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    O resto de dezembro passou sem grandes mudanças. Carlos ocupava seus dias acompanhando o progresso da produção das máquinas a vapor e o início da construção dos edifícios de alvenaria que, tijolo a tijolo, começavam a substituir as palhoças do mocambo. Um cheiro constante de terra molhada, madeira serrada e cal queimada pairava no ar.

    Após inspecionar os projetos, ele se recolhia à recém-construída prefeitura, onde mergulhava em esboços de novas armas. O escritório era banhado pela luz suave e constante de gemas da luz, um luxo caro, mas alcançável; o verdadeiro raridade era um adepto capaz de energizá-las, sorte a deles ter Quixotina.

    “Na última batalha, as armas de pederneira não foram tão decisivas quanto as granadas”, refletiu Carlos, a caneta deslizando sobre o papel. “Mas isso foi porque a luta foi numa mata fechada… e o mocambo é justamente envolto por essa mesma mata cerrada. Com as máquinas a vapor, eu poderia industrializar a produção de mosquetes e equipar todo o exército rapidamente. Mas será que esse esforço todo valeria a pena? Será que não é enxugar gelo?”

    Ele folheou o pesado “Guns and History”, e suas páginas revelaram o futuro: diagramas de fuzis de repetição, rifles de ação por alavanca e robustos revólveres. Um sorriso de antecipação se desenhou em seu rosto.

    “Canhões… esses gigantes só serão possíveis quando o conversor de Bessemer estiver cuspindo lingotes de aço de qualidade e em quantidade. Isso fica para um próximo capítulo”, ponderou, traçando um círculo em volta dos projetos de artilharia pesada. “Não, o próximo passo lógico, o verdadeiro salto, são as armas de repetição. Fuzis, rifles, revólveres… essas sim serão um divisor de águas.”

    No entanto, o entusiasmo foi rapidamente temperado pela realidade prática que se desdobrava em sua mente. Ele visualizou não as armas prontas, mas o caminho tortuoso para fabricá-las.

    “Mas isso será um trabalho hercúleo. A beleza e a maldição dessas armas estão em sua precisão. Não são peças forjadas por um ferreiro em uma bigorna; são mecanismos complexos. Precisamos de tolerâncias milimétricas, peças intercambiáveis. E para isso… para isso, primeiro preciso das máquinas que fazem as máquinas.”

    Ele pegou uma folha em branco e começou a escrever, criando uma lista mental física:

    Tornos a Vapor: O coração de tudo. Para cilindrar, rosquear, fazer cones. Seriam essenciais para usinar o cano, o cilindro e inúmeras outras partes, transformando barras de metal bruto em componentes simétricos e precisos.

    Fresadoras a Vapor: Para cortes precisos, ranhuras, engrenagens e aplainamento de superfícies. Elas dariam forma ao ferrolho, ao receptor, criando os encaixes perfeitos onde a tolerância entre as peças seria medida em fios de cabelo.

    Plainas a Vapor: Para aplanar e alisar grandes superfícies com uma precisão impossível de alcançar à mão, como a base do receptor de um fuzil, garantindo que todas as peças se assentassem perfeitamente.

    Carlos suspirou, olhando para a lista. A verdade era cristalina e avassaladora.

    “Afinal, não posso deixar a Nia fazendo absolutamente tudo sozinha, seria inviável e criminoso. Ela é uma gênia, não uma escrava. Portanto, a estratégia é clara: é melhor ela focar sua capacidade incomparável em construir essas máquinas-ferramenta primeiro. Uma vez que tivermos tornos, fresadoras e plainas movidas a vapor, poderemos montar uma linha de produção. Só então a fabricação industrial dessas armas deixará de ser um sonho meu e se tornará uma realidade para o mocambo.”

    “Além disso tem outra questão para fazer essas armas.” Carlos suspirando listou as etapas necessárias em um novo papel:

        Começar com Enxofre e Nitrato de Sódio. (O enxofre eu tenho.)

        Usá-los para fabricar Ácido Sulfúrico e Ácido Nítrico.

        Usar os ácidos para nitrar a Celulose (Pólvora sem Fumaça) e dissolver Mercúrio (Espoletas).

        Usar a Pólvora e as Espoletas para carregar os Cartuchos de Latão.

        Usar os Cartuchos para alimentar os Fuzis de Repetição.

    — Isso vai ser um desafio para mim — murmurou, esfregando os olhos. — Química nunca foi meu forte. Se ao menos tivéssemos um alquimista por aqui que soubesse o básico… Mas numa colônia dessas, duvido que exista um estudioso do assunto. Vou ter que me virar sozinho. Ainda bem que consegui aqueles livros de química no engenho.

    Após horas de estudo, um pensamento perturbador lhe cortou a respiração. Ele analisou a pilha de projetos e percebeu um padrão alarmante.

    “Isso… tudo depende da Nia”, pensou, a consciência pesando. “Tudo, desde a farinha até o papel, das armas ao aço, depende dela e da sua capacidade de produzir máquinas mais complexas. Por mais que ela ame o que faz, já estou começando a abusar da sua boa vontade. Não é justo. Depois que ela terminar as máquinas para as indústrias prioritárias, preciso que ela construa máquinas para fabricar… outras máquinas a vapor. Isso tiraria um peso enorme dos ombros dela.”

    Ele suspirou profundamente. Essa decisão significava mais noites em claro, mais estudos e mais esquemas. E foi exatamente isso que ele fez, tornando-se, como de costume, o último a deixar a prefeitura, mesmo durante os feriados que ele mesmo havia decretado, como o Natal. Apesar de nem todos no mocambo serem cristãos, a maioria era, e com os laços com a igreja se fortalecendo, Carlos julgou a comemoração política e socialmente sábia. No fim, independente de crença, todos apreciavam uma desculpa para um dia de descanso em família, o cheiro de comidas especiais enchendo o ar e os sons de conversas animadas ecoando pelas ruas.

    No meio de tanto trabalho, o fim do ano se aproximava. E, no pouco tempo livre que teve, Carlos resolveu dedicar sua atenção a um pequeno projeto pessoal.

    Não demorou muito, e um anúncio oficial espalhou-se pelo mocambo: na noite da virada do ano, haveria um grande festival, e todos teriam folga na segunda-feira seguinte. A animação foi geral — quem recusaria um dia de descanso?

    Além disso, Carlos prometeu a todos uma grande surpresa durante as comemorações.

    Quixotina, Nia, Tassi e até o normalmente sério Pedro ficaram morrendo de curiosidade.

    — Pelos deuses, Carlos, o que você está aprontando? — perguntou Quixotina, encostando-se na porta de seu escritório. — Um segredo tão bem guardado assim só pode ser coisa boa, ou muito, muito perigosa.

    — Um pouco dos dois, talvez — ele respondeu, com um ar misterioso. — Mas é uma surpresa. Vocês vão ter que esperar para ver.

    Nada que dissessem conseguia arrancar-lhe a informação. Alguns moradores relataram tê-lo visto, acompanhado de guardas, sumindo na mata com sacos de pólvora, alimentando ainda mais o mistério.

    Finalmente, chegou o dia do festival. A celebração se espalhou, ocupando parte do salão de festividades e se estendendo para a área externa. A noite foi longa e vibrante. O som de violões e cantorias enchia o ar, competindo com as risadas e o ritmo contagiante dos batuques. Diferentes danças floresciam: a capoeira, com seus movimentos ágeis e acrobáticos; a dança dos orixás, cheia de significado e energia; e o batuque, pura alegria contagiantes. O cheiro de carne assada e milho cozido emanava das fogueiras, criando uma atmosfera de festa genuína.

    No auge da animação, Quixotina, vestindo um vermelho deslumbrante que fazia seus olhos cor de rubi brilharem ainda mais, aproximou-se de Carlos e pegou seu braço com firmeza.

    — E então, meu caro chefe — disse ela, com um tom cômico e cavalheiresco —, você me daria a honra de uma dança?

    Carlos, que terminava um pedaço suculento de carne assada, quase se engasgou de surpresa, ficando visivelmente sem jeito.

    — Espera aí — balbuciou, limpando as mãos —, não deveria ser o homem quem convida a mulher para dançar?

    Quixotina soltou uma risada cristalina.

    — Ora, essa! Da última vez, você me fez sair por aí carregando uma máquina pesada como se fosse um burro de carga. Além disso, não sei se já percebeu, mas não sou muito de seguir protocolos. Gosto de vestidos e doces, sim, como muitas mulheres, mas também adoro lutar, competir, armas e armaduras. E, para ser sincera… — ela fez uma pausa dramática, olhando em volta —, aqui não há homem com coragem suficiente para me convidar. Então, quando a caça não vem ao caçador, o caçador vai à caça. Alguns até ficam corados se eu simplesmente puxo conversa.

    Carlos entendeu o recado. Com um sorriso resignado, pegou suas mãos e, de forma desajeitada, deixou-se levar por ela ao som contagiante dos batuques e violões.

    Do outro lado do salão, Tassi, que normalmente mantinha uma fachada impenetrável, se divertia na roda de capoeira, uma prática que adorava desde os tempos do engenho. Ela sempre alegava que era apenas um treino marcial, mas a verdade era que a coreografia da dança a cativava profundamente. Depois de cansar, saiu da roda, o corpo suado e o coração acelerado, e foi em busca de algo para beber.

    “O que minhas antigas companheiras de conventículo diriam se me vissem agora?”, pensou, levando o copo aos lábios. “Provavelmente me matariam por heresia e devassidão.”

    Ela deu um gole na caipirinha, a nova invenção de Carlos, e admitiu, com relutância, que gostara muito da bebida.

    “Sempre me privei de tantas coisas… E agora, acho que posso me soltar um pouco. Afinal, de que adianta lutar por algo se, no final, não se posso aproveitar pelo que estou lutando?”

    Apesar de sua liberdade recém-conquistada, a velha necessidade de se autojustificar ainda a assombrava. Enquanto descansava, observava a cena com um leve sorriso: Carlos dançando desengonçadamente com Quixotina; Nia, toda sorrisos, agarrada aos maridos. Foi quando uma voz a tirou de seus pensamentos.

    — Que raro te ver sorrindo assim, Tassi.

    Ela virou-se e viu Pedro, seus olhos azuis refletindo a luz das fogueiras.

    — Ultimamente, andam me dizendo muito isso — respondeu ela, o sorriso não se dissipando completamente. — Acho que está deixando de ser uma raridade. E não acho que seja uma coisa ruim.

    — Concordo plenamente. E digo mais: você fez a escolha certa em ficar e ajudar o Carlos. Sinceramente? Não aguento mais a rotina do exército, só treino e mais treino. Pelo menos o Espectro é mais leniente comigo, por causa da minha proximidade com ele. Posso aproveitar noites como esta.

    “Realmente, dei muita sorte”, pensou Tassi novamente. Incapaz de manter uma conversa frívola por muito tempo, ela caiu em um silêncio contemplativo, até que Pedro quebrou o clima novamente, sua voz mais séria.

    — Sabe… me desculpe. Por tudo.

    Surpresa, ela fitou seus olhos azuis, e o leve sorriso desapareceu de seu rosto.

    — Eu queria poder te dizer que te odeio por tudo que você fez — ela disse, a voz baixa mas firme. — Mas a verdade é que você só mudou, só ficou do lado do Jorge… depois que Zézinho nasceu. E, por mais que eu queira, não consigo te odiar por ter escolhido seu filho. Se fosse a Tassi de antes, a de verdade, provavelmente já teria tentado te matar em algum momento escuro.

    Pedro abriu a boca para responder, mas as palavras morreram em seus lábios. Carlos havia parado de dançar e subiu em um banco, chamando a atenção de todos.

    — Povo do mocambo! — sua voz ecoou, firme e clara, sobre o burburinho. — Estamos encerrando um ano de lutas, de conquistas e de muito trabalho duro. Olhem para onde estamos! Saímos da sombra do engenho e estamos construindo nosso próprio futuro, com nossas mãos, com nosso suor. Em breve, a alvenaria substituirá a palha, a indústria nos dará força, e a educação, que começa com nossa nova escola, dará sabedoria aos nossos filhos. O ano que se inicia será o ano em que deixaremos de ser apenas sobreviventes. Seremos construtores! Seremos uma comunidade forte, respeitada e, acima de tudo, livre! Nossos inimigos pensam que somos um amontoado de desesperados. Em breve, eles verão que somos uma forja, e deles faremos a nossa bigorna!

    Ele fez uma pausa, olhando para cada rosto iluminado pelas tochas.

    — E, com isso dito, eu tenho um pequeno espetáculo para todos vocês! Sigam-me para fora!

    O grupo, agora eletrizado, começou a fluir para fora do barracão, com Carlos abrindo caminho pela multidão até uma área previamente preparada e isolada.

    — Afastem-se um pouco, por segurança — ele orientou —, e… bem, olhem para o céu!

    Carlos então se agachou e, com um pavio, acendeu uma série de fogos de artifício plantados no chão. Com um assovio agudo, os primeiros projetéis subiram aos céus. Um silêncio de expectativa tomou conta da multidão, até que—CRAC!—uma explosão de cores verde e dourado iluminou a noite, seguida por uma salva de “ohs” e “ahs” de admiração. Mais fogos se seguiram, pintando o céu escuro com estrelas cadentes vermelhas, azuis e prateadas, cada explosão ecoando como um trovão festivo e enchendo o ar com o cheiro inconfundível de fumaça e pólvora.

    Tassi, cujo ânimo havia sido abalado pela conversa com Pedro, sentiu o coração se alegrar novamente diante do espetáculo celestial. Seus olhos, como os de todas as outras pessoas, estavam presos às luzes efêmeras e maravilhosas que riscavam o firmamento, uma promessa de esperança para o ano que se iniciava.

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