Com essa nova mente, criei um plano. No quarto do meu marido havia uma armadura decorativa na parede. Horrível, de mal gosto, com uma proteção… enfatizada para as partes íntimas. Mas, perto dela, estava uma espada linda, com uma Gema da Luz. — Ela fechou os olhos, revivendo a cena. — Esperei ele adormecer, fingindo ler. Ele nem se importava com o que eu fazia, contanto que eu cumprisse meu ‘dever’. Assim que seus roncos encheram o quarto, peguei o colar, canalizei minha magia e senti uma onda de poder percorrer meu corpo. Peguei a espada da parede… e cortei o pescoço dele. Ele nem chegou a fazer um som.
Ela abriu os olhos, e neles não havia remorso, apenas uma fria determinação.
— Não senti nada. Ele era um monstro, e eu estava seguindo o conselho do meu tio. Então, gritei: “Socorro! Guardas!” e me escondi atrás da porta. Quando entraram, um a um, eu os cortei pelas costas. Não foi cavalheiresco, mas eu não estava lutando contra cavalheiros. Estava exterminando pragas. Continuei gritando e lutando até não restar nenhum guarda no salão. Meu vestido branco estava completamente vermelho, encharcado de sangue. Quando os empregados chegaram, assustados, eu lhes disse, chorando, que um assassino havia matado todos. Eles olharam para mim, para o vestido, e não pareceram muito convencidos. Mas, naquele momento, não importava.
— Eu poderia ter ficado. A mansão, a riqueza… tudo poderia ser meu. Mas eu odiava aquele lugar. Odiava aquela vida. Decidi destruí-la da maneira certa. Na manhã seguinte, reuni todos os empregados. Pedi que não dissessem nada a ninguém. Levei-os ao tesouro do meu marido, peguei apenas um punhado de moedas para mim e dei todo o resto para eles. Ordenei que distribuíssem toda a comida da despensa para os famintos do ducado. — Seus olhos brilharam com um orgulho triste. — Nunca vi tanta incredulidade e depois tanta alegria na vida daquelas pessoas. Em alguns dias, a mansão estava quase vazia de provisões.
— Quando não havia mais nada a ser feito, peguei minhas coisas — o livro, o colar, a espada e aquela armadura asquerosa — e me preparei para ir embora. Alguns empregados me viram e perguntaram, desesperados, o que fariam sem mim. Fiquei surpresa. Pensei que ficariam felizes por estarem livres.
— “Isso é algo que vocês devem decidir”, eu disse. “Vocês têm comida e dinheiro. Podem fazer o que quiserem.” — Ela parou, imitando sua voz mais suave da época. — “Que tal… irem atrás dos sonhos de vocês?” E então eu saí. E nunca mais olhei para trás.
Carlos pensou, atordoado: “Puta merda… Não sei se teria a mesma coragem. Que história…” Tassi, ao seu lado, parecia compartilhar do mesmo sentimento, seu rosto era uma mistura de horror e admiração.
Quixotina, exausta da narrativa, se espreguiçou, seus ossos estalando levemente.
— Depois disso, eu só queria sumir. Ir para o lugar mais distante possível. O que poderia ser melhor do que o Novo Mundo? Um lugar de monstros reais para derrotar, tribos canibais para combater, cidades de ouro para descobrir! — Ela riu, um som amargo. — Claro, eu era uma ingênua. A realidade aqui era… diferente. E, para piorar, na viagem descobri que estava grávida. Quando cheguei, vi que aqui não passava de um lugar onde índios eram exterminados para dar lugar a senhores de engenho e seus escravos.
Seu rosto, porém, se suavizou num sorriso genuíno.
— Mas havia um lugarzinho onde as coisas eram diferentes. Onde não havia nobres nem senhores de escravos. Um lugar onde pessoas livres lutam pela própria liberdade. Este lugar. Como cavaleira, era meu dever ajudar nessa luta. E eu precisava de um lar seguro para minha filha. Claro, depois descobri que nada é tão simples… até aqui há suas contradições. Talvez não exista um lugar no mundo onde os verdadeiros ideais de nobreza prevaleçam. Mas este aqui… este é o mais próximo que já encontrei.
— Por sorte, a gravidez ainda estava no início e consegui chegar. No começo, não fui bem recebida por ser branca, o que era de se esperar. Mas a Aqua… a Aqua viu que eu estava grávida, sozinha e assustada. Ela me acolheu. Foi a primeira pessoa a quem contei minha história completa. Com a ajuda dela, dei à luz minha amada Dulcinéia. — Seus olhos se encheram de um amor intenso. — O próprio Ganga Zala chegou a me cobiçar para seu harém, mas a Aqua me protegeu novamente.
— Que história… você é uma guerreira de verdade — disse Tassi, seu tom carregado de um respeito profundo.
— Concordo plenamente — Carlos emendou, balançando a cabeça. — No seu lugar, eu não sei o que teria feito. Só sei que você fez a escolha certa. Aquele homem teve o fim que mereceu.
Ele pensou por um momento, então franziu a testa.
— Só uma coisa… por que você trouxe a armadura dele? Aquela peça… peculiar?
Quixotina estufou o peito com orgulho.
— A qualidade do metal era excelente! E que cavaleira não precisa de uma boa armadura? Pedi à Nia que fizesse algumas alterações, é claro. Fiquei tão feliz em encontrar uma ferreira mulher! — Seus olhos brilharam. — Vocês já viram o resultado final. Não ficou… maravilhosa?
Carlos olhou para Tassi, que mordeu o lábio para conter uma risada.
“Ahhh, então é aquela armadura com os ‘peitões’ esculturais… aquela propaganda enganosa ambulante. Maravilhosa não é a palavra que eu usaria… ‘excêntrica’ talvez, ou ‘curiosa’…”
Mas, olhando para o rosto esperançoso de Quixotina, iluminado pela última luz do dia e por uma fé inabalável em seu próprio sonho de cavalaria, ele não teve coração para dizer a verdade.
— É sim — ele disse, com a voz um pouco rouca. — É realmente… maravilhosa.

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