Capítulo 37 - Indústria Têxtil
O ar na planície cheia de tocos perto da montanha carregava o cheio acre de fumaça e o som distante de marteladas vindas das oficinas de pólvora. Entre aquelas construções rústicas, um novo barracão se erguia, mais amplo e arejado, fruto do suor e da habilidade de Tassi. Era para ali que Carlos se dirigia, o coração acelerado de expectativa.
Enquanto caminhava, seus pensamentos fervilhavam. “Quando as pessoas pensam na revolução industrial, a primeira imagem é a de uma locomotiva vomitando fumaça ou um motor a vapor gigante. Mas a indústria têxtil… essa foi também uma das primeiras e principais indústrias. E para a nossa sorte, não exige tanto ferro. Só madeira, um pouco de metal e um clima bom para o algodão. No meu mundo, os EUA alimentavam as fábricas inglesas com algodão cru, e essa demanda insaciável fortaleceu a escravidão. Uma ironia amarga. Aqui, será o contrário. O tear e o fio vão garantir a nossa liberdade.”
Ele parou diante da porta do barracão, sentindo a textura do barro sob suas mãos. “Pelo menos, é no que eu espero. Começar do zero não é brincadeira. A indústria têxtil é a menos complexa, sim, mas ‘menos complexa’ não quer dizer ‘fácil’. Ainda bem que tenho este livro… ‘Revolução Industrial: A Revolução que Mudou o Mundo’.
Ele abriu o volume, e o cheio característico de papel antigo encheu suas narinas. “Preciso de uma série de máquinas. A sorte é que nenhuma precisa de vapor, por enquanto. Todas podem ser manuais. Mas, para aumentar a escala… bem, para aumentar a escala, precisarei de máquinas a vapor, e isso significa ferro. Muito ferro. Ferro que não temos. Por isso, este barracão é a chave. O algodão vai virar dinheiro, e o dinheiro vai garantir nossa independência.”
Respirou fundo, organizando as ideias. “O processo em si não é um bicho de sete cabeças. Primeiro, a ‘Cotton Gin’, do Eli Whitney, para limpar o algodão e tirar os caroços. Depois, a ‘Spinning Jenny’, do James Hargreaves, para fiar. Em terceiro, o tear mecânico ‘Flying Shuttle’, do John Kay, para tranformar o fio em tecido. Quarto, o tingimento… esse vai ser usado o método tradicional de mergulhar o tecido em água quente com cinzas para criar uma solução alcalina que remove a gordura e as impurezas. Depois, é só secar ao sol.”
Seu rosto se contraiu um pouco. “A parte mais chata é a confecção. Na revolução industrial, ainda era tudo feito à mão. Mas por que me prender ao século XVIII se posso roubar uma ideia do XIX? A máquina de costura de Isaac Singer. Essa, sim, vai acelerar tudo. Infelizmente, é a mais complicadinha… requer aço para as peças de precisão e para a agulha. Dá para fazer de ferro, mas vai quebrar toda hora… Ele olhou a ilustração da máquina no livro, e uma nostalgia súbita o atingiu.
“É estranho… minha avó tinha uma quase igual em casa. Nunca imaginei que fosse tão antiga. É verdade o ditado: time que está ganhando não se mexe. Só espero que a Nia não fique furiosa por eu jogar mais trabalho no colo dela.”
Do outro lado do barracão, Tassi observava Carlos, sentada em um toco de árvore. Ela esfregava a cabeça, que doía por conta do consumo de mana para a construção. Seus olhos acompanhavam o homem que murmurava sozinho, com uma expressão facial que variava entre a concentração profunda e uma preocupação intensa, enquanto folheava aquele livro de páginas amareladas. “Já cumpri minha parte,” pensou ela, com uma ponta de resignação. “Agora, são só ele e seus demônios mecânicos. Duvido que alguém neste mundo consiga acompanhar o turbilhão que é a cabeça daquele homem.”
Depois de um longo tempo, Carlos pegou uma palha de milho seca, usou-a como marcador e fechou o livro com um baque surdo. Seus olhos vasculharam o ambiente até encontrarem Tassi.
— Vamos, minha querida guarda-costas — disse ele, com um meio sorriso — temos que ir falar com Nia e com o carpinteiro.
Tassi arquou uma sobrancelha, não gostando do tom provocador.
— Claro, chefinho — respondeu, com uma voz docemente sarcástica.
Carlos franziu o rosto.
— Tá bom, tá bom, eu paro. Não me chame de chefinho, por favor.
— Sim, chefe — ela respondeu, agora engrossando a voz em uma imitação cômica.
— Nada de chefe, chefinho ou chefão! — ele protestou.
Tassi não conseguiu conter uma risada.
— Sim, senhor.
Carlos a encarou com um olhar que tentava ser assassino, mas que não conseguiu esconder uma centelha de diversão. Tassi levantou as mãos, em sinal de paz.
— Tudo bem, eu paro. Mas é que infelizmente agora você é o chefe. Na frente dos outros, vou ter que fingir um respeito que não sinto. Só vou poder zombar de você longe de todo mundo.
— Nem pense nisso! — ele retrucou, erguendo o indicador. — Se reclamarem que você não me respeita, manda virem falar comigo. Afinal, o que vão fazer? Me rebaixar? Quem vai tomar o meu lugar? Ninguém! Então, a partir de agora, certas coisas vão ser do meu jeito.
O sorriso de Tassi se suavizou, e um lampejo de genuíno respeito brilhou em seus olhos.
— Você não era assim antes.
— É claro que era — ele disse, a voz baixa e confidencial. — Mesmo quando virei escravo, nunca perdi isso. É aquele velho ditado: ‘manda quem pode, obedece quem tem juízo’. Na hora H, a gente obedece. Depois… depois a gente manda. A mesma regra vale agora.
Ele então deu uma rápida olhada para os lados, certificando-se de que estavam sozinhos, e se aproximou do ouvido de Tassi. O calor de sua respiração fez com que ela estremecesse levemente.
— Vou te contar um segredo — sussurrou ele, o cheiro de terra e papel velho impregnando-se nela. — Mesmo agora, a ideia de servir a um ‘rei’ não me cai bem. Tomara que ele seja competente, mas duvido. Um cara com um harém… que rei vai querer ficar ouvindo discussões políticas chatas quando pode estar entretido com suas mulheres?
Tassi arregalou os olhos, chocada. Sua cabeça girou instantaneamente, escaneando a planície em busca de ouvidos indiscretos. Não vendo ninguém, ela soltou um suspiro de exasperação e puxou Carlos pela gola, trazendo-o para perto de seu próprio rosto.
— Você está doido! — sussurrou-lhe com fúria contida, seu hálito quente batendo em seu rosto. — Imagino que no seu mundo não tenha reis, mas aqui as coisas são diferentes, seu insensato!
— Claro, claro, eu sei — ele recuou, levantando as mãos. — Mas, voltando ao assunto… se você quiser me chamar de algo, não precisa ser ‘chefe’. Pode ser ‘lindo’, ‘gostoso’, ‘maravilhoso’, ‘gênio’…
A irritação de Tassi transbordou. Sem pensar, deu um soco leve, mas firme, no braço dele.
— Aí! Doeu! — gritou Carlos, levando a mão ao local com dramática agonia.
— Para de fingir, seu dramático! — ela disse, mas um sorriso escapou de seus lábios.
Ela então começou a caminhar em direção ao centro do quilombo, e Carlos correu para alcançá-la, ainda esfregando o braço. “Mas doeu de verdade,” pensou ele, admirando (e temendo) a força contida nela. “Ela é forte pra cacete. Deve ser a mana… ou será que ela está comendo whey protein escondido? Ei, espera… ela está me deixando para trás!”
— Que tipo de guarda-costas vai na frente do chefe? — reclamou ele, alcançando-a. — Você deveria estar ‘guardando as minhas costas’. Entendeu? ‘Guarda’. ‘Costas’.
— Sabe — respondeu ela, sem diminuir o passo —, aqui não existe esse tal de ‘guarda-costas’. E me pergunto se alguém no seu mundo riria de uma piada sem graça dessas.
Carlos abriu a boca para retrucar, mas nenhuma palavra veio. Derrotado, seguiu-a em silêncio até a oficina de Nia.
Assim que abriram a porta, uma onda de calor úmido e metálico os envolveu. O ar era pesado, cheirando a óleo quente e suor. O som era uma sinfonia caótica: o ritmo constante dos martelos batendo no metal, o ruflar das foles alimentando as fornalhas e o sibilo da água quando o ferro incandescente era temperado. Pelo menos cinco pessoas, além de aprendizes, trabalhavam com uma intensidade febril, estava bem mais do que quando Carlos visitara pela primeira vez.
Nia os avistou quase imediatamente. Ela deixou a bigorna onde orientava um aprendiz e se aproximou, seu rosto marcado pela fuligem e pelo cansaço.
— Não me digam que vocês vieram trazer mais trabalho? — disse ela, esfregando a nuca com uma mão enluvada. — Já não basta ter que ensinar todos os ferreiros e aprendizes deste quilombo inteiro? Sabe quantos são? Eu não sabia, até essa semana! E são muitos! Além de cuidar dos meus próprios aprendizes…
Ela suspirou profundamente, fechando os olhos por um segundo. Quando os abriu, viu a expressão culpada no rosto de Carlos. Ele, evitando seu olhar, fitou o chão de terra batida.
— Então… — ele começou, hesitantemente —, eu preciso que você faça… várias peças diferentes. Para umas máquinas novas…
Para sua surpresa, Nia pegou seus braços com suas mãos ásperas e forçou-o a olhar em seus olhos. A cor de prata deles não carregava fúria, mas uma centelha de pura excitação. Todo o cansaço parecia ter evaporado de seu rosto.
— Então, que gambiarra fantástica vamos fazer agora? — perguntou ela, um sorriso largo estampando seu rosto.
Aliviado, Carlos lançou-se em uma explicação detalhada. Nia ouvia, absorta, fazendo perguntas incisivas sobre a função de cada máquina, o movimento das peças, como tudo se encaixava. A curiosidade dela era insaciável, e Carlos sentiu sua energia mental se esvaindo ao tentar alimentá-la. Quando finalmente terminou, Nia balançou a cabeça, maravilhada.
— Acho que agora entendi o que você quis dizer com ‘máquina’. São gambiarras fascinantes.
— Espera, você não sabia o que era uma máqui— Carlos começou a dizer, mas a pergunta morreu em seus lábios. “Claro que ela não sabe, seu idiota! Que máquina existia antes da revolução industrial? Mesmo que a palavra exista, o conceito não. É estranho pensar nisso… Se eu pegasse uma pessoa da minha época e o levasse cinquenta anos no passado, ele já se sentiria perdido. Mas se eu pegasse um campones do tempo de agora e levasse a uns séculos no passado, o mundo não seria tão diferentes, não existiriam máquinas que mudaram completamente o mundo e seu trabalho seria igual.”
Seus pensamentos foram interrompidos por Nia, que estalou os dedos bem diante de seu nariz.
— Por um segundo, achei que você tinha voltado para o seu mundo — disse ela, com uma sombra de genuína preocupação.
Antes que ele pudesse reagir, Nia segurou seu braço com firmeza e o puxou para perto, encostando-o levemente contra seu torso. O contato foi súbito e íntimo.
— Mas não vou deixar — sussurrou ela, sua voz um tanto baixa. — Você vai ter que ficar neste mundo e me ajudar a fazer essas máquinas e armas de fogo.
Carlos ficou pasmo, um calor subindo-lhe ao rosto. Ele recuperou a compostura quase instantaneamente, pois percebeu que o som na oficina tinha cessado por completo. Todos os homens—ferreiros e aprendizes—haviam parado seu trabalho e agora fitavam os dois com um silêncio pesado e hostil. Seus olhares eram como punhais, e Carlos sentiu um frio percorrer sua espinha. Gentilmente, mas com firmeza, ele pegou Nia pelos ombros e a afastou de si. O ar na oficina pareceu ficar ainda mais carregado.
— Não vou a lugar nenhum — ele disse, em uma voz que tentou soar despreocupada, mas que soou estridente no silêncio. — Obrigado por topar fazer as máquinas. Agora, preciso falar com o carpinteiro.
Mal terminou a frase, o barulho ensurdecedor da oficina retornou de repente, como se uma torneira sonora tivesse sido aberta. Aliviado, Carlos se virou para sair, mas Nia agarrou seu braço mais uma vez.
— Espera! — ela insistiu, seus olhos brilhando com um entusiasmo quase infantil. — Tive uma ideia para uma arma de fogo sensacional! Escuta só: e se a gente fizesse uma arma de fogo gigante, do tamanho de um homem, e colocasse no chão? A bala seria do tamanho de uma melancia e—
— Nossa! Não acredito que você pensou sozinha em um canhão! — exclamou Carlos, antes que pudesse se conter.
Novamente, o silêncio tomou conta da oficina. Desta vez, porém, era um silêncio de incredulidade. Carlos tossiu, envergonhado, e tentou se recompor.
— A… a ideia é brilhante, Nia. Mas infelizmente, um canhão teria que ser feito inteiro de ferro ou aço. Seria pesadíssimo e, no momento, estamos com falta crítica de ferro.
O brilho nos olhos de Nia se apagou instantaneamente. Seus ombros se curvaram ligeiramente.
— Então… já inventaram essa arma no seu mundo… — murmurou ela, cabisbaixa.
Aproveitando a deixa, Carlos não esperou um segundo sequer. Deu meia-volta e quase saiu correndo da oficina, sem olhar para trás.
Assim que se afastaram o suficiente para o ar fresco limpar seus pulmões do calor opressivo, Tassi abriu a boca para falar.
— Nem pense em falar nada! — ele a interrompeu, apontando um dedo acusatório.
Ela não conseguiu se conter. Uma gargalhada explosiva e genuína ecoou pela clareira, tão livre e contagiante que, por um instante, Carlos esqueceu seu constrangimento. Ele a observou rir, o sol iluminando seu rosto, e um pensamento surgiu em sua mente. “É incrível. Ela esconde a dor, a raiva, o ódio… mas para rir da minha desgraça, solta umas gargalhadas dessas… Bom, até que ela fica bem bonita quando ri…”
E, escondendo um pequeno sorriso, ele seguiu sua guarda-costas até o carpinteiro.

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