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    A luz do sol inclemente de Recife reverberava sobre as paredes pintadas de branco do Palácio das Duas Torres, fazendo o ar tremer. Na entrada principal, o Governador Bento Vidal, um homem jovem de trajes impecáveis, recebia seu novo Capitão-Mor. O suor já formava uma fina lâmina em sua testa, e o cheiro salgado da maresia misturava-se ao pó da rua.

    — Boa tarde, Senhor Caetano Velho — cumprimentou Bento, estendendo a mão. — Ouvi boas coisas sobre o seu trabalho como bandeirante nas capitanias do sul. Espero que possa nos ajudar a resolver nosso… problema particular.

    O homem à sua frente era a antítese de sua própria elegância. Caetano Velho era barrigudo, vestia roupas de couro surradas e sua longa barba grisalha parecia abrigar a poeira de mil estradas. Na cintura, uma espada prática; na mão, uma bengala de madeira escura com uma gema incrustada no topo. Mas o que mais chamava a atenção era seu séquito. 

    Atrás dele, um pequeno grupo se mantinha imóvel: dois homens negros, um indígena de olhar penetrante e uma mulher negra, todos vestidos com roupas funcionais de viagem, mas de boa qualidade, portando armas mágicas com uma naturalidade que denotava experiência. Estavam longe da aparência submissa de escravos.

    O bandeirante apertou a mão do governador com um aperto firme e surpreendentemente caloso.

    — As boas-vindas são apreciadas, Governador, mas dispense os agradecimentos. Portugal está-me a pagar bem para resolver este embrulho. 

    Sua voz era grave e direta, sem vestígios do sotaque caipira que Bento esperava. Ele olhou para o sol a pino. 

    — Aliás, esta época do ano é um fogo. Não poderíamos continuar esta conversa à sombra?

    A fala surpreendeu o governador. “Esperava um velho arrogante e matuto, mas este homem… é diferente. Claro, é apenas uma primeira impressão,” ponderou, internamente.

    — Claro, claro, vamos entrando — concordou Bento, conduzindo o grupo para o interior do palácio.

    O contraste era imediato. A espessa alvenaria das paredes mantinha os aposentos frescos, e o ar pesado do exterior dava lugar a uma atmosfera mais leve. Dirigiram-se à sala do governador, onde o frescor era quase sobrenatural. No centro, a escrava Márcia mantinha as mãos erguidas com luvas brancas com uma gema gélida no meio delas, uma fina geada azulada serpenteava de seus dedos, absorvendo o calor do ambiente e mantendo jarras de bebidas envoltas em vapor gelado. O silêncio era quebrado apenas pelo leve tinir dos cubos de gelo nos copos.

    Bento sentou-se em sua cadeira de espaldar alto, e Caetano ocupou a cadeira de couro à sua frente. Márcia, com movimentos silenciosos, serviu duas bebidas na mesa de jacarandá que separava os dois homens.

    — Aceita alguma bebida, Capitão-Mor? — ofereceu Bento.

    Caetano ajustou-se na cadeira, que rangeu sob seu peso.

    — Apenas um suco, Governador. Não gosto de beber álcool quando se fala de negócios.

    Márcia serviu-lhe um copo de suco de caju, os cubos de gelo colidindo com um som cristalino.

    — Desculpe a rudeza, Seu Caetano, mas vou direto ao ponto. A situação é preocupante. Os quilombolas estão usa—

    Caetano ergueu levemente a mão, interrompendo-o.

    — Também prefiro a franqueza, Governador. Mas, antes, sugiro que retire a escrava da sala. Nunca se sabe quem pode ser um par de ouvidos alheio.

    Bento franziu a testa, confuso, mas logo soltou uma risada breve.

    — Você é bom em contar piadas, Capitão. A Márcia é leal a mim. Tem uma vida boa aqui, muito melhor do que a de qualquer cativo. Não teria motivo para trair-me por uns pretos no meio do mato. Além do mais… — ele olhou para a mulher, que baixara a cabeça, — …é frágil e covarde demais para tal ato de rebeldia.

    Falava alto, como se ela não estivesse na sala, sem notar o leve tremor em suas mãos ao recolher a jarra.

    Caetano não riu. Em vez disso, ergueu-se com um gemido surdo da madeira de sua bengala e aproximou-se de Márcia. Seus olhos, frios como aço, fitaram os dela, que eram de um azul-escuro quase sobrenatural. Ela pareceu encolher-se, mas não desviou o olhar por completo, suportando o escrutínio por um instante que se arrastou.

    — Acho que isso é o bastante — interveio Bento, levantando-se, desconfortável. — Está a assustar a coitadinha. Márcia, pode retirar-se. Chamar-te-ei se for preciso.

    “É mesmo um caipira. Estava a esperar demais,” pensou o governador, irritado.

    Assim que a porta se fechou, Caetano voltou ao seu assento.

    — Governador, lembre-se de uma coisa: uma pessoa pode ser fraca de corpo e ser mulher, mas isso não significa que seja fraca de espírito. Olhei bem nos olhos da sua escrava. Não vi fragilidade. Muito menos covardia.

    — Como já disse — retrucou Bento, a irritação crescendo —, a escrava vive bem aqui!

    Caetano soltou uma risada curta e seca.

    — Sabe, Governador, há pessoas que seriam felizes trancadas num quarto luxuoso, sem ter de trabalhar. Mas há outras neste mundo que preferem a liberdade a qualquer custo. Mesmo que, na sua liberdade, tenham de trabalhar de sol a sol e comer o pão que o diabo amassou.

    Bento abriu a boca para protestar, mas o bandeirante continuou, sua voz baixa e carregada de experiência.

    — Aliás, eu mesmo não tenho escravos. Aquelas pessoas que me seguem são livres. Ganham bem e podem mudar de emprego quando quiserem. Ficam comigo porque lhes dou mais benefícios do que encontrariam noutro lugar. E todos, sem exceção, valorizam a sua liberdade acima de tudo e são fortes o suficiente para a defender.

    O governador respirou fundo, contendo a resposta mais ácida.

    — Eu entendo a sua cautela, mas a Márcia… ela jamais me trairia.

    Caetano pegou no copo e tomou um gole longo de suco antes de continuar.

    — Ouvi relatos da sua última investida contra o quilombo. Pensa que perdeu apenas por causa das novas armas mágicas deles? Armas não ganham guerras. Eles estavam preparados. Sabiam o onde e o quando do seu ataque. Isso significa que tem um rato aqui dentro. Pode não ser ela, mas há um. O inimigo sabia os seus movimentos. E você… sabe os deles?

    As palavras caíram como uma pedra no poço silencioso da sala. O rosto de Bento perdeu um pouco da cor.

    — Não… Não julgámos necessário. Afinal, lidámos com os holandeses. Lidar com uns pretos não seria tão difícil… ou era o que pensávamos.

    Caetano suspirou, um som de paciência esgotada.

    — Um animal acuado é sempre mais perigoso. Lutar por terras e dinheiro é muito diferente de lutar pela própria vida e liberdade. Vocês deviam saber disso. Afinal, também lutaram contra os holandeses para retomar o seu modo de vida.

    A fenda de compreensão finalmente abriu-se na mente de Bento Vidal.

    — Então… como os derrotamos?

    Uma expressão mais relaxada tomou conta do rosto de Caetano.

    — Da mesma forma que exterminei o povo Tucarano, no sul. Eram guerreiros ferozes, roubavam as nossas armas e voltavam-nas contra nós. Ninguém os conseguia dizimar. Claro, ninguém… até eu chegar.

    Ele inclinou-se para a frente, e sua voz baixou para um tom confessional e sinistro.

    — Conversei com padres que tentaram catequizá-los. Estudei a língua deles. Falei com desertores. Enviei espiões para ver como viviam. Aprendi que os Tucaranos eram ligados à terra de uma forma visceral. Cultivavam uma floresta sagrada, cheia de frutas e alimentos. Cada morto da tribo era enterrado lá, e sobre o corpo plantavam a fruta ou verdura favorita do falecido. Até na morte, continuavam a alimentar a tribo. Conheciam cada palmo daquele chão. A terra dos seus ancestrais era-lhes mais importante do que a própria vida.

    O bandeirante fez uma pausa, e seu olhar tornou-se sombrio, distante. A sala pareceu ficar mais fria.

    — Depois de aprender tudo o que pude, executei o meu plano. Queimei a floresta sagrada deles. Usei a gema da podridão na terra, para que nada mais voltasse a crescer. Cacei todos os animais da região e envenenei os rios. Quando viram a terra deles a morrer… a vontade de lutar morreu com ela. Não importava quão boas eram as suas armas ou quão corajosos os seus guerreiros. Sem a vontade de viver, não sobrou nada.

    Ele passou os dedos pela barba, e um sorriso quase imperceptível surgiu em seus lábios.

    — Sabe, mandei pintar um quadro do último Tucarano que matei. Para eternizar aquele momento.

    Bento sentiu um frio percorrer sua espinha, um calafrio genuíno que nada tinha a ver com a magia de Márcia. Caetano, entretanto, bebeu o resto do suco como se nada fosse.

    — Claro, com os quilombolas a história é diferente. Têm outros valores. Comunidade. Família. A tal liberdade de que falávamos. Precisamos de os estudar, encontrar o seu ponto fraco e, então, eliminá-los. Para isso, precisamos de espiões no interior do quilombo. Os meus homens e mulheres serão essenciais.

    — E como os infiltramos sem levantar suspeitas? — perguntou Bento, agora completamente envolvido.

    — É simples — disse Caetano, com a frieza de um estrategista. — Mandamos os meus homens para um engenho, como se fossem escravos novos. Depois, orquestramos a morte do senhor desse engenho. Eles, como “libertadores” e sendo negros, serão recebidos de braços abertos no quilombo. Melhor ainda se forem eles próprios a matar o senhor. Nada quebra mais a desconfiança do que um inimigo comum abatido.

    Bento engoliu em seco, o sabor doce do suco azedando em sua boca.

    — Mas não foi você mesmo que disse que não se pode confiar em pessoas que buscam liberdade acima de tudo? Como pode confiar nesses… negros?

    — É simples, caro Governador — respondeu Caetano, com um brilho astuto nos olhos. 

    — Eu não confio neles. Apenas lhes dou uma vida digna e a liberdade para escolherem. Acontece que, se quiserem manter essa vida boa e essa liberdade, eu sou a sua melhor e única opção. Escolhi-os a dedo. São pessoas que se colocam em primeiro lugar, acima de tudo e de todos. Alguém que mataria o próprio colega se isso lhe garantisse uma vantagem. Que vida teriam num quilombo? Nenhuma. E eles… bem, eles não são o tipo de pessoa que luta pela liberdade dos outros. Lutam apenas pela deles.

    “Pelo visto, para este homem, a vida de ninguém é sagrada,” pensou Bento, horrorizado e fascinado ao mesmo tempo. “Mas as minhas mãos estão atadas. Não sou popular entre os senhores de engenho, e este plano… este plano funcionaria. Só preciso de encontrar um senhor de engenho endividado e dar-lhe este ‘presente’. Depois, aproprio-me dos seus bens para cobrir as dívidas da capitania.”

    A decisão cristalizou-se em seu rosto.

    — Tudo bem, Capitão-Mor. Vamos seguir com o seu plano.

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