Índice de Capítulo

    O peso das responsabilidades crescia a cada dia sobre os ombros de Carlos. Agora, sua rotina incluía verificar o andamento de todos os projetos, passar as tardes debruçado com Quixotina sobre os livros de ensino que escreviam para as futuras aulas, copiar esquemas de máquinas dos seus preciosos livros e dedicar horas no laboratório aos compostos químicos para as armas de repetição. E, como se não bastasse, havia um novo local a visitar: o terreno onde o conversor Bessemer seria construído.

    Um cansaço doce, no entanto, tomava conta dele. A máquina a vapor estava finalmente pronta, e essa conquista injetava um ânimo renovado em seus passos. Ao chegar ao local designado para o conversor, porém, sua expectativa deparou-se com o vazio. Apenas terra batida e Nia, concentrada em seus rabiscos. O cheiro de solo revolvido e mato seco enchia o ar.

    — Nia, houve algum problema? — perguntou ele, a preocupação estampada no rosto.

    Ela ergueu os olhos, e um sorriso esperto iluminou seus traços.

    — Problema? Pelo contrário, chefe. Acho que encontrei uma solução! — respondeu, animada. — Estava estudando os esquemas desse conversor e pensei: será que precisamos mesmo desse tal revestimento que o senhor descreveu?

    Carlos franziu a testa, o som dos grilos preenchendo o breve silêncio.

    — Se for assim, o calor vai derreter o conversor inteiro. E tem o risco de elementos químicos reagirem com as paredes de metal…

    Nia não o deixou terminar, seus dedos apontando para os desenhos.

    — Não estou dizendo para não usar revestimento! Estou propondo trocá-lo. Podemos usar a gema do fogo! Na mina do Mocambo, existem gemas de fogo gigantescas. Talhar uma no formato certo não seria impossível.

    Carlos levou a mão ao queixo, ponderando. Seus olhos percorreram os rabiscos de Nia, diagramas ousados que misturavam metalurgia e magia.

    — Isso… Talvez… Talvez possa dar certo — murmurou, pensativo. — Mas o adepto não se queimaria ao ativar a gema? E o calor não fundiria o próprio conversor por dentro?

    Nia balançou a cabeça com convicção, um brilho de triunfo nos olhos.

    — De jeito nenhum! Dá para confinar o calor para atuar apenas numa área específica, como dentro do vaso do conversor. Olhe as minhas luvas, por exemplo.

    Ela tirou as luvas pesadas de couro e mostrou a gema de fogo incrustada nelas. O ar frio da tarde causou arrepios em seus braços.

    — Minha mão toca direto na gema, mas não sinto calor algum. O que aquece é a ponta de ferro que seguro. O calor é direcionado.

    Carlos sentiu um frio na espinha, mas desta vez era de excitação. A possibilidade era revolucionária.

    — Isso é excelente! — exclamou, sua voz ecoando no terreno vazio. — Se a gema for resistente à corrosão e a ácidos, então é a solução perfeita! Deixe-me verificar isso, por favor!

    Tomado por um impulso, Carlos pegou uma gema de fogo de estoque de Nia e partiu em direção ao seu laboratório, o coração acelerado. Usando o recentemente criado ácido sulfúrico, testou se a gema se dissolveria. Nada. Submeteu-a a soluções básicas, altas temperaturas, baixas temperaturas… Nada parecia afetar a superfície lisa e vibrante da gema.

    “Do que será que elas são feitas? Parecem resistentes a tudo, são quase indestrutíveis… Apenas não são muito resistentes a impactos físicos, parece.”

    Intrigado, fez testes de dureza em outras gemas. A gema da cura era a mais dura de todas; ele nem conseguia riscá-la com suas ferramentas mais afiadas.

    “Como será que a Igreja consegue talhar uma gema dura dessas? A tecnologia… ou magia… que eles devem dominar é assustadora.”

    Deixando as perguntas sem resposta para depois, ele correu para dar as boas-novas a Nia, que imediatamente pôs mãos à obra no “conversor Bessemer mágico”.

    Observando-a mergulhar em seu trabalho, um sentimento quente brotou no peito de Carlos.

    “Primeira vez que alguém não só entende, mas realmente melhora um dos meus projetos… Essa Nia é mesmo genial. Mais que eu. Se ela tivesse meus conhecimentos, quem sabe onde já estaríamos… Preciso de mais mentes assim. Pessoas que, por serem deste mundo e conhecerem a magia, enxerguem soluções que eu jamais veria. A escola será fundamental para isso. Aliás… seria interessante adicionar uma matéria de Estudos Mágicos no futuro.”

    No dia seguinte, Carlos e Quixotina seguiam pelas calçadas de cimento do Mocambo, ladeadas por árvores jovens, carregando os originais dos primeiros livros didáticos. O canto dos pássaros  criavam uma trilha sonora serena.

    — Você não precisava vir comigo, sabia? — disse Carlos, ajustando a pasta de couro sob o braço. — Vou só instruir os novos funcionários sobre como usar a prensa. É um trabalho básico.

    Quixotina balançou a cabeça, seus cabelos castanhos balançando com o movimento.

    — E perder a chance de ver essa tal máquina maravilhosa que imprime livros como mágica? Nem pensar!

    “Ué, tenho certeza que a prensa de Gutenberg já existe neste mundo… Será que não?”

    — Mas e a prensa de Gutenberg? — perguntou ele, tentando disfarçar sua curiosidade.

    Ela olhou para ele, genuinamente confusa.

    — Prensa de quê?

    “Ela nunca ouviu falar… Isso é estranho.”

    — No meu mundo — explicou Carlos, escolhendo as palavras com cuidado —, uma grande revolta religiosa começou quando as pessoas começaram a imprimir Bíblias. De repente, todos podiam lê-las e perceber que a Igreja não tinha o monopólio da palavra de Deus. Imagino que guerras e revoltas, chamadas de ‘Protestantes’, tenham acontecido aqui também.

    Quixotina franziu a testa, forçando a memória. Seus olhos se iluminaram após um momento.

    — Ah! Meu tio me ensinou sobre isso! Hereges que pregavam que a Igreja não representava Deus e imprimiam livros profanos. Mas a Igreja esmagou todos eles. No final, todo mundo voltou a adorar a única e verdadeira Igreja. Para evitar que acontecesse de novo, ela fundou até cidades sagradas nos locais que eram os maiores centros hereges.

    “A Igreja ganhou as guerras protestantes? A Europa toda sob uma única fé? Bom, até que faz sentido, considerando que eles controlam as gemas de cura… Mas que mundo alternativo e aterrorizante é esse? Que sorte a Papisa está do nosso lado, por enquanto.”

    Enquanto Carlos refletia sobre a revelação, eles chegaram à nova oficina de impressão. O local cheirava a tinta fresca e madeira serrada. Operários ansiosos os aguardavam, cientes de que um emprego no Mocambo vinha com vantagens incomparáveis.

    — Bom dia a todos! — cumprimentou Carlos. — Hoje trago o primeiro trabalho de vocês: imprimir este livro aqui.

    Ele ergueu o manuscrito “Primeiras Palavras”, criado a duras penas com a ajuda de Quixotina. Lentamente, com paciência, demonstrou o processo de impressão. O brilhante metálico dos tipos, o cheiro forte da tinta preta e o zumbido de atenção no ar hipnotizaram a todos, especialmente Quixotina, que observava com olhos arregalados.

    De volta ao centro do Mocambo, na estrada de concreto, Quixotina não se conteve.

    — Essa máquina é incrível! Agora entendi o que você quis dizer sobre o conhecimento dos livros mudar o mundo! Você tirou o conhecimento dessa máquina de seus livros, e agora ela vai criar mais livros. E quanto mais pessoas lerem, mais os livros vão moldar a realidade!

    “Como é bom ter meu trabalho reconhecido por alguém”, pensou Carlos, com um sorriso interno.

    — Isso mesmo, Quixotina. Você entendeu perfeitamente. E isso é só o começo!

    A conversa animada foi interrompida pela voz firme de um guarda.

    — Chefe Carlos!

    Era Ícaro, o mensageiro, um homem de poucas palavras e postura ereta.

    — Um mercador trouxe um dos itens que o senhor pediu!

    Carlos seguiu seu olhar até um vaso de argila simples, onde uma muda de árvore se firmava, suas folhas verdes e brilhantes contrastando com a terra escura. Considerando seus pedidos recentes, só poderia ser uma coisa: uma muda de seringueira. Uma centelha de puro triunfo acendeu dentro dele.

    — Obrigado, Ícaro. Por favor, leve esta muda até a Tassi. Vou junto com você.

    Despediu-se de Quixotina com um aceno e acompanhou o guarda. No caminho, pela trilha sombreada, o usualmente silencioso Ícaro quebrou o hábito.

    — Chefe Carlos… sei que não sou um funcionário do seu Mocambo, apenas entrego mensagens. Mas… será que poderia me dar um salário também? Minha esposa viu as roupas coloridas e lindas que as mulheres daqui usam e… gostaria de dar um presente a ela.

    A solicitação pegou Carlos de surpresa, mas foi uma surpresa agradável. A honestidade do pedido tocou-o.

    — Mas é claro que sim, Ícaro. No fim do próximo mês, você pode vir buscar seu salário aqui.

    — Muito, muito obrigado, chefe! — disse o guarda, seu rosto sério quebrando em um raro e genuíno sorriso.

    “O Mocambo está empregando cada vez mais gente… A população de três mil pessoas não será suficiente a médio prazo. Preciso atrair mais pessoas, fazer com que mais gente venha para cá, que acredite no que estamos construindo… Seria perfeito!”

    Chegaram ao campo de testes de Tassi. O cenário era desolador: um tapete de algodões mortos e murchos se estendia pelo chão. No centro, porém, Tassi não estava abatida. Seus olhos esmeraldas brilhavam com um vigor renovado.

    — Mais uma falha? — perguntou Carlos, cautelosamente.

    Ela virou-se, e um sorriso largo iluminou seu rosto sujo de terra.

    — Na verdade… usei apenas a gema da grama com o guano que você me indicou. Os algodões apodreceram, como pode ver, mas desta vez duraram bem mais! Normalmente, murcham em um minuto. Desta vez, aguentaram cinco! — sua voz trêmula de empolgação. — Talvez… talvez seja realmente possível usar só a gema da grama para gerar comida! Com isso, acho que seria possível acabar com a fome no mundo! No começo, achei que você só queria me substituir… Mas tive tempo para pensar. Você tem razão. Preciso deixar meu orgulho de lado e enxergar os benefícios de um mundo com comida abundante. Um mundo sem fome!

    Carlos sentiu o coração apertar. A pureza da esperança dela era comovente e dolorosa.

    “Abundância de comida não significa fim da fome, Tassi. No meu mundo, há comida suficiente para alimentar o mundo inteiro. Só no Brasil produzimos comida suficiente para alimentar um bilhão de pessoas, mas apenas com duzentos milhões de habitantes ainda há gente passando fome… O problema é mais complexo, é distribuição, é logística, é ganância.”

    Mas ele não tinha coragem de apagar aquele brilho nos olhos dela. Em vez disso, sorriu.

    — Que bom, Tassi. Fico muito feliz. Continue com os testes. E não só com algodão, experimente com outras plantas, outras combinações de adubo, e anote tudo, cada detalhe.

    — Sim, chefe! — respondeu ela, sua voz cheia de uma determinação que há muito ele não via.

    — Mas não é só por isso que vim — continuou ele. — Trouxe mais uma planta para você fazer crescer.

    Ícaro apresentou a muda. Tassi, com a energia de sempre, pegou-a das mãos dele.

    — Vou fazê-la crescer agora mesmo!

    Carlos olhou para a imponente araucária gigante atrás dela e interveio rapidamente.

    — Aqui não! Pretendo fazer um campo específico para essas árvores.

    “Por sorte, já temos tudo que precisamos para fazer borracha. Só precisamos aquecer o látex com enxofre e ela estará pronta. Isso vai ser outra fonte de renda fantástica para o Mocambo!”

    Ele levou Tassi a um campo preparado especialmente para o novo cultivo. Por serem árvores menores, ela conseguiu plantar várias mudas de uma vez. Carlos, ansioso, não perdeu tempo. Coletou o látex branco e leitoso que escorria de cortes experimentais e correu para o laboratório. O processo era simples: calor e enxofre. Em pouco tempo, ele segurava nas mãos os primeiros pedaços de borracha vulcanizada, flexíveis e duráveis.

    Imediatamente, ordenou que Tassi supervisionasse a construção de uma nova fábrica no distrito industrial e pediu a Aqua que recrutasse mais trabalhadores.

    Com alguns fios de borracha em mãos, seu próximo destino foi a fábrica têxtil. O local era um pandemônio organizado: o ruído ensurdecedor das máquinas, o cheiro de óleo e tecido, o vai e vem frenético de dezenas de trabalhadoras.

    — Chefinho! O que o traz por aqui? — gritou Gabriel, para se fazer ouvir sobre o barulho.

    — Trago boas notícias! — respondeu Carlos, erguendo um novelo de correia de borracha.

    — O quê? É mais uma máquina nova para nos ajudar? — perguntou o rapaz, seus olhos brilhando com expectativa.

    Carlos não respondeu de imediato. Em vez disso, apontou para uma das máquinas de costura.

    — Na verdade, trouxe um substituto melhor. As correias de couro que usamos quebram com facilidade — explicou, mostrando o material elástico e resistente em sua mão. — Com essas de borracha, esse problema acaba. E se precisarem de mais, é só buscar na nova fábrica de borracha.

    O entusiasmo inicial de Gabriel esmoreceu um pouco, mas rapidamente deu lugar à compreensão prática. Ele conhecia bem o transtorno de parar a produção para trocar uma correia quebrada.

    — Muito obrigado, chefinho. Vai facilitar muito nosso trabalho.

    Satisfeito, Carlos dirigiu-se ao local onde Nia trabalhava. Ele a encontrou finalizando os esquemas do conversor Bessemer mágico, rodeada por croquis e anotações.

    — Nia, trago boas notícias! — anunciou ele, exibindo um pedaço de borracha.

    Ela ergueu os olhos, curiosa.

    — Esse material vai te ajudar a selar as máquinas que você constrói! Veda melhor que qualquer coisa que temos.

    O rosto de Nia se contorceu em uma expressão de frustração genuína.

    — Sério?! E por que não me mostrou isso antes? Sabe o quanto foi difícil vedar a máquina a vapor para que não vazasse? — sua voz era um misto de aborrecimento e incredulidade. — Eu gosto de um bom desafio, mas não gosto de perder tempo com problemas que já têm solução!

    Carlos recuou um passo, surpreso pela intensidade da reação. Ele subestimara o quanto aquilo a incomodava.

    — Calma, Nia! Não te mostrei porque não tinha o material antes! As seringueiras chegaram hoje. A partir de amanhã, teremos borracha sobrando para todas as fábricas.

    A explicação acalmou os ânimos. A rigidez no corpo de Nia relaxou, e um sorriso de volta iluminou seu rosto.

    — Que bom… Espero que isso realmente ajude. Vai poupar muita dor de cabeça.

    Ela pegou o pedaço de borracha da mão de Carlos. Suas mãos, ásperas e habilidosas, examinaram o material, testando sua flexibilidade. Imediatamente, ela o levou a uma pequena chama para aquecê-lo e tentar moldá-lo. Carlos ficou ao seu lado, auxiliando, discutindo formas e aplicações, numa sintonia que prometia revolucionar o Mocambo mais uma vez.

    Nos dias que se seguiram, uma enxurrada de novos produtos de borracha começou a sair da nova fábrica de borracha:

        Luvas para o novo hospital e para trabalhos pesados;

        Botas impermeáveis;

        Capas de chuva resistentes;

        Pneus sólidos para carroças;

        Correias de transmissão para todas as oficinas;

        Mamadeiras e chupetas;

    Carlos sabia que, no fim das contas, nenhum desses itens venderia como as roupas, que eram uma necessidade básica. Mas a utilidade da borracha, especialmente para as indústrias e para a infraestrutura do Mocambo, era inquestionável. Era um dos pilares silenciosos sobre os quais um novo mundo estava sendo construído.

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