Capítulo 54 - Encontro Parte I
O sol da manhã já aquecia a terra vermelha do mocambo quando Carlos acordou. Após um café forte e fumegante, cujo aroma amargo enchia o pequeno quarto, partiu para sua rotina diária: verificar o andamento das obras da nova prefeitura e das estradas. O ar carregado de poeira de construção e o som ritmado de martelos e cinzéis guiaram seu caminho. A prefeitura, uma estrutura de alvenaria que começava a dominar a clareira, estava quase pronta; calculou que, se o trabalho continuasse no ritmo atual, estaria terminada antes do fim do ano. Já as estradas progrediam a passos largos. O trabalho era menos técnico e mais braçal, e a solução tinha sido simples: mais trabalhadores. A produtividade aumentara visivelmente. Em breve, todas as vias do mocambo seriam de concreto liso e firme, ladeadas por calçadas largas onde as jovens mangueiras e ipês já prometiam sombra generosa para os trabalhadores que incessantemente iam e vinham, seus passos ecoando contra o chão duro.
O próximo passo ambicioso seria construir uma estrada até o ponto de encontro com os comerciantes. O caminho atual, um trilho sinuoso e estreito através da mata fechada, era inadequado para o transporte de grandes quantidades de mercadorias. O cheiro de terra molhada e vegetação apodrecendo era constante naquela trilha, um obstáculo que precisava ser superado, pois a produção do mocambo não parava de crescer. A própria fábrica têxtil tivera que ser ampliada – o som de madeira e constante das novas máquinas, fabricadas incessantemente pelo carpinteiro e pela oficina de Nia, era a trilha sonora do progresso. A demanda por roupas parecia insaciável.
“Aliás, eles não param de comprar roupas,” pensou Carlos em voz baixa, seus olhos percorrendo o movimento dos trabalhadores. “Será que estão exportando para fora do Brasil? Acho que vou perguntar isso para a papisa quando ela vier aqui.”
Depois de inspecionar minuciosamente cada canteiro de obras, sentindo o calor do cimento fresco e observando o suor que escorria pelas costas dos homens, Carlos se direcionou para a oficina de Nia. Lá, o ar cheirava a óleo quente e metal lascado. Nia trabalhava animada na máquina a vapor que alimentaria o futuro conversor de aço, suas mãos ágeis movendo-se com uma precisão que Carlos notou ter aumentado consideravelmente. Ela era uma artesã talentosa que se transformava rapidamente em uma engenheira excepcional.
Sua inspeção matinal completa, Carlos foi almoçar em um dos restaurantes que surgiam no mocambo. O lugar era um burburinho de vozes e o cheiro tentador de comida caseira. Vários trabalhadores, muitos vestindo roupas novas de algodão produzidas localmente, comiam e conversavam animados, criando uma atmosfera de comunidade vibrante. Enquanto saboreava seu prato, um guarda se aproximou de sua mesa.
— Chefe, a papisa chegou no ponto de encontro e deseja te ver!
Sem perder tempo, Carlos se levantou, deixando para trás o restante da refeição, e acompanhou o guarda.
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Sob o sol inclemente do meio-dia, a papisa Paula observava de sua carruagem o movimento febril do ponto de encontro. O ar tremeluzia com o calor, carregando o cheiro de poeira, cavalos e tecido novo. Uma fila interminável de carroças aguardava, enquanto homens e mulheres do quilombo não paravam de trazer fardos de roupas para preenchê-las. Era um rio constante de produção.
“Como será que conseguem fazer tantas roupas…?” ela pensou, sua mente analítica buscando uma lógica. “Não é possível… a não ser que estejam usando os conhecimentos do livro divino! Tenho certeza de que o responsável por isso deve ser Carlos.”
Do lado de fora encostado na carruagem, ofegante e com o rosto brilhando de suor, estava Francisco.
— Não acredito que você veio correndo me usar como guia assim que voltei a cidade e ainda te entreguei um livro divino de graça! — resmungou ele, tentando recuperar o fôlego.
A papisa abriu a porta da carruagem antes de falar, sua voz um tom controlado:
— Eu precisava de um guia que conhecesse o caminho. Além disso, foi muito ousado da sua parte querer me usar para seu benefício pessoal e depois simplesmente desaparecer da cidade. Você realmente voltou com um livro divino, mas é sobre como colher e plantar uvas e fazer vinho… É inútil para mim.
Mal ela terminou de falar, o comerciante gordinho rapidamente se enfiou na carruagem e se acomodou no banco de couro, como se fosse o proprietário.
— Vossa Santidade sabe bem que o acordo também a beneficia — retrucou Francisco, limpando a testa com um lenço. — Devo lembrar que tanto eu quanto meu colega pagamos religiosamente as taxas da igreja. Além disso, não é culpa minha que o conteúdo dos livros divinos é aleatório.
Paula sorriu, mas era possível ver um lampejo de irritação nos cantos de seus olhos.
— Sou muito grata por isso, mas pagar as taxas é simplesmente sua obrigação. Além disso, esta carruagem é de meu uso exclusivo.
Francisco, ainda se abanando, esboçou um sorriso malandro.
— Pensei que Vossa Santidade fosse uma pessoa humilde, com um coração gigante e empatia do tamanho de um oceano, capaz de oferecer um pouco de sombra a um simples e cansado comerciante.
Nesse momento, o padre Antônio, que também estava na carruagem, não conseguiu conter uma risada. Seu riso cordial fez os dois lembrarem que não estavam sozinhos.
— Ha ha ha, quem diria que Vossa Santidade teria esse lado. Vocês realmente parecem bons amigos.
Um raro rubor subiu ao rosto da papisa, deixando-a momentaneamente sem jeito — uma visão que nenhum fiel jamais testemunhara. Francisco também pareceu desconfortável, até que, após uma pausa, comentou:
— Carlos está demorando, não?
Recuperando a compostura, Paula falou, dirigindo-se a Antônio:
— Sim, e por falar nisso, Antônio, espero que ele te aceite como padre do quilombo. Podemos construir uma igreja aqui. Como você já o conhece, acho que será fácil.
Francisco balançou a cabeça, cético.
— Pelo que vi, eles precisam consultar seu rei antes de decisões assim. E o Espectro me parece alguém muito cauteloso. Santa, você é ingênua quando o assunto é política. Eles vão perceber que você está tentando colocar um espião dentro do quilombo.
Paula respondeu com um sorriso malicioso:
— Um espião que recentemente aprendeu a usar a gema da alteração, e que pode vaciná-los contra a varíola. Além disso, muitos negros aqui já creem em Nosso Senhor. Sem contar que, até agora, só os ajudei, me arriscando a criar um conflito com Portugal.
Os dois estavam prestes a iniciar outra discussão quando Antônio avistou Carlos chegando, acompanhado por guardas e por uma mulher que ele reconheceu.
— Nesse caso, por que não perguntamos diretamente à pessoa e vemos qual será sua resposta?
Os dois olharam para fora e viram, ao longe, a comitiva que se aproximava. Ao avistar Carlos, a papisa ficou visivelmente surpresa.
— Francisco, por que não me disse que ele era tão jovem? Pensei que fosse um velho sábio!
O comerciante precisou conter uma gargalhada.
— Com todo respeito, Vossa Santidade, que tipo de idoso dá cambalhotas e luta contra capatazes?
Paula ficou um pouco sem graça.
— Achei que fosse um idoso… bem atlético…
Tanto Francisco quanto Antônio riram abertamente, deixando a papisa furiosa. Ela, no entanto, conteve a raiva e disse com dignidade:
— Vamos descer. Eles já estão quase aqui.
Rapidamente, ela pegou um par de óculos de um bolso escondido e os colocou. Os óculos, feitos com uma gema da visão, permitiam-lhe ver a energia mágica que emanava de objetos e pessoas. E então ela viu: Carlos era envolto por uma aura roxa e sinistra, idêntica à que emanava dos artefatos considerados diabólicos. O coração dela acelerou, e uma enxurrada de perguntas invadiu sua mente, mas ela se controlou.
Com um movimento rápido, porém gracioso, Papisa Paula cobriu a cabeça com um véu transparente e desceu da carruagem. Lá fora, sua postura era de autoridade serena e inabalável — uma pessoa completamente diferente.
Antônio desceu em seguida, e Francisco o seguiu, descendo de forma desajeitada. Do lado de fora, guardas da igreja, vestidos com roupas simples que escondiam quem sabe quantas gemas mágicas, formavam uma guarda discreta mas alerta.
Após descer, Paula se dirigiu a Carlos e seu grupo com encanto e calma calculados.
— Boa tarde, senhor. É uma honra conhecer o homem por trás das cartas. Você tem me ajudado imensamente com diversas questões.
Carlos sorriu e estendeu a mão.
— O prazer é todo meu em conhecer a tão falada e famosa Papisa Santa. Sua cooperação está dando nova vida ao meu mocambo.
O gesto de Carlos fez os olhos dos guardas da igreja faiscarem com desconfiança, mas a papisa ignorou e apertou sua mão firmemente.
— Como disse na carta, essa cooperação tem sido benéfica para mim também. Por isso, desejo ampliá-la.
A papisa notou o olhar atento do homem cheio de cicatrizes que a observava. Também percebeu uma figura escondida nas sombras.
“Este deve ser o Espectro… Mas há mais alguém invisível perto dele. Sua habilidade é formidável; mal consigo distinguir seus contornos… Estão sendo muito cautelosos…”
Carlos, após cumprimentar a papisa, voltou seu olhar para Francisco.
— Que bom vê-lo aqui. Tenho vários pedidos de itens específicos e estou disposto a pagar um extra por eles.
Francisco esboçou um sorriso de negociante.
— É sempre um prazer fazer negócios com vocês.
O comerciante parecia transformado diante do Espectro, já não demonstrava o medo paralisante de outrora.
Tassi, que estava ao lado de Carlos, aproximou-se do grupo da igreja, seu rosto iluminado por um sorriso.
— Padre! Achei que nunca mais o veria.
O padre sorriu ao vê-la. Tassi estava irreconhecível comparada a forma esquelética que tinha no engenho. Seu rosto estava preenchido, seus olhos brilhavam com vida e ela vestia um vestido de tecido de boa qualidade.
— Eu também, minha filha. Parece que Deus tem outros planos para nós.
Tassi sorriu respeitosamente. Ela não partilhava da mesma fé, mas nutria uma profunda gratidão pelo padre que tanto a ajudara no passado.
— Vocês devem estar exaustos da viagem. Por que não sentamos e conversamos com mais conforto? — sugeriu Carlos.
Após suas palavras, Tassi, movendo-se com cuidado para não alarmar os visitantes, acionou seus braceletes. Com um leve tremor na terra, bancos e uma mesa robusta emergiram do chão, à sombra refrescante de uma árvore próxima.
— Também trouxe uma especialidade do Mocambo do Tatu: sorvete. Acho que vão adorar. — Carlos fez um sinal, e um guarda adiantou-se carregando um grande pote de argila.
A papisa, embora estivesse ansiosa para tratar de negócios, reconheceu que seria uma grosseria recusar a hospitalidade.
— Mas é claro! — respondeu, com um sorriso polido.
O pequeno grupo dirigiu-se à mesa. Paula, discretamente, usou seus óculos para examinar o pote em busca de qualquer magia perigosa. Tudo parecia seguro, mas a precaução a impedia de comer qualquer coisa oferecida. Sentando-se, ela lançou um olhar significativo para Francisco, que entendeu imediatamente a mensagem.
— Senhor Carlos, estou muito interessado nessa tal especialidade… — disse o comerciante, esfregando as mãos. — Especialmente se eu puder vendê-la no futuro.
Carlos respondeu evasivamente:
— Quem sabe no futuro…
O guarda colocou o pote na mesa, junto com tigelas e colheres. Carlos serviu primeiro a Francisco. O sorvete cremoso e gelado rapidamente se tornou a melhor arma de persuasão do chefe do mocambo. O comerciante, inicialmente cético, mudou de ideia ao sentir o alívio gelado contra o calor. Começou a comer com visível deleite.
Antônio, vendo o prazer de Francisco, também se permitiu ser servido. A papisa, no entanto, manteve o foco.
— Senhor Carlos, gostaria de construir uma igreja em seu mocambo. Há muitos fiéis sem um local para orar, e o padre Antônio seria perfeito para liderá-la, já que você e a Tassi o conhecem.
Carlos manteve o sorriso.
— Claro!
A resposta veio tão fácil que surpreendeu a papisa.
“Assim, tão simples? Ele não percebe que estou colocando um espião?”
Sua animação, porém, foi interrompida.
— Mas tenho uma condição — continuou Carlos, pegando uma tigela de sorvete para si. — Quero separar a função religiosa da igreja da função de cura.
Paula ficou confusa.
— Isso é impossível. Não posso revelar os segredos de cura da igreja.
— Peço desculpas pela falta de clareza — Carlos explicou. — Quero que os fiéis frequentem a igreja para orar. Para receber tratamentos e curas, que vão a um hospital. Não se preocupe, para fazer curas usando a gema da alteração, os membros da igreja farão isso, mas o hospital será administrado por membros do mocambo, e os artefatos de cura permanecerão sob seu controle.
“Até que é razoável… mas por que separar?” pensou Paula, a confusão ainda estampada em seu rosto.
Percebendo sua hesitação, Carlos elaborou:
— No quilombo, vivem pessoas de diversas crenças e origens. Quero que todos se sintam bem-vindos para buscar cura, independentemente de sua fé. Além disso, no hospital, posso incluir trabalhadores não afiliados à igreja para auxiliar nos cuidados…
Carlos passou um tempo detalhando o funcionamento do hospital. Paula ouvia atentamente, mas o vento quente e o sorvete que lentamente derretia ao seu lado tornavam-se cada vez mais tentadores. Cedendo, ela pegou uma pequena porção. O sabor doce, cremoso e frio foi uma revelação, e ela se viu saboreando-o com genuíno prazer.
— Entendo a proposta do hospital e não vejo problemas — disse ela, finalmente. — No entanto, sinto que saio em desvantagem neste acordo. Recentemente, Francisco, com a minha intermediação, estabeleceu um canal para exportar suas roupas para outras Cidades Santas. O comércio entre elas é livre. Portanto, gostaria de um bônus. Talvez um livro sobre microorganismos?
Carlos suspirou.
— Infelizmente, não possuo nenhum livro sobre o assunto, então não posso compartilhar muito.
A resposta surpreendeu Paula, e uma teoria começou a se formar em sua mente.
“Então, como ele sabe sobre microorganismos? Onde aprendeu? A menos que…”
— Não me diga que você tem a mesma origem que os Livros Divinos!? — exclamou, seus olhos se arregalando.
A pergunta ecoou no ar, deixando todos em silêncio. Carlos, boquiaberto, olhou para Espectro, que respondeu com um leve aceno de cabeça.
— Vossa Santidade é tão inteligente quanto os boatos dizem — confirmou Carlos. — Sim, você está certa. Venho do mesmo mundo de onde os ‘livros do diabo’ se originaram, mas não posso entrar em detalhes.
Apesar de tê-la considerado, a confirmação chocou Paula.
— Gostaria de atribuir à minha genialidade, mas, para ser honesta, estes óculos, feitos com uma gema da visão por um dos nossos melhores artesãos, me deram uma pista crucial. Eles mostram que você possui a mesma aura que esses artefatos.
Espectro, que permanecera em silêncio, interveio:
— Conseguimos uma luneta com uma gema da visão recentemente e não vimos nada de anormal em Carlos. Como Vossa Santidade pôde ver?
Paula riu suavemente.
— A diferença está no artesão. Não se pode comparar a técnica de um ourives mágico da igreja com a de um artesão comum. Não basta ter a gema e os materiais; é preciso dominar a técnica.
A resposta silenciou Espectro. A papisa então voltou-se para Carlos, sua expressão séria.
— Compreendo… Isso explica muitas coisas. Com esta informação, podemos manter nosso acordo como está. Só desejo expandir o conhecimento trocado em nossas cartas. — Sua voz suavizou, tomando um tom quase sonhador. — Veja, acho este mundo incrível e maravilhoso. Acredito que Deus o criou para ser desvendado. Por isso, desejo aprender mais sobre Sua criação. Continue a me enviar cartas e, se possível, responda às perguntas que farei. Tenho tantas dúvidas…
Era um desfecho melhor do que Carlos esperava.
— Claro. Farei o possível para ajudá-la.
Ao ouvir isso, a papisa ergueu o véu, revelando um sorriso aberto e entusiasmado.
— Como não pode me dar o livro, acho que mereço algumas respostas, não?
Imediatamente, Paula lançou uma enxurrada de perguntas sobre o mundo de Carlos: se havia igreja, magia, doenças, vacinas, micróbios. Cada resposta a deixava mais eufórica, transformando-a completamente da figura austera que descera da carruagem. A tarde inteira se passou naquelas conversas, com Carlos tomando o cuidado de não revelar segredos cruciais — era seu trunfo mais valioso com aquela mulher.
— Obrigada por sanar tantas de minhas dúvidas — disse ela, finalmente, com um suspiro de satisfação. Olhou para Antônio. — Vou deixar Antônio sob seus cuidados e enviarei mais ajudantes para o hospital. Os artefatos de cura ficarão com eles, e somente com eles. E, por favor, não os trate como intrusos.
Carlos estendeu a mão mais uma vez.
— Aceito este acordo com prazer.
Eles apertaram as mãos, selando o pacto. A papisa e Francisco se levantaram para ir, mas Carlos interrompeu:
— Espere, senhor comerciante. Tenho uns pedidos especiais a fazer.
Intrigado, Francisco sentou-se novamente. A papisa, movida por curiosidade, também retomou seu lugar para ouvir a conversa.
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