Índice de Capítulo

    Carlos seguiu Jairo em direção à casa-grande, seus pés afundando na terra fofa do caminho. A construção erguia-se imponente contra o céu azul. Aos seus olhos, a casa era rústica, mas inegavelmente luxuosa, como uma mansão saída de um romance de época. A madeira escura da estrutura contrastava com as janelas brancas e bem cuidadas. Um cheiro leve de terra molhada e flor de laranjeira pairava no ar.

    Ao atravessar a pesada porta de madeira, Carlos foi envolvido por uma penumbra fresca e pelo aroma envelhecido de cedro e cera de abelha. Sua visão ajustou-se rapidamente, revelando uma sala ampla onde várias imagens de santos, com seus olhos severos pintados sobre madeira, observavam os cantos a partir de móveis escuros e reluzentes. Ao passar pela cozinha, o cheiro forte de alho, cebola e algum tipo de caldo engrossando no fogo encheu suas narinas. Lá, uma senhora de costas mexia uma grande panela de ferro; pelo jeito, ele supôs que fosse a Tia Vera, mas não pôde confirmar.

    Os dois subiram uma escada ornamentada, toda pintada de branco, onde seus passos ecoavam suavemente sobre a madeira sólida. Ao chegar no segundo andar, um longo corredor escuro se estendeu à frente. Por uma porta entreaberta, Carlos vislumbrou um quarto. Lá dentro, uma mulher de pele pálida estava sentada na beira de uma cama de casal, coberta por um edredom tão fofo e branco que parecia uma nuvem. Seus dedos finos acariciavam lentamente o tecido macio. Seu olhar, por um instante, tinha um brilho terno enquanto observava uma criança brincando no chão com blocos de madeira. A semelhança entre os dois era gritante.

    Jairo, o capataz, não pôde deixar de cumprimentá-la.

    — Bom dia, minha senhora.

    Ao ouvir a voz, o olhar da mulher perdeu instantaneamente seu brilho, tornando-se opaco e vazio. Ela voltou-se para o capataz e ofereceu um pequeno sorriso forçado, tão tenso que mal movimentou os lábios, antes de baixar os olhos novamente para a criança, como se fosse seu único refúgio.

    O capataz, percebendo a frieza da recepção, continuou a andar. Carlos seguiu-o até uma pesada porta de madeira escura. Jairo bateu com os nós dos dedos, anunciando:

    — Seu Jorge, eu trouxe o escravo que o senhor pediu. Ele se chama Carlos.

    O coração de Carlos martelava contra seu peito, tão alto que ele temia que todos pudessem ouvir. “Que história eu invento? Aposto que não vai acreditar em mim, não importa o que eu fale. Pelo visto, serei torturado de novo…”

    Uma voz autoritária respondeu de dentro.

    — Pode deixar o escravo entrar.

    A porta foi aberta por Pedro, o mesmo homem que lhe aplicara a pomada milagrosa nas costas no dia anterior. Carlos quis esboçar um sorriso de reconhecimento, mas conteve-se, direcionando imediatamente seu olhar para o homem atrás da mesa.

    Ao entrar sozinho, um ar frio e súbito envolveu seu corpo, como se tivesse adentrado uma câmara frigorífica, uma sensação impossível para a época. O escritório era cavernoso. No centro, sentado atrás de uma enorme escrivaninha de madeira escura, estava Seu Jorge. Ele lia um livro intitulado “Física para o Ensino Médio – Vol. 1”, mas fechou-o com um baque seco e o pousou sobre a mesa para encarar o escravo à sua frente.

    Sobre a escrivaninha, além do livro, estavam os pertences de Carlos, juntamente com frascos de vidro contendo líquidos de cores vibrantes: vermelho-sangue, azul-celeste, amarelo-ouro, verde-floresta e marrom-terra. Atrás da mesa, uma estante abarrotada de livros se erguia até o teto. Nas paredes laterais, prateleiras exibiam uma coleção bizarra: uma latinha de cerveja amassada, um fone de ouvido com o fio enrolado, uma lata de milho enlatado aberta e vazia, um carrinho de plástico, um isqueiro, um boneco de um super herói e um rolo de papel higiênico. Apesar da disparidade, todos os objetos compartilhavam uma estranha familiaridade para Carlos. Eram artefatos de seu mundo, destoantes como miragens modernas naquele ambiente carregado de santos.

    “Por que tem tantas coisas do meu tempo aqui? Pelo visto, várias coisas do meu mundo acabam vindo parar neste lugar. Talvez até alguém além de mim…”

    Ao lado de Seu Jorge, Pedro estava em pé, abanando-o com um leque de palha. O objeto parecia comum, exceto por uma gema azulada e translúcida incrustada na base. A cada movimento, o vento gélido que Carlos sentira emanava do leque.

    — Bom dia, meu senhor — disse Carlos, mantendo a voz o mais estável possível.

    O senhor do engenho olhou-o dos pés à cabeça, seus olhos calculistas.

    — O Jairo disse que seu nome é Carlos, não é mesmo?

    — Sim, senhor.

    — Como você é novo aqui, terá de fazer o teste de aptidão mágica. Aliás, os itens para o teste me custaram uma pequena fortuna.

    A fala do homem entrou por um ouvido e saiu pelo outro. A atenção de Carlos foi capturada por um objeto específico em cima da estante: uma pistola semiautomática.

    “Não acredito! Tem uma pistola aqui! Se eu conseguir pegar essa arma, minha liberdade estará garantida! Mas preciso manter o foco… Pode estar sem balas ou emperrada. Primeiro, preciso sair desta sala sem apanhar.”

    Seu Jorge percebeu sua distração.

    — Eu esqueço como preto é burro. Vou explicar de um modo que até alguém como você possa entender. Basicamente, vamos ver se você consegue usar alguma gema mágica. Se conseguir, viverá melhor que os outros escravos, trabalhará menos e comerá melhor. Eu beneficio quem me beneficia. Mas, mesmo assim, há gente ingrata, como a vadia da Tassi, a quem estou punindo. Se você se comportar bem, pode viver bem, como o Pedro aqui.

    O sangue de Carlos ferveu. Muito tentador, seu velho vagabundo. Mas eu prefiro minha liberdade!

    — Entendo — respondeu, contendo a raiva. “Até pensei em dizer “Sou grato pela benevolência do senhor”, mas não vou puxar o saco de um verme desses. Ser um “escravo plus” não me interessa.”

    — Voltando ao ponto principal — continuou Jorge. — O teste é simples. Basta colocar a mão nestes frascos. Dentro deles, há pó de gemas mágicas misturado com água. Se algum brilhar, significa que você tem aptidão para a respectiva gema. Entendeu? Pode começar.

    Carlos sentiu uma ponta de esperança. “Quem sabe?” Colocou a mão em cada um dos frascos, um por um. O líquido vermelho era oleoso, o azul aquoso, o amarelo espesso. Mas, para sua decepção, nenhum deles reagiu à sua presença. É uma pena. Acho que não serei o protagonista apelão que sabe usar todas as magias…

    Seu Jorge suspirou, claramente desapontado, e guardou os frascos em uma gaveta.

    — De qualquer forma, você ainda pode ser útil. Jairo me disse que você tinha esses objetos consigo — disse, apontando para os itens de Carlos sobre a mesa. 

    — Coleciono esses artefatos. Sou fascinado por eles, quero entender para que servem e de onde vêm. A Igreja os chama de “artefatos do diabo” e os queima, alegando que vêm do inferno. Mas, na realidade, ninguém sabe sua origem. Dizem que algumas tribos na África e na América os invocam usando certas gemas, mas até agora ninguém as encontrou. Ainda acho que são invocados de algum lugar, talvez até do inferno, como a Igreja diz.

    Ele se levantou e pegou um livro da estante.

    — Esses objetos realmente não são deste mundo. A maioria é feita de materiais estranhos, com cores vívidas. E aparentemente não têm propósito, nem mesmo os livros. Conseguimos lê-los, mas entender é outra coisa; falam de coisas sem pé nem cabeça. Talvez um estudioso conseguisse decifrá-los, mas a Igreja proíbe qualquer estudo sobre o tema. Para minha sorte, vivemos num fim de mundo, e eles não enchem tanto o saco por aqui. Mas duvido que alguém decifrasse isto, por exemplo — ele ergueu o livro. 

    — “Cálculo I”. O que seria ‘cálculo’? O que são esses números e letras misturados? Realmente, parece algo que apenas o diabo inventaria por diversão.

    “Nisso tenho que concordar. O cálculo foi inventado pelo diabo mesmo. Espera, agora me dei conta… este é um livro do meu mundo! Será que todos aqui são assim? Com esses livros, posso estudar e trazer tecnologia: eletricidade, adubo, pólvora… Mas como ninguém decifrou isso? Ah, estou pensando demais. Estamos numa época em que queimam livros e pessoas. O analfabetismo deve ser de 99%. É normal que ele não conheça “cálculo”.”

    — Contei tudo isso porque a história que você deu ao meu capataz me intrigou — disse Jorge, fixando-o. — Você achou mesmo esses artefatos jogados no chão?

    Carlos olhou mais uma vez para a pistola. Um plano arriscado se formou em sua mente.

    — Me desculpe, senhor, eu menti para seu capataz. Na verdade, sei como invocar os artefatos do diabo. Apenas não me puna, que eu ensino o método.

    “Não sei nada sobre este mundo, mas não vou continuar sendo escravo deste verme. E não deixarei ninguém aqui nessa condição.”

    A fala irritou o velho, que pegou uma adaga de uma escrivaninha e a fincou na nela com violência.

    — Se mentir para mim, eu mesmo corto sua língua! Acha que vou acreditar nisso? Já te disse: nenhuma tribo sabe nada sobre esses artefatos. E você quer que eu acredite que sabe invocá-los?

    Pedro parou de abanar, olhando preocupado para Carlos.

    — Eu também estudei alguns dos artefatos que invoquei, como um livro de Física. Pode me perguntar qualquer coisa que estiver nele.

    — Então me diga: o que é Física? O que é massa? O que é gravidade?

    — Física é a ciência que estuda a natureza e seus fenômenos. Massa é uma propriedade da matéria, a quantidade de matéria num corpo. Gravidade é a força de atração entre corpos com massa. É o que faz as coisas caírem. A força da gravidade na Terra é de 9,8 metros por segundo ao quadrado. Pode confirmar no livro.

    “Não lembro exatamente, mas acho que é mais ou menos isso. Tomara que ele se contente.”

    Jorge, que mal entendia o que lia no livro, folheou-o com relutância. Para sua surpresa, as palavras de Carlos batiam com o conteúdo, até o número da gravidade. Isso só o irritou mais.

    — Você deve ter achado este livro e decorado! Isso não prova nada!

    — Realmente, apenas decorei, pois invoquei os livros, mas não os compreendi. Mas como um mero escravo teria acesso a esses artefatos a ponto de decorar um livro inteiro, se não fosse por invocação? A Igreja queima todos, e eu não tenho dinheiro para comprá-los como o senhor.

    Parte do que Carlos disse fazia sentido, mas não era suficiente. Ele então notou um isqueiro na prateleira.

    — Também sei usar alguns desses artefatos. Por exemplo, aquele ali — apontou.

    Por curiosidade, Jorge pegou o isqueiro e entregou a Carlos. Ele o pegou, girou a roda três vezes e uma chama azulada e familiar surgiu, crepitando suavemente. O velho ficou impressionado.

    — Mas como é possível? Fazer fogo sem a gema do fogo!

    O olhar do velho desviou do isqueiro e se voltou para Carlos.

    — Ainda não acredito em você, mas posso ouvi-lo. Do que precisa para invocar esses artefatos?

    “Não sei como a magia funciona aqui, mas gemas devem ser raras e caras.”

    — De uma gema mágica de cada cor, do tamanho de um punho.

    — Isso é um absurdo! — Ele gritou, sua voz ecoou pelo quarto — Sabe quantos tipos de gemas existem e quanto custa uma desse tamanho?

    “Putz, então há mais tipos? Achei que eram só as dos frascos. Mas isso não importa.”

    — Há outra forma, usando um artefato específico. Por exemplo, aquele ali — disse, apontando para a pistola.

    Jorge olhou para Pedro, que pegou a arma e a entregou a Carlos. Ele a pegou com cuidado, sentindo o metal frio e pesado em suas mãos.

    — Este daqui? Como este artefato pode invocar outros?

    Carlos, animado se conteve em pegar a arma das mãos de Jorge.

    — Ele pode substituir muitas gemas. Só preciso ver se atende aos requisitos. Posso?

    Com um aceno positivo, Carlos pousou o isqueiro e pegou a arma. Fingiu analisá-la com cuidado, enquanto sua mente trabalhava rapidamente. “Primeiro, verificar se há um projétil na câmara… depois, tirar a trava de segurança…”

    Ele puxou sutilmente o ferrolho para trás, só o suficiente para espreitar a câmara. Vazia. Nenhuma surpresa. Então moveu a alavanca de segurança para a posição de tiro, tudo enquanto apontava a arma displicentemente na direção de Jorge — sem mirar diretamente, para não levantar suspeitas — e puxou o gatilho.

    Click.

    “Nada aconteceu. Que merda! Sem munição. Tudo bem, preciso que ele compre munição. Se ele tem um quarto cheio dessas tralhas, deve ter um fornecedor.”

    Ele ejetou o carregador. Vazio.

    — Este artefato está bom, mas precisa de outros pequenos que o acompanham. Posso desenhá-los. Com eles, poderemos invocar mais artefatos.

    Com um olhar desconfiado Jorge lhe disse:

    — Não acredito que esteja falando a verdade, mas não mando chicoteá-lo porque parece saber como essas coisas funcionam. A partir de amanhã, toda tarde você virá aqui e me explicará, um por um, todos os artefatos de minha coleção. Comprarei esses tais artefatos de invocação. Mas se descobrir que está mentindo, não serei tão leniente quanto fui com a Tassi. Agora, saia daqui e volte para o canavial.

    Antes de sair, Carlos agradeceu com uma inclinação de cabeça e deixou o escritório rapidamente. Ao sair da casa-grande, a luz do sol bateu em seu rosto. Por fora, parecia calmo. Por dentro, uma euforia silenciosa explodia. Isso! Ele caiu que nem um patinho! Agora é ter paciência e torcer para ele conseguir o que preciso.

    Enquanto isso, Jorge observava sua retirada da varanda.

    — Que preto estranho. Como sabia daquelas coisas? E aquele olhar quando segurou o artefato… era frio, calculista. Ele sabia exatamente o que era. Duvido que seja para invocar coisas, mas estou curioso. Além disso, não há nada que ele possa fazer contra mim.

    O senhor do engenho puxou dois colares que usava sob a camisa. Um continha uma gema branca leitosa, o outro, uma gema negra como o âmbar. Ambas tinham entalhes complexos e cintilavam à luz.

    — Enquanto eu usar estes colares, ninguém poderá me ferir. Se ele estiver falando a verdade, só tenho a ganhar. Mas, por precaução… — virou-se para Pedro. — Quero que você fique próximo de Carlos e me informe o que ele está planejando.

    — Sim, senhor — respondeu Pedro, seus olhos sérios refletindo a luz fraca da gema azul em seu leque.

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