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    Seguindo Tassi pela trilha de terra batida, Carlos se dirigiu à oficina do carpinteiro para explicar as máquinas que precisava. O ar pesado carregava o cheiro doce de serragem misturado ao mofo das construções de barro. “Falta tanta coisa essencial”, pensou ele, com uma ponta de frustração. “Sem o costume da leitura e escrita aqui, não há papel. Se houvesse, poderia simplesmente copiar os diagramas do livro e entregar ao carpinteiro. Agora, vou ter que voltar aqui toda vez para explicar cada peça.” Ele suspirou, sentindo o peso da jornada à sua frente. “Mudar este mundo vai ser uma estrada longa e cheia de obstáculos.”

    A oficina do Mocambo do Tatu não era grande. Feita de barro como as demais estruturas, suas paredes abrigavam uma coleção de ferramentas: serras de dentes afiados, martelos de cabo liso pelo uso e plainas alinhadas. Dentro, o som era constante—o rangido da madeira sendo cortada, o raspado das superfícies sendo polidas e o zumbido baixo de uma lâmina circular de serra que girava, movida pela gema de metal que o filho de Vicente controlava com concentração. O próprio Vicente empurrava uma tábua contra o disco, seus músculos tensionados com o esforço. Ao avistar Carlos, ele interrompeu o trabalho e se aproximou, limpando as mãos em um trapo sujo de resina.

    — Boa tarde. Como posso ajudar, chefe? — disse Vicente, e Carlos não deixou de notar o olhar um tanto reticente do homem, que claramente ainda se ajustava à ideia de um líder tão jovem.

    — Boa tarde, Vicente. Preciso que você fabrique várias peças de madeira para umas máquinas que vamos montar.

    Carlos então mergulhou em uma explicação detalhada, abrindo o precioso livro “Revolução Industrial: As Máquinas que Mudaram o Mundo” para mostrar esboços e diagramas. Suas palavras tentavam traduzir conceitos abstratos em formas tangíveis de madeira e movimento. 

    Mesmo com a explicação, era claro que Vicente não reteria todos os detalhes de uma só vez. Carlos chegou a pensar em deixar o livro com ele, mas o coração gelou com a possibilidade. 

    “Esta oficina é um lugar de acidentes”, ponderou, olhando para as lâminas expostas e as lascas pontiagudas no chão. “Não posso arriscar perder este livro. É o mais importante que tenho. Sem ele, até um motor a vapor, cujo princípio é simples—fogo aquece água, vapor gera pressão, pressão move uma máquina—se tornaria uma tarefa hercúlea. Saber o princípio é uma coisa; replicar a engenharia de séculos é outra completamente diferente.”

    Uma onda de insegurança o atingiu. “Queria ser que nem aqueles protagonistas de novels e mangás, gênios que reconstroem a civilização moderna de memória. Mas eu… sem esses livros, não sou nada. Se eu os perdesse, estaria perdido.”

    — Qualquer dúvida, é só me procurar — disse Carlos, fechando o volume com cuidado. — Também vou passar aqui todo dia para acompanhar o progresso.

    Após finalizar as explicações, os dois começaram a caminhar de volta. Carlos caminhava em silêncio, o olhar fixo no chão, seu desânimo perceptível. Tassi, ao seu lado, observou-o por um momento antes de quebrar o silêncio.

    — O que foi? Saiu da oficina do carpinteiro mais para baixo do que entrou.

    Ele ficou surpreso. Acreditava que disfarçava melhor suas emoções. Mas, tendo sido descoberto, confessou com relutância o medo que o assombrava—a dependência total daqueles livros e a fragilidade de seu conhecimento sem eles.

    Tassi ouviu em silêncio, absorvendo suas palavras. Quando ele terminou, ela falou com uma serenidade que ele não esperava.

    — Realmente, seria terrível se algo acontecesse com esses livros. Mas seria pior ainda se algo acontecesse com você.

    Carlos a olhou, surpreso novamente, mas permaneceu calado. Tassi continuou, seu tom mais suave do que o habitual.

    — Olha, você acha mesmo que eu escolhi te seguir por não ter nada melhor para fazer? No começo, foi por uma dívida, por você ter me salvado. Depois, foi por curiosidade. Mas agora… 

    De forma meio relutante disse — Agora é por respeito. Aquele dono de engenho, ele tinha a mesma coleção de livros que você. E não fez nada com eles. Veja só quanta mudança você já trouxe para nós. E o mais importante: você nos deu esperança. Deu liberdade a mim e a todos os nossos companheiros que estavam escravizados. E mesmo o pessoal do quilombo… acha que estão indo naquela caverna arrepiante, mexendo com bosta de morcego, por vontade própria? 

    Ela olhou nos olhos castanhos de Carlos antes de continuar — Podem não acreditar em você ainda, mas já acreditam nas suas armas. Aqui no quilombo somos livres, mas é uma liberdade sempre ameaçada. A volta da escravidão é um fantasma que ronda nossos pesadelos… eu mesma ainda tenho os meus.

    Carlos não conseguia disfarçar a expressão de choque. Demorou um pouco para processar aquelas palavras.

    — Obrigado — ele finalmente disse, a voz um pouco rouca. — Não esperava ouvir isso de você.

    Tassi virou o rosto, sussurrando baixinho, quase para si mesma:

    — Eu também não… — E então, em um pensamento silencioso: “Acho que me tornei mais emotiva desde que deixei de ser uma guerreira Mino. Mas não sei se isso é ruim. Até que me sinto bem.”

    Carlos não ouviu direito o murmúrio, mas decidiu não pressionar. A fala dela, no entanto, havia operado uma pequena maravilha em seu ânimo. Um novo propósito acendeu dentro dele. “Se não sei o conteúdo dos livros de cor, então vou decorá-los. Agora tenho tempo. Não preciso mais passar o dia no campo. Posso buscar comida no armazém, posso pedir ajuda…” A estranheza de poder dar ordens ainda o incomodava, mas ele se resignou. “Com o tempo, devo me acostumar.”

    Nos dias que se seguiram, Carlos estabeleceu uma rotina. De manhã, visitava a oficina de Nia, onde o calor das forjas e o cheiro de óleo quente o recebiam. À tarde, era a vez da oficina de Vicente, agora mais movimentada. O carpinteiro, sobrecarregado, pedira mais assistentes, e Carlos implementara uma sugestão: cada aprendiz focava em uma única tarefa específica. A produtividade aumentou visivelmente.

    “É o embrião do fordismo”, refletiu Carlos, observando o trabalho coordenado. “Aplicado a uma oficina de madeira, não a uma linha de montagem industrial, mas a lógica é a mesma. Começamos pequenos, mas logo a produção vai disparar. O lucro vai financiar a atualização das máquinas manuais para máquinas a vapor… Claro, antes de pensar em produzir em massa, preciso vender a mercadoria. Roupas todo mundo precisa, mas como exportar do quilombo? Tomara que a ideia de vender para os agricultores vizinhos funcione…”

    A rotina de estudos e visitas, porém, começou a cobrar seu preço. A mente de Carlos pedia um escape, uma distração. Não havia livros de ficção, animes para maratonar ou vídeos intermináveis sobre alguma treta de criadores de vídeos. A saudade desse passado trivial era uma coceira constante na sua mente. Até que, uma manhã, uma ideia simples e brilhante lhe ocorreu.

    Ao amanhecer, Carlos saiu de casa com um passo animado. Quixotina, sua guarda do turno da manhã, ergueu uma sobrancelha surpresa. Ele normalmente só saia para as oficinas ou para estudar.

    — Bom dia. O que te fez sair da toca hoje? — perguntou ela, seus olhos curiosos examinando-o.

    — Resolvi deixar os estudos para a tarde — anunciou ele, um sorriso no rosto. — Hoje vou fazer algo diferente. Vamos jogar futebol!

    Ele ergueu triunfante uma bola improvisada, um emaranhado de trapos amarrados que outrora foram as calças que usava como escravo. Era o material mais decente que conseguira encontrar.

    Quixotina franziu o nariz, examinando o objeto.

    — E o que seria isso? Não vai me dizer que esses trapos vão explodir.

    Ele riu.

    — Claro que não! É só um jogo. Ando muito entediado. Como os adultos estão ocupados, vou ensinar as crianças. Cadê elas?

    — Ha! — ela soltou uma risada. — É só isso? E eu já esperando outra invenção maluca.

    Ela apontou para uma área aberta perto dos campos de cultivo. Lá, uma dúzia de crianças corria em algazarra, com Dulcinéia no meio do grupo. Na liderança, perseguido por todos, estava Zézinho, um redemoinho de energia.

    “Esse Zézinho é mesmo uma figura”, pensou Carlos, sorrindo.

    Rapidamente, ele usou pedras para marcar dois gols em extremidades opostas do campo. Então, se aproximou do grupo e gritou:

    — Ei, criançada! Quem quer jogar um jogo comigo? O time que ganhar leva sorvete!

    O efeito foi instantâneo. A correria parou. Doze pares de olhos se voltaram para ele, e então uma pequena multidão veio em sua direção em disparada, atraída pela promessa do doce que Dulcinéia e Zézinho tanto comentavam.

    “Basta falar em doce que a criançada vem”, pensou, satisfeito.

    Em segundos, ele estava cercado.

    — Eu quero, tiooo! Como faz para ganhar? — gritavam vozes ansiosas.

    Apenas Zézinho parecia mais interessado no desafio do que na recompensa. Ele se postou à frente do grupo, peito estufado.

    — Então, qual é o jogo? Tem que ganhar de você?

    “Pelo visto o baixinho é competitivo. Tudo bem, o importante é se divertir”, pensou Carlos.

    — É simples! — explicou ele. — A gente joga com os pés nesta bola. Ninguém pode tocar nela com as mãos. Atrás de mim tem um gol, marquei com duas pedras. Para fazer um ponto, é preciso chutar a bola para dentro do gol adversário. O time de vocês defenderá aquele gol lá atrás. A bola não pode sair da área marcada. E em cada gol fica um goleiro—só ele pode usar as mãos!

    As crianças pareciam um pouco confusas, mas os olhos brilhavam de curiosidade.

    — Não se preocupem, vocês pegam o jeito rápido. Serão seis de cada lado. Meu time contra o da Quixotina.

    Quixotina, que observava a cena de longe, espantou-se.

    — Espera, eu vou jogar?

    Carlos e todas as crianças viraram-se para ela, com olhares de súplica. Dulcinéia, em especial, fitava a mãe com olhos luminosos de expectativa.

    Quixotina cruzou os braços, mas um sorriso pequeno escapou. “Isso é jogo sujo”, pensou.

    — Está bem… eu vou jogar.

    — Ebaaa! — gritou o coro infantil.

    — Quem quer vir para o meu time? — perguntou Carlos, cheio de confiança.

    O que se seguiu foi um silêncio constrangedor. Nenhuma criança se moveu. Então, um murmúrio começou:

    — Eu quero… ir para o time da Quixotina!

    — Eu também!

    — E eu!

    Carlos ficou pasmo. “Mas que feitiço a Quixotina jogou nessas crianças?”

    — Bem, nem todos podem ficar com ela — disse ele, tentando manter a dignidade. — Vou escolher quem vem para o meu time.

    Ele selecionou seis crianças, incluindo Zézinho. Os escolhidos ficaram visivelmente abatidos. Vendo suas caras de desapontamento, Carlos fez sua jogada final.

    — Ei, não fiquem tristes! Pensa só: nosso time vai ganhar, e vamos comer todo aquele sorvete sozinhos!

    Como por magia, os olhos das seis crianças se iluminaram. A tristeza se transformou em determinação. O jogo, finalmente, poderia começar.

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