Capítulo 52 - Prisioneiro de Guerra
A semana não estava sendo boa para Jorginho, um homem branco baixinho e magrelo, ele foi com a força do governador para lutar contra o Quilombo da Jabuticaba apenas para sofrerem uma derrota.
Jorginho em meio a mata em chamas, foi encontrado dentro de um casulo de gelo que ele mesmo fez usando um escudo com a gema do gelo para se proteger.
Dentro do casulo ele havia borrado as calças, mas jurava que se molhou quando usou o seu cajado de água para apagar as chamas da floresta.
E para piorar foi levado para trabalhar por pelo menos dois meses no quilombo antes de ser liberto, teria que ficar numa região específica e não poderia sair. Ele já estava alguns dias no quilombo, no momento estava terminando de almoçar só esperando a hora que teria que voltar a trabalhar enquanto refletia sobre sua situação precária.
“Eu sabia que essa era uma péssima idéia, mas minha mulher falou que a gente precisava de dinheiro para nossa família, para minha filha. Agora vou ter que ficar trabalhando aqui… Tomara que minha mulher e filha continuem vivas até eu voltar. Se eu fosse rico, eles já teriam dado para o quilombo algo de valor, como um boi em troca da minha liberdade, mas ninguém vai se importar com um pobre como eu.”
Enquanto estava refletindo sobre seu erros, um guarda se aproximou e falou com desdém para ele.
— Jorginho, você deu sorte hoje, não vai mais precisar trabalhar no campo.
O guarda que usava um colar com uma gema branca no peito pegou sua lança e a colocou perto do pescoço do homem magrelo.
— Só espero que não faça nenhuma besteira!
O homem magrelo, largou o prato que segurava ergueu as mãos e respondeu tremendo.
— Sim senhor, não farei nada.
O guarda não disse mais nada, apenas começou a andar, e Jorginho entendeu que tinha que segui-lo. Os dois andaram em silêncio, até chegarem numa rua movimentada no Mocambo do Tatu, onde Bentinho estava o esperando na frente de uma sorveteria.
— Então esse vai ser meu novo substituto temporariamente? Quando me falaram que foi um dos homens que nós atacaram até fiquei com medo, mas ele realmente parece fraco.
“Quem esse moleque pensa que é! Posso não ter feito nada na batalha, mas apenas fui pego desprevenido porque foi minha primeira batalha!”
Apesar de pensar isso, Jorginho ficou calado e o guarda respondeu Bentinho.
— Hunf, e mesmo assim ele pensou em atacar o quilombo, por mim a gente teria que matar um traste desses, em vez disso apenas os punimos por um tempo e depois jogamos longe do quilombo, e pior Espectro insiste em deixar eles se juntarem ao quilombo caso demonstrem bom comportamento e interesse. Eu entendo fazer isso com um escravo que foi obrigado a lutar, mas ele é um branco que veio nós atacar porque quis!
“Eu não queria nada disso, apenas queria dinheiro para minha família!”
O guarda parecia exaltado, mas Bentinho estava bem calmo.
— Claro, claro, mas esse daí não tem cara que machuca uma mosca. Além disso, o Chefe Carlos é até mais bonzinho que Espectro, afinal vai pagar até um salário por ele estar trabalhando aqui.
“O que? Vou receber um salário, não vou ser forçado a trabalhar?”
O guarda balançou a cabeça ao ouvir isso.
— O chefe do mocambo de vocês é doido! De qualquer forma, já cumpri meu dever, mas não tire o olho dele, ele só pode ficar aqui, vão ter que trazer uma marmita para ele.
Antes de sair o guarda apontou a lança para Jorginho novamente:
— E você nem pense em fazer qualquer besteira, faça o que Bentinho mandar, e saiba que você está aqui só por ser fraco e saber usar a gema de gelo e ferro.
Jorginho tremendo balançou a cabeça concordando, depois disso o guarda saiu. E Bentinho entrou na sorveteria junto com o recém chegado.
— Qual seu nome?
O homem tremendo respondeu:
— Pode me chamar de Jorginho.
O jovem riu ao ouvir isso.
— E pode me chamar de Bentinho, afinal para que dão uns nomes pra gente se ninguém nós chama deles não é mesmo?
O homem apenas encarou o menino.
— Pelo visto não é de muitas palavras, bom, você deve estar confuso então vou te explicar, basicamente você usa gema de ferro e gelo e aqui no quilombo, precisamos de adeptos dessas gemas para fazerem… Sorvete, mas nem tente bancar o espertinho e sair cuspindo no sorvete dos clientes, por raiva por ter perdido, sempre vai ter alguém aqui trabalhando com você cuidado para tu não fazer merda, no momento sou eu.
— Enfim, primeiro vou te ensinar a usar o liquidificador e fazer sorvete, e picolé com a gema do gelo, mas não se preocupe que não tem segredo.
Bentinho ficou a tarde toda ensinando Jorginho a fazer os doces gelados, que em silêncio foi aprendendo.
Ele só fazia sorvetes nos fundos e na frente da loja uma moça vendia eles, e se tivesse muito movimento ele teria que ajudar também. Também havia pessoas que vinham pegar potes de argila de sorvete com a gema de gelo dentro e levavam para algum lugar. Jorginho estava curioso para onde levavam mas preferiu ficar em silêncio.
Como era semana de pagamento o lugar estava bem movimentado, então Bentinho teve que ficar para ajudar mais, por sorte Nia não precisava de sua ajuda no dia.
Quando o movimento acalmou um pouco, Jorginho começou a falar.
— Jovem, me desculpe por ter ficado quieto o dia todo, apenas não esperava ser tratado tão bem assim…
Bentinho riu antes de dizer:
— Só tô te tratando assim porque você vai tirar esse trabalho de mim, e também porque eu nasci nesse quilombo, nunca fui escravo então não tenho ódio contra ninguém, além disso vendo você sei que não machucaria nenhuma mosca.
Bentinho não disse, mas o mocambo já tinha uma moradora considerada maluca mas amada por todos que era branca, o que fazia muitos não criarem um preconceito com pessoas diferentes, ao contrário dos outros mocambos.
Jorginho sorriu ao ouvir isso, e sentindo que o jovem não tinha más intenções com ele, perguntou de forma relutante.
— E quanto é o salário?
Bentinho riu mais uma vez.
— 200 réis o salário, para alguém de fora deve ser bem pouco, mas para nós aqui dá para viver bem.
“200 réis! Isso não é nada, até pensei em juntar o salário para voltar com dinheiro com minha família… Eu estava sonhando demais.”
No dia seguinte, Jorginho foi trabalhar de novo na sorveteria, mas dessa vez ele que faria o sorvete sozinho, e a moça do atendimento ficaria de olho nele, foi lhe dada um anel com gema de fogo para se defender caso ele fizesse algo, mas não é como se Jorginho fosse do tipo que aprontava alguma coisa.
Ele apenas trabalhava e ajudava no atendimento, no dia anterior estava meio confuso e não pode reparar nas coisas, mas hoje, pode analisar melhor tudo e até teve coragem de falar com a moça do atendimento cujo nome era Nala.
— Sabe, eu não esperava que o quilombo fosse um lugar tão bonito, essas ruas e calçada com árvores ao redor, além de dar sombra deixam a paisagem tão linda, não só isso, as pessoas também parecem ter mais vida ao andar, na cidade onde moro as ruas são todas esburacadas e muitas pessoas andam com um olhar sem vida… Eu era uma delas.
Nala, ficou meio surpresa com o homem que até agora não havia falado mais de uma sentença, mas logo recuperou a compostura, e com o peito estufado começou a falar.
— Não era assim até alguns meses atrás, tudo isso aqui é novo e foi construído a mando do novo chefe, aliás antes a gente nem tinha dinheiro para ganhar, mas trabalhávamos apenas para o bem do quilombo, agora ainda trabalhamos para o bem do quilombo, mas também trabalhamos para nós mesmos, apesar de que tem pessoas que não gostam dessas mudanças.
A moça se apoiou no balcão com um leve sorriso enquanto olhava para os clientes.
Jorginho também olhava para os clientes, mas notava as roupas deles, que eram todas novas, não só isso, tudo parecia bem animado e movimentado, com pessoas sempre andando para lá e pra cá carregando produtos, construindo casas usando materiais estranhos, comprando nas lojas, tudo era tão diferente da cidade em que vivia. Ele era um comerciante, mas ultimamente não conseguia vender nada, o que o fez se arriscar na guerra. Até que se deu conta do tempo que ela falou, o que o deixou chocado.
— Está me dizendo que tudo isso foi feito em alguns meses? Isso… É impressionante.
Nala se virou e o olhou, antes de dizer:
— E dizem por aí que vai mudar muito mais afinal o chefe é-
Ela parou de falar no meio da sentença deixando Jorginho curioso.
— Quase me esqueci que você veio de fora, como se sua pele não indicasse isso. Digamos que tem coisas que não posso te falar. Enfim, cuide de tudo aqui, que vou fazer uma marmita para ti no restaurante, aliás vou te cobrar quando receber seu salário, é 1 rei por refeição.
“Ah, eu gostaria de ouvir mais desse tal chefe… Espera aí 1 rei por refeição!? Isso é praticamente de graça, e eu tenho dinheiro suficiente para isso na minha loja, assim minha família não passaria fome! Se eles pudessem vir para aqui… Não o que to dizendo, trazer minha família para viver com um bando de preto, é um absurdo-”
O pensamento morreu na sua mente quando sua filha, Carla, veio à sua lembrança. Ele se lembrou dela brincando com as crianças negras na beira do rio, sem nenhum cuidado com a cor da pele. O “absurdo” era dele, não dela. Uma pontada de vergonha misturada com confusão o atingiu.
E na frente dele aparece alguém que fez esse pensamento se quebrar mais ainda, uma cliente apareceu, ela era uma mulher branca loira, de olhos vermelhos e usava um lindo vestido azul cheio de babados enquanto segurava a mão de sua filha. Ao vê-lo, ela ficou meio surpresa.
— Bom dia, Nala não está? Bom, não importa, o senhor poderia me ver um sorvete de mangaba e um de jabuticaba?
O homem meio chocado, foi pegar os sorvetes que estavam guardados em potes de argilas com gemas de gelo, o sorvete também era servido em uma tigela de argila pois ainda não havia cascão. Todo cliente tinha que devolver as tigelas ou deixar na mesa.
— Aqui está senhorita, e se não for muita intromissão, como está sendo viver no quilombo?
A mulher pegou o sorvete e entregou para a sua filha e com uma colher começou a comer seu sorvete antes de dizer:
— Ultimamente está sendo muito bom!
Jorginho ficou mudo, observando a mulher e sua filha se afastarem, rindo. Aquela cena quebrava todas as suas certezas. Uma mulher branca, bem-vestida, vivendo livre e feliz em um quilombo. Ele não estava em um covil de selvagens, como pregavam os soldados do governador. Estava em um lugar que funcionava – e funcionava melhor do que a cidade “civilizada” de onde ele vinha. O medo começou a dar lugar a uma perigosa e irresistível centelha de esperança.
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